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sexta-feira, 19 de abril de 2013

Entre a realidade e a ficção, uma leitura possível do evento morte

“A vida é um sopro, um minuto. A gente nasce, morre. O ser humano é um ser completamente abandonado…” – Oscar Niemeyer

Olá!

Nossa, quanto tempo já fazia que eu não postava nada aqui! Bom, neste eterno retorno, vamos nós de novo...

Confrontar-se com a morte nunca foi algo simples para nós, humanos. No final de novembro do ano passado houve o falecimento da mãe de um colega de trabalho meu, o Paulinho, e percebi que já não reajo da mesma forma com que fazia antigamente. Como minha família era bastante grande, e a comunidade em que eu vivia tinha intercâmbios freqüentes, eu era uma espécie de “arroz de festa” dos velórios, e acostumei-me a não me impressionar tão facilmente com um evento estranho, ao mesmo tempo triste e inevitável. No entanto, confesso que saí deste último velório um pouco mais consternado do que o habitual, sei lá bem o porquê. Talvez eu esteja ficando velho, talvez tenha ficado tocado com a situação do meu amigo, que tem passado dificuldades outras. Estava isolado, chorando muito e facilmente, o momento do falecimento de sua mãe não poderia ser mais inadequado.

Já em dezembro, porém, a senhora da capa preta aproximou-se mais e lançou suas garras de maneira mais dolorida. Morreu meu compadre Plínio, jovem ainda, vítima de um impiedoso ataque cardíaco. Morreu um cara que era mais do que um irmão para mim. À consternação, juntou-se o sentimento de impotência causado por nossa infeliz máquina burocrática, que não se cansa de vilipendiar-nos com seus meandros injustos para um momento tão fragilizante.

Pois é, lidar com a morte não é algo simples para nós, brasileiros. Talvez outras culturas o façam melhor, como os mexicanos que celebram o dia de Finados nos cemitérios, junto de seus entes falecidos em um clima festivo, com as célebres caveiras de açúcar. Tentei já fazer algo semelhante com a molecada que convive comigo, espero que funcione:



A morte se torna especialmente fonte de pesar quando o falecido deixa para trás uma obra significativa. Por ocasião da morte da cantora Amy Winehouse, elaborei uma série de textos tratando do assunto (este, este e este). No entanto, o prisma agora é diferente: estou pensando em personalidades de carreira consolidada, de um conjunto de obras mais completo. E, neste sentido, é impossível deixar de falar em alguns dos mais especiais gênios que nos deixaram no ano passado.

Começando pelo passamento de Oscar Niemeyer, o homem que, em suas próprias palavras, traduziu as curvas das montanhas, dos rios e das mulheres brasileiras nos traços de sua arquitetura. Inúmeros projetos dele passam despercebidos aqui em São Paulo, como os edifícios Eiffel, Califórnia, Triângulo e Montreal, e poucas pessoas sabem que o edifício Copan, o Sambódromo e boa parte do Ibirapuera são obras de sua autoria.

2012 também foi o ano do falecimento de um dos mais subestimados escritores brasileiros: Autran Dourado. No meu entender, poucos conseguiram traduzir como ele as diversas variações de um ser entre sua pessoa e sua personagem, e de como ambas se confundem até se tornar uma coisa só, indefinível e indissociável. Dourado costurou com maestria o racional e o insano, o seguimento das regras socialmente aceitas e o desequilíbrio interior.

Quanto a Décio Pignatari, foi, ao lado dos irmãos Haroldo e Augusto de Campos, um dos papas de uma vanguarda que, pela primeira vez na história, teve brasileiros entre seus decanos: a poesia concreta. Para muitos, trata-se de amontoados de palavras ordenadas quase que aleatoriamente, sem nenhum sentido conceitual. Para mim, a poesia concreta foi a via de compreensão para a intrincadíssima teoria pictórica da frase, do genial e complexo Ludwig Wittgenstein. Ver as palavras dispostas na página de modo a construir uma visão além do seu alcance convencional fez-me entender que a linguagem das proposições é semelhante aos elementos de um quadro, que da sua colocação no todo depende o seu sentido.

No exterior, houve a morte de Jon Lord, tecladista da banda Deep Purple. Músico de formação, conseguiu, melhor do que muitos, fazer a conciliação entre música erudita e popular. Aliou sua técnica apurada a um feeling raro de encontrar.

Pois muito bem. Estes são apenas alguns casos que me trouxeram real incômodo. Mas, em termos de repercussão, mesmo Niemeyer esteve abaixo de uma outra morte mais relevante, mais significativa e, de certa forma, muito mais esperada. Refiro-me à morte de Max, o mesmo pilantra muito bem defendido pelo ator Marcelo Novaes, na novela Avenida Brasil. Já disse neste espaço que segui e gostei desta novela (olha só aqui e aqui), mas nada rendeu tantos jornais, revistas e informações da internet do que seu festejado assassinato e conseqüente enigma autoral. Nem mesmo as mortes do Chico Anísio e da Hebe Camargo suscitaram tantos debates. Por que a morte ficcional é mais significativa do que a morte do ídolo de carne e osso? Tenho uma tese.

A relação do homem com a morte é dual. O instinto de sobrevivência faz com que um ser humano aceite viver em condições tremendamente desfavoráveis, procurando um fio de esperança nas mais improváveis mezinhas, nos mais absurdos gurus, nas mais iniciais pesquisas, nos mais singulares tratamentos. É o medo do desconhecido, com uma dose cavalar de probabilidade de se encontrar diante do nada. As religiões procuram encher as pessoas de esperança em uma vida futura, mas como nosso mundo moderno se baseia no empirismo científico, essa fé se vê profundamente maculada por um processo reforçado em seus paradoxos.

Por exemplo, a religião cristã garante a existência do além, que premia aquele que segue os estatutos de sua divindade ou castiga quem deles se afasta. O problema é que não há balizas absolutas para estabelecer o que é pecaminoso ou não. Basta que se pense na questão dos santos. Para os católicos, estes são modelos a ser seguidos e venerados; para os ortodoxos, são praticamente a mesma coisa, com a diferença que seus templos não devem ter suas imagens esculpidas; para os espíritas, são almas elevadas, cheias de luz, e que já se livraram da passagem terrena; já para os protestantes, são ídolos que devem ser destruídos. E agora? Qual interpretação é a correta? Dessa forma, a religião pode deixar de ser reconfortante para aumentar ainda mais o medo da morte, por conta da angústia perante a materialização de todo o complexo de culpa: o castigo que nunca se encerra.

Há também a sensação de que sempre existe a possibilidade de oferecer mais de si mesmo ao mundo, uma espécie de paroxismo do egoísmo. Não se espantem, algum grau de narcisismo e de egocentrismo é natural e mesmo necessário à vida. Temos uma compulsão interior de transferir nosso desejo de eternidade àquilo que deixaremos de legado ao mundo, e evidentemente queremos que essa herança seja positiva. Sendo a morte a interrupção da cumulação deste pacote de benesses emanadas por nós ao universo, tem-se a tendência de achá-lo sempre insuficiente. O legado poderia ser maior, melhor, mais robusto, mais qualificado. Essa descontinuidade é outro fator a afligir-nos contra a morte.

Ok. Mas qual é o reverso da medalha? É que a morte também atrai.

Já falei nesta postagem sobre o Tânatos, a pulsão de morte imaginada por Freud. Não vou me repetir, mas apenas recordar que esta pulsão existe por conta da estabilidade que a morte propicia. Ela é livro fechado, obra acabada, ciclo completo. O pacote que mencionei anteriormente está entregue, nada mais há a acrescentar, nem para enriquecer, nem para angustiar. A situação estável, nesse sentido, é perfeitamente desejável, como seria a indiferença à dor (ataraxia) dos estóicos.

Há mais. Se a morte é medo do desconhecido, ela é também desejo do desconhecido. Os antigos navegantes tinham em si um profundo medo de se imiscuir em mares cada vez mais distantes, e lá se depararem com monstros e abismos. Ora, esse medo não foi suficiente para deter o binômio curiosidade + sede de conquista, e eles resolveram ir aos confins, para descobrir ou confirmar que o mundo é redondo. O homem sabe que o desconhecido é perigoso, mas também pode ser compensador, e muito.

Bem, qual a via mais segura para liberar o desafio da curiosidade com relação à morte, sem correr o risco de saltar o muro e cair no vazio? A resposta está na arte.

Por intermédio do personagem ficcional, podemos testar possibilidades que a mera observação nos impede. Não precisamos ter medo ou vergonha de desejar a morte alheia. Podemos experimentar uma sensação que vetamos a nós mesmos, porque não há culpa a carregar. E com isso aprendemos mais sobre si próprios.

Imbuídos deste conforto, podemos encarar a morte como evento real sem o terror que ela causa para nós e para nossos próximos. Não precisamos temer as punições divinas e nem o sentimento de saudades que teríamos ao presenciar o falecimento de alguém de nosso convívio. Sim, a morte alheia é um ato que encaramos com egoísmo, porque esta não se limita ao sofrimento do moribundo, mas é também um estopim para que seja deflagrada nossa própria dor. O que ocorre com o outro ocorrerá também comigo, estou colocado diante de uma premonição infalível. A morte ficcional quebra esta barreira. Isso é bom?

Entendo que não seja nem bom, nem ruim. Nada mais é que uma reação natural. Diante da inevitabilidade (olá, Tite!), é a melhor maneira possível que temos para experiênciá-la. Isso serve para provar que o impacto da morte na arte tem sua função em nossas vidas. O erro está, aí sim, em vislumbrá-la com mais importância que a morte real de pessoas que tem uma obra tangível a apresentar, e isso nós devemos em boa parte à mídia que produz seu encantamento em quantidades maiores das que dispõe para o registro da produção de cultura. Afinal, esse é seu negócio, mais para o mal que para o bem.

Abordei este tema porque, no dia de hoje, meu filho mais velho faria 22 anos. Quanto tempo já! Especular sobre o que podia ser, mas não foi, é um exercício filosófico que, no caso, torna-se muito doloroso. Por isso deixo apenas alguns versos de uma de minhas bandas favoritas. No final das contas, sei que o tema da música não é exatamente esse, mas é aplicável neste caso:

“How I wish
How I wish you were here
We're just two lost souls
Swimming in a fish bowl
Year after year
Running over the same old ground
What have we found?
The same old fears
Wish you were here”- Pink Floyd

Recomendações:

Muitas. Vamos na ordem em que foram apresentadas.

Oscar Niemeyer, do alto de seus lucidíssimos 104 anos deixou obra tremendamente vasta. Repasso os endereços das obras que mencionei neste post, para quem desejar ou tiver a oportunidade de dar uma olhadela, todos na cidade de São Paulo:

Edifício Eiffel - Praça da República, 177 - República
Edifício e Galeria Califórnia – Rua Barão de Itapetininga, 255 - República
Edifício Triângulo – Rua José Bonifácio, 24 - Sé
Edifício Montreal – Esquina das avenidas Ipiranga e Cásper Líbero – Santa Ifigênia
Edifício Copan – Avenida Ipiranga, 200 – República
Sambódromo – Polo Cultural e Esportivo Grande Otelo – Avenida Olavo Fontoura, 1209 – Anhembi
Parque do Ibirapuera – Avenida Pedro Álvares Cabral

A grande obra de Autran Dourado é a seguinte:

DOURADO, Autran. Ópera dos mortos. Rio de Janeiro: Rocco, 2007.

Com relação ao xará Décio Pignatari, podemos ler uma reunião de sua obra no seguinte livro:

PIGNATARI, Décio. Poesia pois é poesia. Cotia: Ateliê Editorial, 2004.

Sobre Jon Lord, indico toda a discografia do Deep Purple, em especial os álbuns Concert for Group and Orchestra, In Rock e Machine Head.

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