Em uma recomendação de artigo que vi em um debate
entre alunos (um deles é afilhada minha), revi alguma coisa sobre um filósofo
que há algum tempo não repassava meus olhos, o italiano Antonio Gramsci. No artigo,
havia uma pergunta-desafio que questiona sobre a pertinência da afirmação de
que a cultura distancia o homem da natureza. Achei bacana fazer algumas
considerações a respeito, que seguem abaixo.
Iniciando, devemos colocar que Gramsci diferenciava
claramente o folclore do conhecimento. Ele entendia o folclore de uma maneira
diferente de nossa atual concepção. Para ele, não representa o conjunto de
saberes populares, eminentemente empíricos, mas um conjunto de tradições que
perderam a ligação com sua própria origem. É um conhecimento que escapa de
qualquer juízo crítico, e nem mesmo é digno deste nome, porque perde seus laços
com a realidade. Nessa visão, o folclore é um costume arraigado que já não
sabemos dizer porque o temos. O folclore não representa cultura, mas
mistificação. Só que é o folclore que tem ligações mais fortes com a natureza.
Gramsci entende que a cultura afasta o homem da
natureza porque coloca ambos em oposição. Quanto mais o homem adquire saberes,
mais se afasta de seu estado bruto, de sua condição animal. A cultura só é
possível se colocarmos nela um sentido abstrato. Esse sentido pode ser
artístico, religioso, metafísico, mas é, de uma forma ou de outra, algo que vai
além da materialidade do concreto, do tangível. Partamos para alguns exemplos:
quando observamos uma tela, não nos atemos unicamente ao material utilizado,
como as tintas, os vernizes, as colagens, bem como não nos fechamos
exclusivamente na figura fisicamente retratada, mas temos a capacidade de lidar
metaforicamente com a forma expressa. Uma mulher não é apenas o retrato de um
ser humano do sexo feminino, mas um símbolo da beleza, da sensualidade; o cais
de um porto não é o local onde atracam e de onde partem os navios, mas é um
distintivo da despedida e das saudades; um trem correndo nos trilhos não
representa unicamente um meio de transporte, é também símbolo do destino
inexorável, da força que nada pode deter. O homem é o único ser capaz de
articular com símbolos, e este é um dos seus principais distintivos. Quanto
mais o homem se aprofunda na cultura, tanto mais desenvolve sua capacidade de
trabalhar com dimensões abstratas, e a cada vez que isso ocorre, amplifica-se
seu distanciamento de um estado bruto, ou seja, de sua natureza como animal e,
por extensão, destaca-se da natureza como um todo.
Quando pensamos na humanidade como o conjunto de
seres físicos dotados de articulação simbólica (como já falei neste e neste
post) e abstração, e se concluirmos que o patrimônio cultural humano tem sua
riqueza expressa pela transmissão e acumulação de conhecimento, teremos que o
homem não é nada dissociado de seu sentido histórico. As transformações do
ambiente, a relação do homem com a natureza, entre si e com os demais seres,
estão todas escritas na história. Sua natureza exige historicidade e, no
limite, cultura.
Em um primeiro momento, pode parecer que o afastamento da natureza
pela via da cultura fará com que o homem não tenha mais capacidade de se
relacionar com o meio ambiente mais preservado. O sentido não é esse, e, até
pelo contrário, é fator que tende a beneficiar esse contato, justamente por
ampliar a bagagem de recursos que temos para conhecer o que é bom e o que é
ruim no desenvolvimento destas relações, como é, por exemplo, o caso da
ecologia e da engenharia ambiental.
Muitíssimo bem. Descrevemos o efeito, mas vamos
tentar compreender a causa. Mas, para entender como Gramsci chegou a estas
conclusões, precisamos dar uma bela volta.
Em primeiro lugar, é preciso saber que nosso herói
foi o pioneiro do marxismo na Itália, que nos idos de 1920 tinha como filosofia
preponderante o historicismo de Benedetto Croce (filósofo interessante, é bom conhecê-lo
– entender não é concordar). Nessa linha de pensamento, a filosofia aproxima-se
da História mas se mantém distante do fato histórico. Ela tem caráter
especulativo, aproximando-a da metafísica. Para Gramsci, a filosofia deve
partir de um princípio oposto, que é a ligação direta com os fatos. Não se pode
utilizar métodos que não possam ser verificados no transcurso dos contextos
históricos, sob a pena de não se chegar a lugar nenhum. Funda uma filosofia da práxis, que não assumirá possibilidades
que não tem como aferir. Isso significa que as explicações dos fatos devem se
ver livres de quaisquer resquícios de misticismo e transcendência, inclusive
filosóficos, desprezando a especulação e focando-se no tempo e espaço em que a
humanidade vive. Assim, cada teoria deve ser confrontada dialeticamente com a
prática para conferir a validade de suas teses.
Com base nesses princípios, Gramsci elabora sua tese
mais central, que é a teoria da hegemonia. De acordo com o marxismo clássico, a
sociedade é estruturada em classes. Para que uma delas possa repassar seu
ideário às demais, é necessário que tenha a propriedade de possuir autoconsciência
e obter consenso dentro de si mesma, gerando uma noção clara de princípios e
organização. Essa é a chave para que reúna condições de se tornar uma classe de
vanguarda, em condições de liderar, ou seja, uma classe dirigente, ainda que
não esteja no poder. O passo seguinte consiste na transmigração dessa
autoconsciência para as demais classes componentes do organismo social,
convencendo-as de sua capacidade de guiar seus caminhos. Essa capacidade se
fundeia no confronto com a impossibilidade da classe dirigente no exercício do
poder dar respostas às questões das classes que lhe são subalternas. Ao receber
o consentimento da maioria social, a nova classe dirigente passa a ser classe
dominante, estabelecendo uma hegemonia que lhe permite acessar os meios de exercício
de poder. Essa transição nem sempre ocorre de maneira pacífica, podendo ocorrer
a violência e a guerra.
Nesse ponto, as elucubrações de Gramsci começam a se
distanciar do marxismo clássico, que preconiza motivos econômicos para a luta
de classes. Nosso italianinho vê na educação o principal motor da revolução
social.
Como já disse, uma classe que pretende dirigir deve
possuir consciência de si mesma. Isso significa conhecer seu papel histórico,
saber porque é oprimida e até onde pretende chegar. Para tanto, é necessário
que todos os seus componentes tenham acesso à cultura geral. Isso ia de
encontro às teses fascistas então em voga, que isolavam o saber das classes
subalternas ao trabalho, enquanto a cultura em um sentido mais amplo era
reservada à elite dominante. Não é possível
que um indivíduo possa compreender adequadamente sua posição no universo
se a ele é destinada apenas uma parte do todo. O ensino deve ser completo,
holístico, total, e só dessa forma a pessoa tem ferramentas de conscientização.
Com isso, a escola deve ser humanista, e não
meramente tecnicista. Os alunos precisam
aprender as leis e mecanismos que regem sua vida. Não se trata de saber apenas
que “Ivo viu a uva”, mas saber quem é Ivo, qual é sua origem e seu papel na
mecânica social, de onde veio a uva que o Ivo viu, como foi cultivada, se custa
caro ou barato e et cetera (Esse
exemplo é de Paulo Freire, que obviamente bebeu em fontes gramscianas). Dando a
ferramenta do conhecimento e da compreensão ao povo, quebra-se a alienação e
forma-se um novo consenso e uma nova consciência, constituindo as necessidades
de entendimento do lugar histórico e função social. Essa unidade é
imprescindível para que a classe em questão consiga apontar caminhos para a
solução dos conflitos de forma mais adequada que a classe politicamente
dominante. Esta só consegue se manter no poder por conta da posse dos meios de
coerção, mas que viverá ad aeternum
na dependência de suas armas.
Com esses princípios, Gramsci pensa na necessidade
da existência do intelectual ativo. Não basta que o pensador elabore suas teses
acerca da cultura, é preciso que ele as coloque em prática, transmitindo seu
conhecimento às massas e educando-as. Esses intelectuais são oriundos da
própria classe, e deve devolver a ela o seu saber, em um processo de
retroalimentação. Isolar os pensadores é um erro, que tem a tendência em colocá-los
em uma nova classe, destacada daquela a quem deveriam dedicar seus esforços.
Gramsci é um intelectual interessante, que foi
seminal para as teorias educacionais que se desenvolveram a partir da década de
1960, quando os seus escritos da prisão começaram a ter maior divulgação. Espero
ter ajudado a jogar um pouquinho mais de luz sobre a questão levantada pelo
artigo.
Recomendação
de leitura:
A obra de Gramsci foi, em sua maior parte, escrita
na prisão. Por isso mesmo, é bastante fragmentária, o que não a torna menos
edificante.
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999.
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