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segunda-feira, 29 de abril de 2013

Sobre a oposição entre cultura e natureza

Olá!

Em uma recomendação de artigo que vi em um debate entre alunos (um deles é afilhada minha), revi alguma coisa sobre um filósofo que há algum tempo não repassava meus olhos, o italiano Antonio Gramsci. No artigo, havia uma pergunta-desafio que questiona sobre a pertinência da afirmação de que a cultura distancia o homem da natureza. Achei bacana fazer algumas considerações a respeito, que seguem abaixo.

Iniciando, devemos colocar que Gramsci diferenciava claramente o folclore do conhecimento. Ele entendia o folclore de uma maneira diferente de nossa atual concepção. Para ele, não representa o conjunto de saberes populares, eminentemente empíricos, mas um conjunto de tradições que perderam a ligação com sua própria origem. É um conhecimento que escapa de qualquer juízo crítico, e nem mesmo é digno deste nome, porque perde seus laços com a realidade. Nessa visão, o folclore é um costume arraigado que já não sabemos dizer porque o temos. O folclore não representa cultura, mas mistificação. Só que é o folclore que tem ligações mais fortes com a natureza.
Gramsci entende que a cultura afasta o homem da natureza porque coloca ambos em oposição. Quanto mais o homem adquire saberes, mais se afasta de seu estado bruto, de sua condição animal. A cultura só é possível se colocarmos nela um sentido abstrato. Esse sentido pode ser artístico, religioso, metafísico, mas é, de uma forma ou de outra, algo que vai além da materialidade do concreto, do tangível. Partamos para alguns exemplos: quando observamos uma tela, não nos atemos unicamente ao material utilizado, como as tintas, os vernizes, as colagens, bem como não nos fechamos exclusivamente na figura fisicamente retratada, mas temos a capacidade de lidar metaforicamente com a forma expressa. Uma mulher não é apenas o retrato de um ser humano do sexo feminino, mas um símbolo da beleza, da sensualidade; o cais de um porto não é o local onde atracam e de onde partem os navios, mas é um distintivo da despedida e das saudades; um trem correndo nos trilhos não representa unicamente um meio de transporte, é também símbolo do destino inexorável, da força que nada pode deter. O homem é o único ser capaz de articular com símbolos, e este é um dos seus principais distintivos. Quanto mais o homem se aprofunda na cultura, tanto mais desenvolve sua capacidade de trabalhar com dimensões abstratas, e a cada vez que isso ocorre, amplifica-se seu distanciamento de um estado bruto, ou seja, de sua natureza como animal e, por extensão, destaca-se da natureza como um todo.
Quando pensamos na humanidade como o conjunto de seres físicos dotados de articulação simbólica (como já falei neste e neste post) e abstração, e se concluirmos que o patrimônio cultural humano tem sua riqueza expressa pela transmissão e acumulação de conhecimento, teremos que o homem não é nada dissociado de seu sentido histórico. As transformações do ambiente, a relação do homem com a natureza, entre si e com os demais seres, estão todas escritas na história. Sua natureza exige historicidade e, no limite, cultura.
Em um primeiro momento,  pode parecer que o afastamento da natureza pela via da cultura fará com que o homem não tenha mais capacidade de se relacionar com o meio ambiente mais preservado. O sentido não é esse, e, até pelo contrário, é fator que tende a beneficiar esse contato, justamente por ampliar a bagagem de recursos que temos para conhecer o que é bom e o que é ruim no desenvolvimento destas relações, como é, por exemplo, o caso da ecologia e da engenharia ambiental.
Muitíssimo bem. Descrevemos o efeito, mas vamos tentar compreender a causa. Mas, para entender como Gramsci chegou a estas conclusões, precisamos dar uma bela volta.
Em primeiro lugar, é preciso saber que nosso herói foi o pioneiro do marxismo na Itália, que nos idos de 1920 tinha como filosofia preponderante o historicismo de Benedetto Croce (filósofo interessante, é bom conhecê-lo – entender não é concordar). Nessa linha de pensamento, a filosofia aproxima-se da História mas se mantém distante do fato histórico. Ela tem caráter especulativo, aproximando-a da metafísica. Para Gramsci, a filosofia deve partir de um princípio oposto, que é a ligação direta com os fatos. Não se pode utilizar métodos que não possam ser verificados no transcurso dos contextos históricos, sob a pena de não se chegar a lugar nenhum. Funda uma filosofia da práxis, que não assumirá possibilidades que não tem como aferir. Isso significa que as explicações dos fatos devem se ver livres de quaisquer resquícios de misticismo e transcendência, inclusive filosóficos, desprezando a especulação e focando-se no tempo e espaço em que a humanidade vive. Assim, cada teoria deve ser confrontada dialeticamente com a prática para conferir a validade de suas teses.
Com base nesses princípios, Gramsci elabora sua tese mais central, que é a teoria da hegemonia. De acordo com o marxismo clássico, a sociedade é estruturada em classes. Para que uma delas possa repassar seu ideário às demais, é necessário que tenha a propriedade de possuir autoconsciência e obter consenso dentro de si mesma, gerando uma noção clara de princípios e organização. Essa é a chave para que reúna condições de se tornar uma classe de vanguarda, em condições de liderar, ou seja, uma classe dirigente, ainda que não esteja no poder. O passo seguinte consiste na transmigração dessa autoconsciência para as demais classes componentes do organismo social, convencendo-as de sua capacidade de guiar seus caminhos. Essa capacidade se fundeia no confronto com a impossibilidade da classe dirigente no exercício do poder dar respostas às questões das classes que lhe são subalternas. Ao receber o consentimento da maioria social, a nova classe dirigente passa a ser classe dominante, estabelecendo uma hegemonia que lhe permite acessar os meios de exercício de poder. Essa transição nem sempre ocorre de maneira pacífica, podendo ocorrer a violência e a guerra.
Nesse ponto, as elucubrações de Gramsci começam a se distanciar do marxismo clássico, que preconiza motivos econômicos para a luta de classes. Nosso italianinho vê na educação o principal motor da revolução social.
Como já disse, uma classe que pretende dirigir deve possuir consciência de si mesma. Isso significa conhecer seu papel histórico, saber porque é oprimida e até onde pretende chegar. Para tanto, é necessário que todos os seus componentes tenham acesso à cultura geral. Isso ia de encontro às teses fascistas então em voga, que isolavam o saber das classes subalternas ao trabalho, enquanto a cultura em um sentido mais amplo era reservada à elite dominante. Não é possível  que um indivíduo possa compreender adequadamente sua posição no universo se a ele é destinada apenas uma parte do todo. O ensino deve ser completo, holístico, total, e só dessa forma a pessoa tem ferramentas de conscientização.
Com isso, a escola deve ser humanista, e não meramente tecnicista.  Os alunos precisam aprender as leis e mecanismos que regem sua vida. Não se trata de saber apenas que “Ivo viu a uva”, mas saber quem é Ivo, qual é sua origem e seu papel na mecânica social, de onde veio a uva que o Ivo viu, como foi cultivada, se custa caro ou barato e et cetera (Esse exemplo é de Paulo Freire, que obviamente bebeu em fontes gramscianas). Dando a ferramenta do conhecimento e da compreensão ao povo, quebra-se a alienação e forma-se um novo consenso e uma nova consciência, constituindo as necessidades de entendimento do lugar histórico e função social. Essa unidade é imprescindível para que a classe em questão consiga apontar caminhos para a solução dos conflitos de forma mais adequada que a classe politicamente dominante. Esta só consegue se manter no poder por conta da posse dos meios de coerção, mas que viverá ad aeternum na dependência de suas armas.
Com esses princípios, Gramsci pensa na necessidade da existência do intelectual ativo. Não basta que o pensador elabore suas teses acerca da cultura, é preciso que ele as coloque em prática, transmitindo seu conhecimento às massas e educando-as. Esses intelectuais são oriundos da própria classe, e deve devolver a ela o seu saber, em um processo de retroalimentação. Isolar os pensadores é um erro, que tem a tendência em colocá-los em uma nova classe, destacada daquela a quem deveriam dedicar seus esforços.
Gramsci é um intelectual interessante, que foi seminal para as teorias educacionais que se desenvolveram a partir da década de 1960, quando os seus escritos da prisão começaram a ter maior divulgação. Espero ter ajudado a jogar um pouquinho mais de luz sobre a questão levantada pelo artigo.
Recomendação de leitura:
A obra de Gramsci foi, em sua maior parte, escrita na prisão. Por isso mesmo, é bastante fragmentária, o que não a torna menos edificante.
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999.

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