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sábado, 27 de abril de 2013

Sobre os novos acompanhantes dos navios negreiros

Olá!

Olhem só que coisa curiosa. No último sábado, fui presenciar, pela primeira vez na minha vida, um casamento homoafetivo. Desde que recebi o convite, meu lado progressista começou a me dizer:
- Oba, novidades!!!
Já meu lado conservador me cochichava:
- Xi, novidades!!!
Trocando em miúdos – se por um lado eu achava interessante e curioso observar como se modifica a história e a sociedade diante dos meus olhos, por outro fiquei um pouco retraído por achar que um eventual “excesso” de modernidade viesse trazer o desconforto típico de quem vê suas convicções e seu modo de ser discutidos. É muito difícil para nós aceitar pacificamente que se contestem fatos que nos foram colocados, desde a infância, como axiomas incontestáveis. Lembram da famosa quadrinha?

Homem com homemMulher com mulher
Faca sem ponta

Galinha sem pé
Dessa forma, estava em uma posição um pouco estranha, ensanduichado entre minha necessidade de crer que qualquer maneira de amor vale a pena e meus preconceitos.

Acabou que foi tudo muito bonito. As noivas transpareciam uma felicidade sincera, muito mais do que nos megaeventos em que se transformaram os casamentos ditos convencionais, que parecem tentar condensar em um único dia todo o conto de fadas que se deseja ter na vida conjugal. É bem verdade que um certo ar de “não sei o que fazer agora” estava assentado à frente da juíza de paz, que também tinha diante de si a novidade do primeiro casamento homo ocorrido em seu cartório. Mas aos poucos o ambiente foi desanuviando (e nem temos a desculpa do álcool, ausente que estava), as pessoas se soltaram e se divertiam muito, em uma festa bastante singela – um café da manhã. O luxo do evento consistia basicamente na presença de um competente saxofonista, acompanhado de ótimo repertório. Tudo veio num crescendo até o clímax, quando o bolo foi cortado ao som de Carinhoso, do Pixinguinha. O clima já estava tão bom que a música foi cantada em uníssono.


Desejo às noivas muito boa sorte, e que a felicidade seja a tônica de seu convívio. Ambas saíram de casamentos convencionais frustrados, e vão encontrar uma sociedade ainda indisposta a reconhecê-las como senhoras de suas vidas. Não se modifica a estrutura social do dia para a noite.

A maneira como o mecanismo social enxerga o sexo se baseia na dicotomia reprodução e prazer, sendo que a primeira seria o objetivo precípuo da espécie, que é se preservar. Quanto ao segundo, além de secundário, tem todo um substrato de pecaminosidade, de erro, de disfunção. Toda prática sexual que divirja do modelo papai-mamãe, como o sexo oral e o sexo anal, são ainda enquadrados pelo viés do tabu. Neste sentido, nossa sociedade é cínica. Isso porque sabemos da facilidade de encontrar amantes e prostitutas, que realizam desejos ocultos que não são admissíveis para os impolutos cônjuges.

Pior ainda é a relação entre pessoas do mesmo sexo. É sabido que este é um mato do qual não sai coelho, e por isso mesmo não há como se falar em função procriatória da sexualidade, mas apenas e tão somente do prazer.
Ora, nossa sociedade não é calcada no hedonismo em todos os aspectos? Por que deveria ser diferente aqui? Os homoafetivos querem casar, viver juntos, compartilhar o plano de saúde, fazer declaração conjunta do imposto de renda, sem que nada disso tenha o peso de uma condenação.

Quando eu escrevi sobre a parada gay, meu amigo Vithor fez um comentário interessante. Serão os homoafetivos os novos negros do Brasil? Serão eles os recentíssimos ocupantes dos navio negreiros? Parece-me que há mais diferenças que semelhanças. Vamos analisar.
Em primeiro lugar, é importantíssimo dizer que sim, há seriíssimas analogias possíveis, porque há um fundamento comum: as pessoas são julgadas não pelo que são, mas pelo o que aparentam ser. Os negros sempre foram considerados preguiçosos, indolentes, criminosos e incapazes por conta de sua cor, que acabava por defini-los. Nunca foi observado com a atenção merecida a condição social em que foram alocados. O mesmo se aplica aos gays. São promíscuos, contrários à família tradicional, ineptos aos bons costumes. Sua condição sexual já os coloca em uma condição defensiva, excluída. Também já os define.

Qualquer condição generalizante já serve para colocar em tela nossos preconceitos, mesmo quando são, entre aspas, “positivos”. Veja o caso dos japoneses e seus descendentes. Sempre foram tidos como bons trabalhadores, estudiosos, ordeiros. Trata-se de costumes que foram bem recebidos por sua utilidade. Mas vejam só: nosso senso comum diz que os trabalhadores dedicados são puxa-sacos, que os alunos laboriosos são nerds (CDF’s, como se dizia em minha juventude), que respeitar a lei e a ordem é babaquice em uma sociedade que quer levar vantagem em tudo – lei de Gérson. Percebem como brota a semente do preconceito?
E dessa forma nossas “poronguinhas” (epa!) vão se enquadrando ao modelo e, não raramente, encontramos descendentes de nipônicos desidiosos, insolentes, arruaceiros...

Mas aqui há uma constatação que diferencia um pouco a situação: apesar do reconhecimento dos homoafetivos como minoria, os negros nunca foram retirados dos navios negreiros. As favelas são novas senzalas, como apregoa Lobão. E a sociedade resiste bravamente à sua ascensão, como podemos perceber na discussão, por vezes violenta, da concessão de quotas universitárias aos afrodescendentes, como já observei neste post. O máximo que podemos fazer é concluir que os gays agora remam junto aos negros nos navios.
Outra diferença importante está na própria aparência. Um homossexual pode, apesar da dor que isso causa, manter-se oculto por anos a fio, e mesmo pela vida inteira. Essa é uma condição injusta, mas é uma defesa possível. Aos negros, esta prerrogativa é negada. O pomo da discórdia está em sua pele, em seus traços, um negro não tem como esconder sua condição. A quem olha pelo prisma do preconceito, um único contato basta para erguer os muros, sem nem ao menos ser possível constatar qualquer outra qualidade. Já vi comentários horrorosos, como o fato de que a população carcerária é predominantemente negra. Ora, cara-pálida (epa!). Isso não é resultado de uma predisposição genética, mas de uma condição social na qual foram arremessados, desde que foram emigrados à força para o Brasil. A grande camada negra continua até os dias de hoje na classe mais rasteira da pirâmide social, e de lá encontra imensa resistência para se verem livres. Qualquer benefício que se conceda aos mais pobres vai atingi-los, evidentemente. Outra coisa nojenta que já vi são as fichas de cadastro para se candidatar à adoção de crianças. Este cadastro inclui as características desejadas da criança a receber um novo lar. Isso inclui dados como cor, sexo, idade, se são aceitas crianças com deficiência e etc. Existia, até bem pouco tempo atrás, um item que perquiria o candidato se este aceitava crianças com “traços negróides”. Traços negróides! Isso significa que não basta a criança não ser negra; ela também não pode ter nenhuma característica que a faça parecer negra. Ainda bem que removeram esta aberração do formulário – o que, a rigor, não quer dizer nada, porque o candidato pode perceber os tais “traços negróides” ao ver a criança, e recusá-la.

Quanto aos gays, estão mais espalhados pelos degraus econômicos. Ser homoafetivo não significa, de bate-pronto, ser pobre, como ocorre com a grande maioria dos afrodescendentes. Até mesmo por isso, eu não seria favorável a uma quota de ingresso para eles. O foco é diferente. Apesar de que, no exemplo citado da adoção, um casal hetero de negros teria menor dificuldade em atingir seu objetivo.
Voltemos às semelhanças. Um dos espaços mais difíceis que tanto negros quanto gays tem a penetrar é no exercício de sua religiosidade. Neste post, pude fazer observações relativas ao vilipêndio que as religiões negras, mais especificamente a umbanda e o candomblé, sofrem por parte de denominações de matriz ocidental. Coincidentemente, é justamente nelas que os homossexuais encontram melhor espaço, o que agrava o preconceito contra elas. Bastaria um simples cuidar da própria vida para que o convívio fosse garantido de maneira civilizada. Mas vou falar um pouquinho mais desta questão no final deste texto. 

O lado bom é que, ainda que a custo, estas minorias têm obtido conquistas. Pesquisa recente realizada nas universidades federais demonstrou que os temores dos detratores das quotas eram feitos de areia, e se desmancharam no ar ao ser constatado um desempenho de mesmo nível dos quotistas com relação aos alunos convencionais. Com isso, temos não só uma prova da eficiência das quotas, mas também a presença de um indicativo de boa vontade por parte da sociedade como um todo, não é mesmo? O mesmo pode ser dizer com relação à possibilidade cada vez maior de se obter uniões estáveis. Não somos moderninhos?
Sei não. Ao compararmos o pensamento de dois dos nossos mais importantes sociólogos, Gilberto Freyre e Florestan Fernandes, podemos perceber que nossa visão pode estar sendo turvada pelas convicções típicas de nossa categoria social. Senão vejamos.

Gilberto Freyre elaborou uma das mais pioneiras obras de constatação da formação do ethos brasileiro. Trata-se do livro “Casa Grande e Senzala”,  onde o autor defende uma tese denominada democracia racial.  De acordo com esse pensamento, o Brasil tem uma interpenetração social muito maior do que em outros países porque o mais significativo sistema social que imperou na formação de uma identidade propriamente brasileira foi aquele desenvolvido na relação entre os senhores de terras e seus subordinados, notadamente os escravos e os indígenas. Essa relação é intensa porque havia um intercâmbio sexual recorrente, que gerou ampla miscigenação. Esse fato serviu para diminuir o distanciamento racial entre as diferentes classes, diminuindo consideravelmente os antagonismos que puderam ser observados em outras nações, especialmente as europeias. Deste contato sexual, resultou um convívio que aproximou as etnias culturalmente, sempre guiado pela casa grande, ou seja, pela elite dominante, distribuidora de justiça e de benesses que era, exercendo o governo real do antigo Brasil. Temos então um cruzamento inter-racial benéfico porque permissor de um convívio menos conflituoso,  com uma construção social consequentemente mais sólida, porque amalgamada em um sentimento de pertença mútuo, ainda que guiado a partir da classe de cima.
A sociologia de Gilberto Freyre teve grande aceitação até meados do século XX, quando começou a ser contestada com mais veemência, até ser competentemente contraposta por Florestan Fernandes. Este pensador nasceu no Brás, bairro operário de São Paulo. Em comparação com Freyre, estava do seu lado oposto, ou seja, lançou um olhar a partir das camadas pobres da população, dos cortiços, das favelas, da periferia, da senzala. Por este ângulo, a questão é vista muito diferentemente. O preconceito não foi amenizado pela miscigenação, mas apenas varrido para baixo do tapete. A democracia racial seria uma explicação aceita como convincente por ter a capacidade de ocultar um complexo de culpa arraigado nas elites: o preconceito de não ter preconceito. Desta forma, a classe social a qual pertencia a elite teria uma justificativa para perpetuar confortavelmente sua posição. A verdadeira intensão que havia no cruzamento inter-racial abertamente praticado no Brasil consistia em obter um "branqueamento" dos negros e indígenas. Não só sua cor, mas sua cultura deveria se adequar aos paradigmas europeus, e a absorção de uma pequena parte de suas cultural ao ethos geral foi unicamente uma ferramenta de contenção de conflitos.

Pois bem. As teses sociológicas mencionadas são voltadas a aspectos raciais, mas podemos migrá-las facilmente para a questão da homoafetividade. De que maneira nossas convicções não ocultam os preconceitos? As concessões feitas a negros, gays e outros grupos minoritários são provas de nossa vontade de conceder equanimidade a camadas cada vez maiores da população? Ou são apenas mais uma oportunidade de nos colocarmos como imunes a preconceitos, para acariciar nossa autoestima? Para onde estamos apontando? Para o fim ou para a perpetuação da casa grande?
Tenho um grande medo, na verdade. Vi uma repórter questionando a um líder religioso sobre o que ele achava sobre o fato de que 338 homossexuais terem sido assassinados em 2012. O iluminadíssimo respondeu que mais de 40.000 heterossexuais foram mortos no mesmo período, o que torna o número insignificante. O que o ilustre representante se esqueceu foi de mencionar que nenhum deste 40.000 foram mortos pelo simples fato de serem heterossexuais. E também não mencionou que boa parte destes heterossexuais que foram mortos eram negros, jogados diante do muro de apedrejamento porque seus locais de culto são considerados “casa de encosto”, fonte do mal, em flagrante desrespeito à sua cultura. Ele, líder religioso que me recuso a mencionar o nome, põe seus dízimos e gritaria a serviço da anti-cidadania, sobre a discutível autoridade que exerce sobre milhares de pessoas, esquecendo da lição primordial do cristianismo, aquela que até mesmo os ateus tem de concordar: a lei do amor. E, se há amor, deve haver respeito, principalmente em coisas que não nos diz respeito.

Tenho um grande medo, porque a principal crise de nosso mundo não é de violência, mas de ignorância.

Recomendações de leitura

Aproveitando que estou assinando um libelo contra os preconceitos, apesar de lutar diariamente contra eles em mim mesmo, coloco as obras principais dos sociólogos que citei, para serem lidas da maneira mais imparcial possível:

FREYRE, Gilberto. Casa Grande e Senzala. Rio de Janeiro: José Olympio, 1966.
FERNANDES, Florestan. Fundamentos empíricos da explicação sociológica. São Paulo: T. A. Queiroz, 1980.

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