(Fazemos tudo de nosso gosto e vontade ou temos uma mão que nos guia passo-a-passo?)
Olá!
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Depois da noite dos queijos e morangos colhidos
frescos, o tempo deu uma boa firmada. É estranho. Neste ano da graça de
2022 (momento dos acontecimentos da viagem, não do texto), temos tido
temperatura mais baixa do que o convencional, com bastante chuva. Os tontos que
negam o aquecimento global se locupletam quando isso acontece: "tá vendo?
Onde tá o aquecimento?". Mas hoje não. Sol a pino e mais de trinta graus,
mesmo na altitude. É a senha para procurar água fresca. Vamos a Bueno Brandão.
Estamos aqui em uma cidade com média de altitude um tanto elevada, mesmo para os padrões serranos que vivemos nesses dias, sendo que a praça central está a 1300 metros.
Nesta mesma praça, as bicas fornecem água mineral bastante útil para um dia especialmente quente.
Em um outeiro que a torna mais um pouco elevada, fica a
paróquia de Bom Jesus, com sua arquitetura meio maneirista e escadaria cercada
por jardins.
Bem aos seus pés, encontramos o Centro de Apoio ao Turista, onde conseguimos um ótimo mapa da cidade. Além do receptivo, é um local onde também há muito artesanato e uma biblioteca, sem contar que é um belo edifício.
Antes de pegar o rumo para as cachoeiras, demos um pulo à Vinícola
Fidêncio, onde fomos bater um papo com o próprio, além de bebericar os muitos
produtos que lá existem. Não é um bom lugar para motoristas responsáveis.
Já no caminho para a Cachoeira dos Machados, uma
curiosidade: um castelo medieval em plena estrada. Causa estranhamento, sabendo
que o Brasil, na época dos castelos, tinha no máximo as ocas dos índios. Disseram-nos
pertencer a um médico de nome Bispo de Sá e que o aluga para casamentos e outros
eventos.
Mas vamos ao principal. No curso do Rio das Antas,
encontramos a Cachoeira dos Machados 1. Dada a chuvarada dos últimos dias,
estava bastante barrenta, mas, mesmo assim, é bastante bonita de ver. Fica
dentro de um sítio de hospedagem, o que garante uma estrutura bem legal para o
visitante.
Depois do almoço, fomos procurar outra cachoeira para passar
a tarde. Chegamos a uma das principais, a Cachoeira dos Félix, com água de
nascente cristalina.
Seu acesso exige uma bela descida a pé, onde os
proprietários utilizaram mais de seiscentos pneus para construir seus trezentos
e tantos degraus. O problema é a volta.
Além do tradicional poço e da água geladíssima, o lugar
possui uma trilha ao longo do curso d'água formado.
Reclino em uma pedra para me secar, fico observando o
espetáculo da natureza construído na minha frente. E é aqui que me dá a sanha
de filosofar. Deveria estar pensando na beleza que vejo à frente, ou no almoço,
ou na morte da bezerra, mas os pensamentos me vêm à cabeça, sem que eu possa
evitar. Por que será que é assim? Olho para a cachoeira e há o impulso de
pensar em uma mão que montou tudo aquilo, mas logo eu fixo o foco na cabeleira líquida
que fica na crista da água que cai e vejo as pequenas gotas que se destacam.
Se houvesse um construtor, a natureza não teria tantas
imperfeições, penso eu. Entretanto, um fato se descortina inexorável: aquela
gota que eu miro está exatamente lá onde eu a vejo agora.
A pergunta que me brota é: essa gota está aí por um acaso?
Ela não poderia, sei lá, estar sendo bebida por um bicho, enchendo as ruas de
uma cidade, sendo processada por algum corpo, refrigerando algum motor, parada
num vaso criando mosquitos, no canto dos olhos de uma menina triste, ou ela
tinha que estar exatamente aí, caindo com aceleração de 9,8 m/s de uma altura
de 40 metros, para contemplação de um gordo barbudo, mas sem bigode, que também
não controla o fato de estar fazendo exatamente estes questionamentos? Vivemos
em aleatoriedade ilusória? Nossos passos são predeterminados?
Uma das regras mais características da Ciência é a capacidade de fazer previsões. Se eu dispuser de algumas informações fundamentais, conseguirei estabelecer com precisão como um fenômeno se desenrolará. Por exemplo: se eu der um chute em uma bola com força tal, direção tal, atrito do campo tal e força do vento tal, é inevitável que ela vá para um local perfeitamente calculável. Se não foi, faltou algum fator, e não uma mãozinha metafísica marota.
Isso encantou o físico Piérre-Simon Laplace, que, ante todas
as descobertas realizadas por Isaac Newton et caterva, verificou a
possibilidade de que absolutamente tudo no universo era previsível. De fato, em
uma cabeça matemática como a de nosso herói, toda a natureza podia ser reduzida
a fórmulas, como acontece com a gravidade, a gravitação, as forças magnéticas e
todas as outras. Em um contexto onde todos os fenômenos naturais estivessem
sistematizados nas formulações, seria possível prever qualquer acontecimento,
vaticinando o futuro de qualquer molécula.
Ocorre que Laplace viveu em uma época onde ainda não se
conhecia a mecânica quântica. Se houvesse vivido, veria que as coisas não são
assim "simples". Não que seja impossível de se fazer previsões nessa
área da Física, mas há dificuldades inerentes ao princípio da incerteza de
Heisenberg, cientista alemão que cuidou da mensurabilidade de partículas
subatômicas. Segundo este princípio, quanto mais sabemos sobre a velocidade de
uma partícula, menos sabemos sobre sua posição, porque não se consegue manter o
par de referenciais. Para que eu saiba com precisão onde uma partícula estará
daqui a um intervalo de tempo, eu preciso conhecer ambas as variáveis, e se eu
não tenho a certeza do dado presente, também não tenho do dado futuro. Dessa
forma, o funcionamento universal é caótico, e não organizado, como adoraria
Laplace, e o que teríamos são probabilidades, e não determinações. Não vou me
aprofundar na questão, porque não manjo dos paranauês e já é o suficiente para
o que quero propor aqui.
Embora seja lícito supor que nosso pobre Laplace
provavelmente se sentiria decepcionado com seu palpite furado, não podemos
descartar a possibilidade de, um dia, o princípio da incerteza ser resolvido e
que sua profecia volte a fazer sentido. Se pensarmos muito radicalmente, lembraremos
que tudo é feito de átomos, inclusive o sistema nervoso por onde trafega os
pulsos elétricos que nos fazem perceber o mundo. Se há chance de se prever todo
o movimento cósmico, podemos talvez pensar que mesmo nossos pensamentos são
predeterminados, como a gota da cachoeira.
Será que isso faz sentido? É uma discussão longa, que se
arrasta há tempos. O velho Santo Agostinho, por exemplo, já dizia que, se não
somos livres para escolher, não há sentido em falar de racionalidade. Um ser
racional é aquele que possui predisposição para fazer opções, inclusive aquelas
que redundam no mal. Se assim não fosse, não existiria sentido no pecado: quem
não pode escolher, não pode ter culpas pelos atos e escolhas. O livre-arbítrio,
nesse caso, é um dom divino que dá ao homem capacidade de guiar sua própria
vida, ainda que seja pelo mal. Já na Reforma Protestante, Lutero prefere dar
mais ênfase à graça divina, colocando para o homem a fé como meio salvífico, e
não suas escolhas. Calvino vai mais fundo ainda, reabilitando a predestinação (vide),
tendo como fundamento as afirmações bíblicas de onipotência divina. O homem
recebe sinais de sua graça, mas nada pode fazer em relação à sua sina, apenas
viver de acordo com as regras que lhe são dadas. Volta e meia vejo algum
floreio dizendo que há escolhas dentro da predestinação, mas, infelizmente, são
argumentos cheios de contradições lógicas.
Com o advento do Positivismo,
a escola filosófica que festejou a ciência como solução para todos os problemas
e que só colocava como conhecimento válido aquele redutível a fórmulas, a
hipótese do determinismo foi elevada aos altares, principalmente com Hippolyte
Taine. Já aqui, tínhamos que todo o aspecto ambiental e genético
influenciava na maneira como um ser humano pensa, inclusive colocando muito na
conta o fator racial.
Embora o Positivismo de Comte e o Determinismo de Taine
tenham sofrido duras derrotas com a tecnologia de guerra, que demonstrou que o
aperfeiçoamento humano tinha mais a nos por medo do que esperança, o fato é
que, por outras vias, a ideia de um universo ordenado inclusive a nível da
pessoa ganhou força a partir do século XX. O próprio marxismo se encarrega de
demonstrar parcialmente como a ideologia e as superestruturas delineiam um
mundo pelo qual os pensamentos são movimentados dentro de limites. As relações
estruturais de uma sociedade são construídas de acordo com a proposição da
manutenção dos status quo, especialmente na questão econômica. A partir disso,
todo o conjunto político, judiciário, religioso e, no limite, interrelacional é
construído, de forma a escrever o trajeto por onde os componentes da sociedade
pensam.
No entanto, é com a corrente do Estruturalismo
que a ideia de um determinismo social passa a ganhar mais corpo. Grosso modo, o
Estruturalismo entende que todos os aspectos humanos derivam de relações com um
sistema estabelecido, e é sobre essa estrutura que toda a realidade se assenta.
Por exemplo, nós gostamos de futebol porque estruturalmente esse esporte está
inserido tanto na nossa cultura, quanto em nossas relações econômicas, já que
ele movimenta vários recursos. Nativos da ilha de Tonga não têm futebol na sua
lista de preferências porque ele não faz sentido lá, não pertence às suas
estruturas. O Estruturalismo, mais que uma corrente filosófica, é uma maneira
de pensar o mundo, e tem seus braços na Linguística,
na Antropologia,
na Psicologia,
na Sociologia
e assim por diante.
Um estruturalista diria que as pessoas se adaptam à
estrutura social à qual pertencem, e isso guiaria sua maneira de pensar.
Notaram que sabor forte de causalidade que isso tem? Algo é assim porque
anteriormente tais condições eram assado, de forma a moldar o presente. Isso,
por exemplo, ajudaria a explicar porque estou na cachoeira nesse momento. Se eu
for recuando no tempo, verei que estou aqui porque tirei um descanso, porque
trabalhei por um determinado período, porque entrei em um determinado emprego,
porque estudei para um determinado trabalho, porque me senti atraído por uma
determinada carreira e assim para trás. Cada um dos pontos de inflexão já
estaria descrito na própria relação de causa e efeito: como eu recebi uma
educação específica, tive uma história específica, ouvi opiniões específicas e
fui formado em uma cultura específica de uma casa específica, cada escolha que
fiz na vida não poderia ser diferente do que foi, e a escolha, na verdade, é
uma mera ilusão.
Mas o meio é tão engessante que torna absolutamente inviável
a escolha do indivíduo? Não é o que pensam os existencialistas,
por exemplo. Para eles, não faz sentido entender o ser humano como se fosse
qualquer outro objeto no universo. Uma pedra, uma bola, um aspirador de pó ou
uma agulha de costura, sejam naturais ou manufaturados, não possui o elemento
volitivo que nos caracteriza. No limite, nem mesmo um animal, porque a ele cabe
seguir seus instintos e cumprir suas necessidades imediatas. Dono de abstração
e capacidade de escolha, não há como estabelecer um plano predeterminado que
dirá o que uma pessoa será. Ela, no final das contas, sempre trará consigo uma
consciência e uma liberdade para fazer suas escolhas, mesmo que não seja
nenhuma. Os existencialistas entendem que um determinismo, seja ele qual for,
nada mais faria do que ocupar um lugar de divindade, que preestabelece cada
lugar para cada coisa no universo, o que é um erro, reputam eles. Por muitas
vezes, nossas precondições sociais e históricas estabelecem limites da mesma
forma que as religiões fazem, ao impor coações no que podemos ser, e, aí sim,
temos um destino desenhado.
É evidente, no entanto, que o meio gera a rede de
influências inegável nas escolhas do contribuinte. Uma pessoa que more em uma
cidade com um time vitorioso terá uma bela motivação para torcer para ele, mas
isso não pode ser imposto como regra. Portanto, a partir do Existencialismo,
temos um direcionamento para o mesmo universo probabilístico da mecânica
quântica, incerto por nossa capacidade de escolha, mas com algum grau de
previsibilidade, dado o ambiente que nos cerca e baliza limites.
E de repente eu já nem estou mais olhando para a gota que se
perde no restante da água, com a visão perdida de quem pensou e se perdeu, já
passando para a próxima questão, escolhendo (ou não) o que fazer logo em
seguida. Eis uma das grandes desvantagens em não se seguir uma religião: os
fieis já tem tudo isso pronto, tudo isso dado, seja para estabelecer a
necessidade de se fazer escolhas, seja para deixar tudo na mão de seu deus. Tudo
deve ser pesado e sopesado, e a incerteza é sempre o resultado final.
Desvantagem? Não sei. Também disso não tenho certeza. Bons
ventos a todos!
Recomendação de leitura:
Vai para o ótimo Santo Agostinho. Discorde de tudo o que ele
diz, mas saboreie a construção de argumentos com lógica impecável.
SANTO AGOSTINHO. Sobre o Livre-arbítrio. São Paulo:
Vozes, 2021.
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