(A psicanálise é uma pseudociência? Não sei bem, mas como filosofia, é ótima)
Olá!
Para dar continuidade nas ideias, é preciso dar continuidade
na vida, não é mesmo? E na minha pequena esfera, ela sempre passa pelo
cafezinho da manhã, aquele que te sintoniza com essa outra esfera, maior
pouquinha coisa, a que chamamos de universo. E, como o texto que deu origem a
este falava sobre um método saído dos laboratórios químicos, começo minhas
reflexões por outro semelhante, conhecido pela sua marca, o Kalita.
Existem vários modelos desta fabricante japonesa, sendo o
mais clássico um que se assemelha a uma xícara, feito de metal. O que eu tenho
é um pouco mais metido a besta sofisticado, feito de vidro. O conjunto
todo é composto por um decanter bem parecido com uma Chemex, o porta-filtro, o
seu suporte e o filtro wave.
Este filtro é bastante semelhante a uma forminha de cupcake,
e o objetivo é manter espaço para aeração entre a superfície lisa do
porta-filtros e as ranhuras do filtro.
A base do porta-filtros contém o pulo do gato do método.
Sendo uma base chata, em tese a água percolada faria um acúmulo que favoreceria
a superextração, o que significa amargor. Para que a vazão seja adequadamente
regulada, a Kalita possui um furo tríplice, permitindo que a velocidade do
fluxo fique mais em função da moagem do que da retenção gerada.
Como há pouco contato entre a parede de vidro e o filtro
wave, a intensa aeração permite um blooming muito bonito, não escondendo a
idade do café que estamos utilizando. Para quem não sabe, uma boa pré-infusão faz
liberar o carbono presente no café, e quanto maior o borbulhar, mais nova é a
torra do grão, e mais aromas são desprendidos.
O resultado final é um método elegante e funcional, embora
haja necessidade de cuidados pelo fato de estarmos lidando com materiais
frágeis.
Nome do utensílio: Kalita wave (porta-filtro de vidro)
Tipo de técnica: percolação em filtro de fundo plano
Dificuldade: Baixa
Espessura do pó: Médio
Dinâmica: um filtro de papel ondulado e de base chata é inserido no suporte metálico que se encaixa ao decanter. Após escaldamento, o pó é despejado no fundo do filtro e a água é despejada aos poucos, de forma a formar uma cama de borra o mais homogênea possível.
Resíduos: Mínimos.
Temperatura de saída: Média
Nível de ritual: Médio
O proverbiozinho de boteco com que abri este texto tem motivo. Se vocês, diligentes e episódicos leitores, atentarem à sequência que estabeleci neste humílimo espaço, verão que, por vezes, restam esclarecimentos que são maiores do que a questão que lhes deu origem. Juntando utilidades e agradabilidades, vou admitir que eu estava me segurando para abordar o tema de agora, mas não posso mais deixar passar. No último texto que redigi, falei sobre a questão dos arquétipos, e fiz uma observação maliciosa: a de que se nem a própria psicanálise dá completo fundamento à questão, que fará blogueiros que estão ou preocupados em vender seus produtos, ou em ganhar ibope. Isso porque a própria psicanálise, como disciplina científica, é discutível. Chegou o momento de enfrentar esse assunto.
“Enfrentar” é um termo apropriado, porque eu gosto de
psicologia como um todo, e da psicanálise em especial, porque, se não se
apresentasse como ciência, seria filosofia de altíssima monta. É por isso que
eu nutro grande simpatia pela psicanálise. Se Freud não se proclamasse
cientista, mas filósofo, estaria entre os maiores, porque suas especulações e
de seus seguidores são fantásticas do ponto de vista da concatenação lógica e
da especulação por caminhos sedutores para resolver os mistérios da mente.
Mas dizer se psicanálise é ou não pseudociência implica em
entender o que caracteriza uma ciência. Não foram poucas vezes em que abordei o
tema aqui, mas preciso dar uma pincelada nem tão pequena para balizar este
texto e não os obrigar, meus quase extintos leitores, a ficar lendo e mais
lendo. Já considero animador se este aqui já servir para marcar meu ponto.
Em primeiro lugar, o que diferencia a ciência da filosofia?
É simples. Ambas são acionadas quando temos um problema que precisamos
resolver, só que isso o senso comum também faz. Mas é que ambas são frutos de
concatenações lógicas, que são desnecessárias para esse pensamento mais
intuitivo e desregrado do acriticismo. Só que a lógica é suficiente para a
filosofia. Se os encadeamentos fizerem sentido, ok*.
Isso não basta para a ciência. Para discernir sobre esta
última, é indispensável pensar no conceito de método. Todos eles possuem
premissas básicas, que servem exatamente para balizar sua proposta: dar um
caminho e um conjunto de regras para a execução de procedimentos. Vamos fazer
um comparativo profano, para ficar fácil de entender: uma metodologia para
lavar louça. Primeiro, vou esvaziar o escorredor de qualquer remanescente da
lavagem anterior, vou verificar sua limpeza e remover eventuais resíduos.
Depois, organizo as peças sujas de acordo com o critério de ordenação. Começo
lavando as peças miúdas, como talheres. Depois, parto para os copos e xícaras,
colocando-os emborcados para que escorram sem retenções, e sigo com pires e
pratos, que são colocados na vertical. Encerro com potes e panelas, colocados
sobre todos os demais elementos. Após escorrer por X tempo, seco todas as peças
com um pano limpo, na ordem inversa da colocação. Esse é o método, que tem, por
trás de si, uma premissa: higiene é item primordial para manter uma boa saúde.
Idem com o método científico - a premissa geral é proporcionar repetibilidade,
que torna possível a grande pedra de toque da ciência, a verificabilidade. Todo
o caminho para lavar a louça científica**, ou seja, as descrições e os
protocolos na realização de pesquisas e experimentos, representam um caminho
para obter essa premissa. Ou seja, a ciência não exige somente uma chave para
solucionar um problema; exige ainda que se diga como fazer suas verificações.
Eu já falei muito
sobre a falseabilidade neste meu blog, e pode passar a impressão de que ela
é o grande critério científico. Só que ela está em função da verificabilidade,
e não o contrário. É para dar robustez ao aspecto verificável da ciência que a
falseabilidade existe, porque, se você pensar bem, é a inversão da abordagem da
verificação: não vou verificar o que corrobora a tese, mas o que a invalida. De
toda forma, é verificação. Ciência é verificação.
Sendo este o critério zero, é preciso verificar se os
princípios gerais da psicanálise são, ora, verificáveis. Como sói acontecer com
as ciências humanas em geral, é compreensível que o critério seja mais difícil
de se aplicar. Afinal de contas, ciências como a sociologia
ou a antropologia
transitam entre objetos muito mais amplos do que as ciências hardcore, como já
especulei neste
texto. Quando você fala em grandes contingentes populacionais, que abrangem
idiossincrasias e percepções próprias, haverá desvios muito mais significativos
do que nas medidas objetivas da física e da química. Isso é óbvio: não temos
como colocar pessoas em tubos de ensaios (e ainda que o fizéssemos, tirar um
contribuinte de seu meio natural desvirtua o seu estudo).
Mas isso não é desculpa para que a psicanálise desenvolva
métodos que não sigam aquela mesma premissa fundamental que eu falava há
parágrafos atrás - uma ciência inclui verificações. É possível que se faça
isso?
A mim, por todos os debates que vi por aí, percebo duas
grandes dificuldades. A primeira é uma espécie de apelo à autoridade freudiana,
de modo a haver um eterno regresso à base direta dos seus pensamentos. Vamos
discorrer sobre isso.
Quando pensamos nos fundamentos da filosofia, vamos observar
que, uma vez estabelecidos Platão e Aristóteles, toda a história subsequente
derivou do pensamento de ambos. Isso não é um defeito, mas a percepção de que
eles foram complementares em sua oposição, o que deu um alcance enorme para o
pensamento ocidental. Aristóteles foi mais do que um discípulo de Platão;
foi-lhe também um contestador. Ao fazer isso, Aristóteles não só criou outro
caminho, mas o enriqueceu. Onde Platão tratava do céu, Aristóteles tratava da
terra; onde um falava dos modelos, outro aplicava as categorias; onde um olhava
para o ideal, outro via a realidade. Daí, veio a base toda (ou quase toda) da
filosofia. Aos adeptos da psicanálise, entretanto, não restou uma oposição
enriquecedora. Jung discordava da sexualização freudiana, Lacan da linearidade
das sessões de terapia, e assim sucessivamente. Há vários complementares, mas
poucos realmente divergiam nos fundamentos mais profundos e dessem caminhos
opcionais. Isso foi acontecer somente fora da psicanálise, na forma de
behaviorismo ou cognitivismo, e.g. O que isso originou? Uma espécie de
dogmatismo na palavra de Freud. A ciência não é e não pode ser dogmática. Ela é
cética, na melhor concepção da palavra, a de duvidar sempre, inclusive e
principalmente de si mesma. A psicanálise deveria, e muito, duvidar de si
mesma.
A segunda é uma grande dificuldade em se estabelecer pontos
de falseabilidade verdadeiramente efetivos, o que significa ter-se dificuldades
em verificar. Vamos começar fazendo a comparação polêmica. Religiosos dizem que
é preciso orar para obter benesses divinas, notadamente os evangélicos de
orientação neopentecostal, mas cristãos em geral tem esse mesmo pensamento.
Dizem que é preciso pedir para obter, conforme disposição bíblica. O fato,
incontestável, é que as orações falham. Se a todo mundo que se dirigisse uma
oração fosse garantida uma cura, ninguém morreria, não é mesmo? Mas as pessoas
morrem, por mais religiosas que sejam e por mais orações que façam. Daí, temos
justificativas: Deus sabe o que é melhor para nós, não sabemos o que pedimos
ou, pior ainda, faltou-nos fé. Essa última é especialmente perniciosa porque
desloca a culpa no não atendimento do apelo para quem o faz, que carrega agora
não só o peso de sua desgraça particular, mas da culpa de não ter fé
suficiente. Desta forma, o atendimento de orações nunca dá errado. Se é
atendida, é por piedade divina; se não é, é por falta de méritos do demandante.
Pensando em uma doença, ou a cura vem, ou quem suplica não o fez corretamente.
Mas não se diz que Deus não gosta de amputados? Não é preciso ir tão longe. Ore
por aquela cárie que tem no seu dente do fundo, com a maior fé do mundo, a sua
e a dos outros, incluindo a do pastor. Mas aí temos a livre vontade divina, e
Deus não pode ser desafiado, conforme outra disposição bíblica. Pois é…
percebem como algo se torna infalseável?
Pois com a psicanálise acontece a mesma coisa. O próprio pai
da falseabilidade, Karl Popper, coloca a psicanálise no âmbito das
pseudociências, não pela insistência em argumentos já refutados (ele coloca o
marxismo nesse campo), mas como articulação de proposições de forma a não terem
como ser refutadas, como falamos no exemplo da cárie. Um exemplo está nas
pulsões. Uma pulsão é uma forma de energia, uma energia psíquica, que, ao
contrário das energias potenciais, cinéticas, elásticas, térmicas e congêneres,
não pode ser medida em joules, quilocalorias, watts ou BTUs. Se não há uma
medida padronizada, não há como ser mensurável, e, por conseguinte, ser
comparável.
Ainda que se alegue que o princípio da falseabilidade venha
ganhando concorrência pesada, ou que está ficando obsoleto, ainda assim aquele
velho fundamento da ciência continua o mesmo, impávido e colosso. Ciências
precisam ser verificáveis, e ponto. Qual é o problema da psicanálise? É a
extrema dificuldade que ela tem em estabelecer para si mesma critérios de base.
É preciso que se delineie suas causas, seus efeitos e verificar se eles formam
uma previsão.
Como oposição ao princípio da falseabilidade, podemos mencionar
um epistemólogo sueco ainda vivo, Sven Ove Hansson. Ele coloca o ideário de
Popper como efetivo enquanto se postular princípios para a ciência mais
matematizada, mas um tanto problemático quando aplicado para humanidades. Ele lança
mão de um conceito de delimitadores estendidos para as ciências, basicamente
pelo atendimento de critérios de confiabilidade. O demarcador para a ciência
está embasado, segundo este pensador, na capacidade de se praticar afirmações
mais confiáveis sobre um determinado objeto, seja lá qual ele for. Da mesma
forma que pratica ciência quem fala sobre estrelas e átomos, também o faz quem fala
sobre pessoas e suas mentes.
Só que onde teremos a pseudociência, aquele discurso que se apresenta como científico sem o ser de fato? Hansson estabelece uma lista de critérios para que se detecte uma delas. Segundo nosso caro nórdico, oito são os indicativos de que uma determinada doutrina é, na verdade, uma pseudociência:
1. Crença na autoridade
2. Experiências não repetíveis
3. Exemplos selecionados
4. Resistência ao teste
5. Desdém com oposições
6. Base em subterfúgios
7. Abandono de explicações sem substituições
8. Obscurantismo
Não vou aqui ficar me alongando sobre onde a psicanálise
poderia se encaixar no conceito de demarcação de Hansson, mas é fácil de
perceber que, ao menos os itens 1, 2 e 4 são muito evidentes, porque Freud é
ainda abordado como se fosse um autor imutável, com estudos fortemente baseados
em casos e que desmentem a validade dos experimentos realizados que se lhe
oponham. Há estudiosos
que, inclusive, enquadram-na em todos os critérios, o que é um componente de
difícil contestação.
Mas é preciso olhar para o lado de lá. Embora várias das
teses da psicanálise representem evidentes furos n'água, há reais avanços que
foram feitos quando vista como uma filosofia da mente. Parece incontestável que
o inconsciente ocupe uma porção muito mais importante da psiquê humana do que
se podia fazer parecer até o começo do século XX. Ainda que seja difícil de
mensurar, parece se assemelhar ao caso das ciências humanas, das quais,
inclusive, a psicologia faz parte, em que o método científico precisa ser
adaptado de maneira a reconhecer que lá existe um conhecimento, mas que não
pode ser medido pelas réguas fixas das ciências naturais.
Mas o grande problema é que a psicanálise não quer.
Aparentemente, há uma relutância grande em até mesmo se aplicar os métodos das
ciências humanas, que não se ocupa apenas de estudos qualitativos, mas
quantitativos também. Casos de sucesso da terapia pela escuta nada mais são do
que isso: casos. Se eles não estão sistematizados de maneira metódica, nada
mais são do que uma longa coleção de evidências anedóticas, por maior que seja
sua quantidade. Isso porque são precisos parâmetros, toda pesquisa nasce de um
escopo que precisa ser seguido para fornecer respostas. É isso que tem faltado
historicamente à psicanálise, mesmo levando em conta as especificidades das
ciências humanas.
Eu vou aqui, para a decepção de poucos (porque são poucos
leitores mesmo), informar que vou aplicar ao caso a famosa tucanada. Primeiro,
porque não tenho aporte cultural suficiente para fechar uma posição como manda
o figurino, e não como a galera da treta gosta. Depois, porque, ainda que
milite na filosofia, não se consegue ter uma posição acabada. Eu até fecho
questão com um dos mais renomados neurocientistas da atualidade, Michael
Gazzaniga, que crava ser questão de tempo para não só a psicanálise, mas toda a
psicologia cair na pseudocientificidade, não no aspecto intencional, mas na
obsolescência das propostas. A leitura e interpretação dos processos
neurológicos tendem a ficar tão precisas que a tangência metafísica que mesmo a
mais experimental das psicologias possui vai cair na vala filosófica da
especulação. Dessa forma, hormônios tomarão o lugar de recalques, pulsos elétricos
o de pulsões e interações sinápticas o de repressões.
Mas também é preciso pensar no que faremos até chegar neste ponto. Não adianta ficar esperando o dia em que teremos a perfeita composição físico-química que me levará a explicar a paura que sinto na véspera da final de um campeonato. É possível e é preciso entender os fenômenos mentais antes de ter respostas definitivas sobre eles, e isso a psicologia e, sim, a psicanálise tentam fazer. Por isso, parece a mim ser a psicanálise uma protociência que reluta em sair do lugar, especialmente porque parece uma resposta muito boa para que possa ser provada falsa na canetada. É exatamente isso o que ela deveria fazer, encerrando o debate. Na pior das hipóteses, poderia migrar da ciência para a filosofia, onde ela se encaixa perfeitamente. Imagine que compêndio sobre filosofia da mente não se referiria a Freud e seus Blue Caps como alguns dos maiores?
Tudo isso ao aroma intenso de um bom café coado em um dos melhores métodos que possuo em casa. Bons ventos a
todos!
Recomendação de leitura:
É em inglês, mas não é longo, nem tão complexo de se ler.
HANSSON, Sven Ove. Defining Pseudoscience and Science.
In: PIGLIUCCI, Massimo & BOUDRY, Maarten. Philosophy of Pseudoscience:
Reconsidering the Demarcation Problem.
Chicago: The University of Chicago Press, 2013.
*A simplificação extrema é meramente didática, perfeito?
** Existem protocolos e metodologias para higienizar a vidraria
de laboratórios, viu? Vide este link: https://www.ufpe.br/documents/951030/981240/2012-05-r1.pdf/1b91fdbc-f69d-4e32-aee4-2388526ab470
Olá. Não sou nada versado em psicanálise. Dito isso, concordo com vários pontos que você defende aqui na sua postagem a respeito dessa "protociência". Gostaria de destacar especialmente uma passagem, a respeito da especificidade das ciências sociais: "o método científico precisa ser adaptado de maneira a reconhecer que lá existe um conhecimento, mas que não pode ser medido pelas réguas fixas das ciências naturais". Seria preciso pensar também em outros critérios na hora de atestar (ou negar) a cientificidade dos estudos sobre a sociedade (não falo diretamente da psicologia e da psicanálise, mas penso principalmente na sociologia e na antropologia).
ResponderExcluirÓtimo texto, mais uma vez. Um abraço.