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terça-feira, 5 de setembro de 2023

Sobre a torre de marfim e porque ela deveria se dar a entender

(A torre de marfim está aí para ser decifrada, e para se dar a compreender) 

Como são graciosos teus pés nas tuas sandálias, filha de príncipe. A curva de teus quadris assemelha-se a um colar, obra de mãos de artistas. Teu umbigo é uma taça redonda, cheio de vinho perfumado. Teu corpo é um monte de trigo cercado de lírios. Teus dois seios são como dois filhotes gêmeos de uma gazela. Teu pescoço é uma torre de marfim. Teus olhos são a fonte de Hesebon junto à porta de Bat-Rabin…

Olá!

O trechinho acima, com o qual abro mais este texto, é um excerto de um dos livros bíblicos de mais difícil encaixe no contexto teológico que domina toda a sua escrita, embora haja uma multiplicidade reconhecida de ingredientes em sua composição, de cunho profético, histórico, sapiencial, social e político. O próprio trechinho nos fala em fonte de Hesebon e porta de Bat-Rabin, referências geográficas sobre o Oriente Médio dos tempos da era do Bronze.

São os versículos que vão de 1 a 4 do capítulo 7 do Cântico dos Cânticos, livro poético do antigo testamento bíblico. As descrições do Cântico dos Cânticos, todas cheias de referências fortemente sexualizadas (embora os religiosos mais reacionários neguem e reneguem), são estranhas dentre as exigências de pureza irrestrita no universo bíblico. Fosse a simples composição poética de um amante apaixonado, não teríamos a extravagância necessária para fornecer explicações. Nós até poderíamos tratar do tema, mas vai ficar para outro momento. Agora, quero chamar atenção para um designativo perdido no meio de tantos elogios dados a tão formosa guria: torre de marfim.

Este é um termo que está em voga hoje em dia, mas por motivos desvinculados da religião. Entretanto, em seu nascedouro, ainda antes de Cristo, nota-se que seu uso era elogioso e consagrado, já que a mocinha do texto do cântico certamente aplicaria uma bolacha no mandrião se o aplique não fosse encomiástico, laudatório, panegírico, benquerente, lisonjeiro, apologético, elegíaco. Uma torre já era um símbolo, então, de um lugar fortificado, apartado do mundo comum. Feita de material raro, conseguido aos poucos à custa do sacrifício de inúmeros elefantes, de um branco perolado e bastante resistente, é um símbolo de pureza e resiliência, com sua dignidade guardada pelo material precioso. Ser considerada uma torre de marfim representava o ideal da castidade tão almejado em tempos pretéritos. Esta imagem foi transposta pelos católicos para uma das representações de Nossa Senhora, dentre tantas outras na coleção de designativos de suas ladainhas, identificada com a amada do Cântico como fortaleza da igreja.

Mas se colocado de lado o aspecto religioso, modifica-se a ideia da torre de marfim, embora seja mantida a concepção de fortaleza e isolamento. Com o passar do tempo, começa -se a construir a alegoria de um lugar que está desprendido do mundo, alijado dos interesses palpáveis em nome de uma pretensa esfera própria. Lembram-se da expressão "sexo dos anjos"? Ela vem de uma polêmica medieval referente à existência ou não de uma sexualidade das entidades espirituais. Isso tudo acontecia enquanto o pau torava feio, no linguajar dos dias de hoje. Era o momento em que os turcos invadiam Constantinopla, pondo fim definitivo ao Império Romano, e os teólogos se mantinham reunidos discutindo se podia-se falar em anjos masculinos ou femininos. Ou seja, uma total desvinculação com a realidade circunstante. Embora essas reuniões não se dessem em torres de marfim, elas dão a exata ideia do que ela representa nos dias de hoje. Passa a ser o local onde se busca um exílio confortável, reservado para aqueles que detém uma espécie de chave dos portões do conhecimento, que somente aos seus portadores é dado o direito de adentrá-lo. Um lugar afastado, desvinculado dos acontecimentos mundanos e colocado em privilégio, ainda que isso não signifique fama e fortuna, necessariamente, mas um lugar especial e para poucos, uma espécie de elite bastante em si mesma, cuja palavra tanto é autoridade quanto autoritarismo. Isso é altamente aderente à academia científica. Para o povo, os cientistas se recolhem em um ambiente altamente hermético, cujo método e palavrório é incompreensível, de modo a impossibilitar a quem é de fora ter a menor noção do que se faz e do que se diz lá dentro. Tanto é verdade que o estereótipo do cientista inclui uma imagem esquisitona, de malucos que vivem encerrados em laboratórios e que escrevem poemas com símbolos matemáticos, divertem-se com cálculos e criam monstrinhos em balões de ensaio. Nada mais longe de um cientista real, muitas vezes envoltos em burocracias e busca de verbas, tendo que administrar egos de concorrentes e subordinados, mas isso já nos dá uma dimensão imagética, que, na verdade, não foi construída do nada.


É certo que o âmbito científico tem credibilidade, mesmo que acompanhado da incômoda pecha, haja vista a quantidade de atividades que tentam ter seu respaldo sem o ser, mas o distanciamento não ajuda em nada. Às vezes, passa a impressão de que há uma certa semelhança com os políticos em geral. Seja de direita ou de esquerda, há uma dependência em cima de um núcleo duro que chamamos, no Brasil, de Centrão. Esse é um grupo de políticos banhado de pragmatismo, e seus componentes estão essencialmente preocupados em manter-se como tutores do governante de plantão. Então a sensação final é a de que não adianta votar em Lula ou Bolsonaro, porque sempre haverá uma massa a ser satisfeita, que tem nas mãos os instrumentos para manter o estado de coisas, independente da tendência política que se busca instaurar. É uma forma de afastamento com o real interesse popular, que sempre se sente afastado da classe política. É uma comparação cruel e meio forçada, mas a falta de interlocução é o ponto de intersecção entre a torre de marfim acadêmica e a camarilha política, e um impulsionador da falta de se sentir representado.

A diferença maior da comparação que acabo de fazer está na linguagem. O que está escrito nos artigos é de suma importância, mas não pode ser compreendido pela população em geral, especialmente em um país de baixa escolaridade. Sendo assim, a recomendação para a sua leitura, que deveria ser o melhor a ser feito, é inócua. Diante daquele monte de números e falar hermético, sentimo-nos desguarnecidos. Eu mesmo confesso que já fiz por todo lado para entender um exercício mental como o gato de Schrödinger, mas não consigo alcançá-lo como devia. Isso não é burrice ou falta de instrução, é só o reconhecimento de que as coisas da ciência não são simples de compreender. Por isso, é plenamente louvável o aconselhamento por pesquisas em artigos, mas é preciso ponderar o quanto eles são compreensíveis.

O que os professores fazem quando um aluno não entende a lição? Dá um passo atrás e tenta explicar de novo, fazer paralelos, dar exemplos. Essa é a grande deficiência da academia. Justifica-se: se a cada pesquisa um cientista precisar trocar em miúdos para os mais diferentes tamanhos de compreensão, ele não fará outra coisa na vida, e seu próprio trabalho não andará. Mas é preciso um mínimo de comunicação entre as pontas.

Eu exemplifico com o que acontece no consultório dos médicos. O ortopedista olha para a chapa das minhas costas e diz que tenho uma protrusão discal. Eu olho para ele com cara de susto, quase perguntando quanto tempo me resta de vida. Antevendo tal cataclisma, ele pega o simulacro de coluna vertebral que tem em sua mesa e me explica, em rápidas palavras, que um dos discos entre minhas vértebras está fora do seu lugar correto, o que faz pressionar as terminações nervosas e causa dor. Uma explicação tão rápida já desfaz o abismo que existe entre o termo técnico e o conhecimento insipiente.

Ocorre que é difícil alguém fazer esse trabalho, porque o contato não é tão próximo quanto o que temos entre médico e paciente. Há uma noção melhor com o que acontece aos nossos corpos, por motivos simples: convivemos com eles todos os dias, e temos interesse por nossas saúdes. Mas a torre de marfim, aquela que detém o conhecimento, é autenticamente longínqua, e mesmo o tal médico já é um aplicador prático daquilo que se pensa e se pesquisa nas universidades. E há um problema adicional: ele atua no campo individual, no interesse que surge em uma pessoa específica que passa por um problema bem determinado. Não podemos falar em público amplo, nesse caso, como é o caso dos alunos de uma escola, ou as pessoas que tentam reagir a alguém que diz que as vacinas fazem mal. Explicar o processo de imunização é muito mais complicado do que dizer que são injetados milhares de chips na corrente sanguínea. A explicação é estapafúrdia? Sim, mas É uma explicação, e, na ausência de coisa melhor, adotada como boa e preciosa. E vai grassando pelos campos e pelas cidades. Isso precisa ser combatido, porque queremos explicações.

Mas por que essa necessidade peremptória de uma resposta para tudo? É uma boa pergunta, e que já partimos com uma má notícia: a ciência não dá resposta para tudo. Aliás, no limite, não dá resposta para nada, porque, como já expliquei neste texto, não faz parte do escopo ou do método dar respostas definitivas e inquestionáveis, o que é irritante para um ser cujas certezas melhoram suas chances de sobrevivência. O homem sempre quis saber como funcionam as coisas por uma questão de proteção. Saber se uma cobra é ou não venenosa sempre fez a diferença. Isso nos dá a nossa eterna característica da curiosidade, porque mesmo que um determinado conhecimento não sirva para agora, poderá servir depois.

O desenrolar da aventura humana fez com que houvesse confrontos entre versões. Por mais que as experiências pessoais e os relatos alheios pudessem fazer sentido muitas vezes, o fato é que as melhores versões sempre foram aquelas que derivavam de registros, de acúmulos empíricos e de correlações coincidentes. Essa é a base do que se convencionou chamar de Ciência. Curiosidade, portanto, não é só uma marca dos fofoqueiros, mas da espécie como um todo. Mas não se satisfaz uma curiosidade com palavras que não podem ser entendidas, e aqui nós temos o grande problema da torre de marfim. Embora não possa ser algo tão apressadamente generalizado, o fato é que se criou essa espécie de elite do conhecimento que torna as coisas tão difíceis. É preciso que exista uma ponte, mas ela é de mão única: precisa partir dos moradores da torre, porque do lado contrário estamos nós, população que não é burra, mas que não entende o maremoto de termos e de raciocínios sofisticados. Nós temos nossas ocupações: somos programadores, sapateiros, funcionários públicos, costureiros, metalúrgicos, advogados, cozinheiros e tantas outras ocupações que podem ser desenvolvidas com maestria, mas que tem seu linguajar próprio com poucos pontos de contato com a realidade dos laboratórios e observatórios, e, com isso, temos dificuldades em compreender fenômenos que fogem ao puro empirismo.

Os divulgadores científicos são imprescindíveis nessa tarefa, só que temos duas grandes forças em oposição ao trabalho bem-feito - os teóricos da conspiração e os pseudocientistas. Uns trabalham na linha de que a torre de marfim existe para obter vantagens para si, sem partilhar com mais ninguém. Essas vantagens podem ser institucionais - a indústria farmacêutica não apresenta medicamentos que curem o câncer porque este é lucrativo - ou governamentais - a tal história do chip. Já os outros querem porque querem ser inseridos na torre, mas não o são por não seguirem os critérios efetivamente científicos. Dizem, então, as mesmas coisas que os conspiracionistas: quem estipula o que é científico o faz na força de interesses. O grande problema está exatamente em fazer as devidas distinções, e isso é verdadeiramente difícil. Por esta razão, é preciso duas coisas dos divulgadores: persistência e a consciência de uma missão. Da primeira, porque devem saber que vão tomar porrada mesmo, à vera, e demora até pegar credibilidade. Da segunda, uma questão quase missionária, de dichavar as principais confusões que se fazem, de demonstrar onde as coisas estão erradas, de ter a sensibilidade para detectar quais assuntos podem ser os mais relevantes e os que mais podem ser mistificados. É um trabalho que mistura Hércules e formiga, mas é aquela velha história da entropia… fazer o suco de manga é fácil, se comparado a lavar a camiseta suja por ele.

É preciso lembrar ainda que a pesquisa científica no Brasil é praticamente inteira feita nas universidades públicas. Com isso, a participação governamental é indissociável dos financiamentos de pesquisa, e uma ideia seria fazer algum tipo de regulamentação para a liberação de verbas com a inclusão de um trabalho de tradução ao grande público sobre o que está escrito lá dentro. Não sei, pode ser que desse certo.

Mas completando. Se falamos de uma torre de marfim científica, poderíamos falar de uma torre de marfim filosófica? É claro que sim, e o interesse em divulgadores como Leandro Karnal, Clóvis de Barros e Mário Cortella explicam que existe interesse popular em filosofia. O grande problema é que progressivamente eles vão se rendendo a assuntos monotemáticos, muito ligados à ética e com forte sabor de autoajuda, e perdendo a chance de soltar aquilo que está aprisionado na torre. Poderiam aproveitar do gabarito e da credibilidade que conquistaram para conseguir aprofundar não somente sobre assuntos da ética, mas do que é a própria ética, suas diferenças e semelhanças com a moral e deixar que seus audientes reflitam por si mesmos sobre o que é a vida que vale a pena. Falar em frônesis, em ataraxia, em deontologia, em eidos, em solipsismo, em noema, em aporia é afastar a filosofia do povo, se estes termos forem usados indistintamente, com a suposição de que quem os ouve tem que se coçar para entender do que se está falando. Mas eles precisam operar com a lógica de mercado, já que vendem a bons valores suas palestras, e uma empresa que os contrate não está preocupada com designadores rígidos ou mônadas, sejamos francos.

Caras como Foucault, Derrida, Deleuze, Guattari e outros não só tratam de temas complicados, o que por si só já é um desafio, mas escrevem de forma complicada, o que piora muito as coisas. Eu lembro bem quando comecei a ler Kant. Pensei: que tradução ruim! Melhor caçar outra. Vejo outra e penso: ruim igual. E aí algum professor me fala: não é a tradução que é ruim, é o texto que é mal escrito. Não no sentido de usar alemão de quinta, mas de ser muito enrolado, mesmo. São ideias já muito difíceis por si só; se não são apoiadas por uma expressão muito clara, então lascou. Vira coisa de iniciados. E aí eu fico pensando: se eu, que fiquei todo o tempo que fiquei na faculdade, e já possuo um espaço de filosofia há doze anos, tenho tremenda dificuldade em entender algumas teses e raciocínios, que fará com quem nunca tangenciou com o tema nem de perto?

Eu tento, dentro das limitações que eu tenho, traduzir aquilo que consigo para vocês, meus rarefeitos leitores, mas eu não estou dentro da academia. Alguns divulgadores fazem, e bem, esse trabalho mais massivamente, mas a sensação que temos é sempre uma só: quem os busca está mais interessado em passar no ENEM do que aprender novidades das discussões da ágora filosófica. O que está sendo discutido neste momento em termos de metafísica, de epistemologia, de estética, até mesmo de ética, algo um pouco mais próximo do quotidiano das pessoas. A uma primeira vista, parece que é eternamente a mesma coisa, o que não é verdade. As ideias filosóficas provocam teses científicas, e estas, uma vez desenvolvidas, retornam novamente à filosofia, que vai começar a tatear novamente a realidade, para desafiá-la e repropô-la, fazendo com que a própria existência ganhe novas valorações. Se o mundo é hoje um lugar um tantinho melhor para viver, foi porque um dia algum filósofo se perguntou sobre o que era um mundo melhor. Mais ainda: perguntou o que era mundo e o que era melhor. Por isso, não podemos nos colocar nos confortáveis assentos da torre de marfim para um dia mais tarde ficar reclamando que as pessoas acham que a terra é redonda. Não é verdade?

Bons ventos a todos!

Recomendação de canal:

Comecei a acompanhar este canal a pouco tempo. Apesar do uso extensivo de click baits, seu conteúdo me parece bom e vale a pena ser acompanhado para se atualizar sobre as novidades no mundo científico.

Olá, Ciência: https://www.youtube.com/@olaciencia

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