Olá!
Com certeza já aconteceu com você. Algum tipo de explosão
atômica é detonado no teu trabalho e lá vai você, junto com os desanimados e
solidários colegas, ser admoestado a colaborar, suprimindo do calendário um ou
mais finais de semana, feriados e/ou dias santos. Pois essa foi a aventura de
um desses meus feriados prolongados do ano passado, no insucesso de alguma
manobra planejada por meses, mas que um detalhe aparentemente inócuo fez provar
sua solidez de castelo de cartas. Tudo bem, tudo bem, sei que essas coisas
computacionais acontecem, e que o banco de horas formado certamente compensará.
Com essa ideia em mente, vou dar uma vasculhada nos meus
cronogramas. Puxa, quanta coisa... Tudo tão apertado que o único momento mais
folgado é justamente a quarta-feira pós-hecatombe, seguinte ao feriado, por
conta dos adiamentos demandados pelo imprevisto na migração de plataformas.
Encaixo a vindicação no chefe de maneira irrecusável, até mesmo porque eu
trabalhei muito no fim de semana desviado, e fui pegar a patroa para ir a local
longínquo o suficiente para evitar a fumaça do rescaldo e arrependimentos
superiores. Já havia algum tempo que eu queria conhecer um jardim botânico
particular chamado Plantarum, situado na próxima-mas-nem-tanto cidade de Nova
Odessa, na região de Campinas, e é para lá que eu me mandei. Sigam-me!
Nova Odessa é uma cidade eminentemente industrial, e o
parque fica exatamente no distrito reservado às fábricas, o que parece um
contrassenso, mas esse fato chega a dar um certo encanto adicional: uma ilha
verde no meio da fumaça.
O Plantarum é um daqueles raros empreendimentos privados de
cunho científico, criado e mantido pelo biólogo catarinense Harri Lorenzi em
uma área onde anteriormente ficava situado um imóvel fabril.
Em uma área de nove hectares, que correspondem a qualquer
coisa como nove campos de futebol, um amplo projeto paisagístico mudou
radicalmente a cara de mais uma das tantas plantas industriais de uma região
dedicada à produção de tecnologia de ponta.
O projeto é bastante recente. O terreno foi adquirido em
1998, mas o jardim somente foi concluído em 2007, e aberto ao público em 2011.
Vive basicamente da venda de ingressos, da contribuição dos associados e da
realização de eventos, como exposições, feiras e até casamentos. Esta é a vista
que se tem do seu centro de exposições, mostrando se tratar de um ambiente de
cinema para agradar noivos e convidados, que podem contrair seus laços em um
quiosque logo ali, ao lado.
Algumas das exposições internas são permanentes, e costumam
ter tudo a ver com o escopo do empreendimento. Quando eu e a patroa fomos ao
lugar, havia uma série de obras de arte feitas a partir da utilização de flora
local, como este vaso de suculentas feito com o aproveitamento de um “barquinho”
de folha de palmeira.
Em termos de construção, há também a bela casa que serve de
recepção, onde existe uma loja de livros e artigos diversos, além de um
café/restaurante que utiliza plantas alimentícias não convencionais (PANC’s)
produzidas no próprio jardim.
O instituto ainda apresenta alguns conceitos que virão a
auxiliar em uma renovação na maneira como vemos nossas edificações, mais
simbiótica com o meio natural. Esta pequena cabana dá uma nova ideia de
aproveitamento das paredes e do telhado como espaço útil para o cultivo e
coleta de água.
Evidentemente, é nos espaços abertos ao ar livre que o
Plantarum ganha o jogo, fundindo natureza e mão humana na constituição de
conjuntos harmônicos, como a lagoa de vitórias-régias situada logo atrás da
mansão de entrada, que é guarnecida por um contrastante jardim rústico.
Há muitos jardins temáticos, que concentram alguma
característica comum, como o toque oriental da lagoa de carpas, que é cercada
por um imenso bambuzal. O convite é para fazer um momento de meditação ao som
das taquaras se movendo ao vento, o que causa uma certa apreensão. O rangido se
assemelha a uma porteira se desmontando.
Outro tema explorado é o folclore brasileiro de origem tupi,
neste tanque onde é reproduzida a lenda do Ipupiara. Apesar do bom humor da
montagem, acreditava-se que este ser se alimentava do corpo dos incautos que se
aproximavam dos rios e lagos.
Outros espaços espalhados pelo parque são erigidos
especialmente para um momento de descanso, já que são mais de cinco quilômetros
de via pavimentadas embaralhadas pelo parque, além dos gramados onde é
permitido caminhar e esticar o cadáver.
Se pararmos de pensar no aspecto paisagístico, teremos ainda
as coleções botânicas, de maior interesse científico e ainda assim com muito
valor estético. Um dos melhores exemplos é o longo corredor que constitui o
jardim das trepadeiras, bem no limite traseiro do imóvel.
Alguns ambientes são montados para obter a compreensão do
visitante sobre como as espécies interagem, como ocorre no meliponário, um
stand onde há colmeias que abrigam melíponas, abelhas sem ferrão típicas da
América, algumas delas melíferas. A mais conhecida das cidades grandes é a arapuá,
célebre por se enroscar nos cabelos das desesperadas meninas cacheadas.
Há espécies que impressionam não só pela beleza, mas pelo
tamanho. É o caso desta palmeira talipote, extrema na largura e rigidez de seus
ramos, diferentemente do que costuma ocorrer com seus parentes mais comuns...
... e deste agave, que faz as pequenas suculentas, como as
rosas de pedra, parecerem chaveirinhos.
Outro aspecto interessante é a possibilidade de se conhecer
itens da flora que você sabe que existem, mas nem desconfia como são. Eu, por
exemplo, tenho um anel de tucum, serrado a partir do coquinho de um arbusto
como esse da foto. Percebam que as informações das plaquetas são poucas, mas
decisivas.
Já falei das PANC’s que são consumidas no restaurante, não é?
Há um canteiro orgânico cheio dessas plantas, comuns outrora, como a araruta, a
taioba e a ora-pro-nobis*, ou quase desconhecidas, como a maria-gorda, a
beldroega e o mangarito, parente do inhame mais comum no Vale do Paraíba.
Outra característica é a diversidade das origens do acervo,
que, na medida do possível, agrega espécies de várias partes do mundo. Este
singelo “mato”, assemelhado a uma plumagem, vem da América do Norte e se chama
capim-do-Texas-roxo.
E há aquelas que, em uma espécie ou outra, espalha-se pelo
mundo inteiro. Por toda parte, há algum tipo de helicônia, como o caeté**
abaixo. Seu parente mais conhecido? A banana.
Essa história de diversidade nas espécies já começa a me
cutucar. De grau em grau, de mudança em mudança, de detalhe em detalhe, cada
grupo vai progressivamente obtendo particularidades, guardando, no entanto,
alguma característica que lhes permite serem consideradas aparentadas. Vejam
estes filodendros...
... semelhantes, mas diferentes, certamente com algo em
comum, um ancestral que originou a todos eles. Não existe melhor lugar no mundo
para entender a Teoria da Evolução do que em um jardim botânico.
É preciso lembrar que, antes de mais nada, um jardim
botânico é um lugar de estudos, um templo da Ciência. Se ele também é um bom
lugar de lazer, melhor ainda, mas seu cerne é dispor um espaço de pesquisa e
experiência. Eu não sou um cientista, apenas me interesso nas coisas que ela tem a dizer. E ela diz: eu desafio e sou desafiada. Aqui estão minhas armas –
milhares e milhares de espécimes que demonstram a progressiva adaptação ao meio
ambiente, realizada pelas mais diversas e ambiciosas estratégias de
sobrevivência. Não, não há necessidade de que um desses matinhos tenha cérebro,
basta deixar agir o delicado equilíbrio de seu habitat, e a “magia” da seleção
natural fará com que os mais aptos se mantenham e se espalhem. Se há um deus
por trás deste mecanismo, a girar todas as engrenagens, eu não sei. A evolução
não descarta a divindade, e é mesmo tentador ver uma inteligência por trás de
sistemas tão complexos, limitados que somos pela descontinuidade
de nossas mentes. Mas a evolução prescinde dela e tem sua beleza própria. A
epistemologia também pode ser estética.
Como eu já discuti neste
post, Darwin e Wallace descreveram de maneira muito apropriada como os
organismos evoluem através da seleção natural dos mais aptos. No entanto, não
souberam discorrer sobre alguns detalhes importantes, o que deixou toda sua
base meio capenga. Isso era natural que acontecesse. Em primeiro lugar, explicar
a variabilidade das espécies é tarefa maior que os doze trabalhos de Hércules.
E depois, a Ciência não carrega consigo uma verdade pronta e acabada, revelada
a alguns eleitos. Por isso, toda teoria*** nasce para receber complementações e
refutações, de modo a se aperfeiçoar o conhecimento disponível.
A grande pedra de tropeço da Teoria da Evolução era a
maneira como um indivíduo poderia transmitir à sua descendência os caracteres
mais vantajosos desenvolvidos nele. Darwin pensou em gêmulas, uma antiquíssima
ideia existente ainda na Grécia antiga, e que atribuía a hereditariedade a
estruturas diminutas, que estariam contidas nas células reprodutoras como
microscópicas cópias dos órgãos dos pais. No processo de fecundação, as gêmulas
misturar-se-iam entre si, ressaltando alguns caracteres maternos, outros
paternos. Essa era uma explicação tentadoramente aceitável, mas ruim. Isso
porque caracteres que há muito não ocorriam em uma determinada família poderiam
ressurgir na descendência. Quantas gêmulas uma nova vida carregaria? Mais
ainda: a mistura de gêmulas certamente traria uma tendência à uniformização, e
não à diversidade.
A resposta estava se desenvolvendo lado a lado às teses de
Darwin, sem que ele tivesse contato. Em um monastério de Brno, na atual República
Tcheca, o padre Gregor Mendel realizava suas famosas experiências com ervilhas,
que viriam a modificar o entendimento puramente empírico de como os caracteres
se transmitiam de geração a geração.
O trabalho de Mendel consistia no seguinte: de posse de espécies
puras de vegetais, em especial de ervilhas, o monge começou a realizar
polinizações cruzadas, retirando o pólen de uma variedade para depositar nos
estigmas de outra, de modo a obter descendentes híbridos. Ele investigou uma
série de sete características de cada nova planta gerada – as cores da vagem,
da semente e da flor, a altura da planta, a superfície da semente, a forma da
vagem e a posição de implantação da flor em seu ramo. Ele percebeu que os
cruzamentos resultavam em uma preponderância de determinada característica,
porém, sem o completo desaparecimento da característica de segundo plano, que reaparecia
constantemente nas descendências posteriores. Empiricamente, seria de se
esperar um resultado intermediário entre as duas características, mas não – uma
das duas sempre preponderava. Ao primeiro, foi dado o nome de traço dominante; ao outro, de traço recessivo. Aplicados a um modelo
matemático, foi possível notar uma proporção de 3:1, ou seja, a cada quatro
descendentes, três apresentavam característica de traço dominante, enquanto um
expunha o traço recessivo. Vamos pegar, por exemplo, a característica “textura
da vagem”.
Do cruzamento das espécies puras, somente teremos exemplares
das vagens de traço dominante, que, no caso, são as rugosas. Sempre que um
caracter é dominante, indica-se graficamente com uma letra maiúscula;
recessivo, minúscula. Sendo que as rugosas são dominantes, vamos ver como
ficará a hibridação:
Notem que os descendentes deste cruzamento entre espécies
puras sempre resultarão em uma descendência igual ao dominante, mas que carrega
consigo alguma coisa do traço recessivo. É por isso que representamos estes
híbridos com uma letra maiúscula e outra minúscula. No próximo passo serão
cruzados os híbridos, e eles terão quatro possibilidades: ter conteúdo
puramente dominante e ser rugosa, ter duas hipóteses de conteúdo híbrido (o que
lhe dará aparência do caracter dominante) e ser rugosa e ter conteúdo puramente
recessivo, o que lhe trará a característica recessiva, de ser lisa.
Desta forma, Mendel percebeu que o cruzamento de híbridos
sempre lhe dará uma proporção de 3:1, ou seja, a cada quatro descendentes, três
terão a caraterística dominante e um terá a recessiva. Do cruzamento de duas
ervilhas de vagem rugosa, poderemos obter exemplares de vagem lisa.
A conclusão de Mendel é que cada um dos pais contribui para
as características dos filhos com partículas, unidades de heranças autônomas.
Para encurtar a história, essas partículas tiveram suas descrições cada vez
mais melhoradas, e hoje nós as conhecemos como cromossomos, fitas em forma de
hélice que ficam no interior do núcleo das células, e presos a eles temos
sequências de ácidos nucleicos carregados de informações hereditárias, os genes.
Sim, Mendel criou a Genética, ainda que não lhe tenha dado esse nome.
Ok, mas de que forma a Genética pode ajudar a Teoria da
Evolução a explicar como surgem espécies novas? Na natureza, as coisas possuem
uma certa estabilidade e um certo dinamismo. Isso não é uma contradição, pelo
contrário. É o bom sucesso de uma espécie que permite a ela se manter, e é a
capacidade de ter modificações que faz com que as mudanças de condições do
planeta não sejam uma pá de cal sobre a vida.
O que ocorre é que, pouco a pouco, os organismos sofrem
mutações e recombinações em seu patrimônio genético. Somos frutos de processos
mutagênicos, mas isso não significa que ser mutante nos dá raios nas mãos,
capacidade de voar, visão infravermelha, garras de adamantium ou poderes de
movimentar os efeitos climáticos. Isso é coisa da Marvel, e deixemos esse
estilo de mutante para as suspensões
da descrença. Na maioria das vezes, as mutações são um evento teratogênico,
capaz de produzir aberrações que são contrárias à sobrevivência. Mas há
pequenos rearranjos genéticos que produzem pequenas alterações em nosso
genótipo, que, se forem vantajosos, podem ajudar na perpetuação da espécie.
Como eu já disse, as mudanças não são coisas de heróis de quadrinhos; antes
disso, é uma alteração discreta que pode fazer toda a diferença. O melhor
exemplo que posso pensar agora é em uma tal alteração muscular nas pernas que
lhe permita dar um passo meio centímetro mais longo do que a média de sua
espécie. Meio centímetro, apenas isso. Ao cabo de um sprint de 100 metros, isso
lhe dará, ora pois, meio metro de vantagem em relação aos demais membros da
tribo. Isso não é quase nada, mas em uma savana, meu caro, você não precisa ser
mais rápido que o leão; você precisa ser mais rápido que o seu companheiro.
Essa sutil mutação terá a tendência a se espraiar mais e mais pelos vastos
campos, percebe?
Portanto, Genética e Teoria da Evolução se entrecruzam e se
complementam na tarefa de fazer as espécies se modificarem ao longo dos
inúmeros anos. Nem uma, nem outra são suficientes para, isoladamente, dar cabo
dessa tarefa, e é com isso que nasce a Teoria Sintética da Evolução, às vezes
chamada de Neodarwinismo. É um nome estranho, porque o Darwinismo, desde que
surgiu, nunca chegou a ser descartado como teoria, mas tinha suas falhas, que
vêm sendo paulatinamente suprimidas por novas descobertas e evidências. Em
resumo, a Teoria Sintética da Evolução agrega a seleção natural da evolução
com as mutações e recombinações hereditárias da Genética. Tudo isso para
demonstrar como a própria vida é o motor da diversidade que enxergamos por todo
o nosso planetinha. Bons ventos a todos.
Recomendações:
A primeira é visitar o próprio Plantarum, evidentemente. Fica
a 128 Km de São Paulo, pelo complexo Anhanguera-Bandeirantes. O endereço é
Avenida Brasil, nº 2000 – Parque Industrial Harmonia – Nova Odessa/SP.
Depois, temos um livro que foi publicado em recordação aos
150 das leis de Mendel, que contém, inclusive, uma tradução do primeiro artigo
deste cientista, além de dados biográficos e observações sobre suas
experiências.
ARAGÃO, Francisco José Lima; MOREIRA, José Roberto. Mendel –
das Leis da Hereditariedade à Engenharia Genética. Brasília: Embrapa, 2017.
* Tenho uma em casa e
sua flor é rara e belíssima:
** Também tenho um caeté na varandinha do apê:
***
Lembrem-se que quando falamos em teoria nas Ciências, não estamos pensando na
mesma coisa que se diz no coloquial. Para saber mais, leiam este
texto.
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