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sexta-feira, 30 de dezembro de 2022

Os verdes mares de onde não há mar – 4ª parada: Borda da Mata e as discussões sobre o erotismo

(O erotismo é uma semvergonhice ou uma inerência humana?)

Olá!

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Depois de um dia mais enfiado no meio do mato, na sequência dessa viagem pelas Serras Verdes do Sul de Minas fomos à ponta de um outro circuito, o das malhas. É um lugar onde se concentram várias especialidades têxteis, sendo que já estive aqui em outros tempos, mais especificamente na terra do tricô, Monte Sião (aqui e aqui). Desta vez, a passagem é por Borda da Mata, que gosta de malhas e lingeries.


A cidade com autonomia não é muito antiga, mas é povoada desde o século XVIII. Está na mesma linha de cidades como Itajubá, Piranguinho e Brazópolis, o que significa que o trem passava por aqui. Sua estação de trem hoje é uma bela casa de artesanato.


No centro da cidade, pontua uma bonita igreja, a Basílica de Nossa Senhora do Carmo. Originalmente uma capela, foi crescendo cada vez mais à medida que o arraial ao qual pertencia foi também se expandindo, especialmente após seu desmembramento da cidade de ouro fino.


À sua frente, a praça que ocupa a área original do arraial, em um tempo onde nem se sonhava na atual ocupação comercial.

É com o Monsenhor Pedro Cintra que a igreja chegou à sua condição atual. Durante os 38 anos de seu vicariato, chega a sua arquitetura definitiva e ganha a condição de basílica.


No campo comercial é que Borda da Mata fez sua fama. Com pequenas confecções espalhada por toda a cidade, podemos dividir os artigos em três áreas principais. Os pijamas…


… as tapeçarias…


… e, em grande número, as lingeries.

São diversas lojas que se propõe a realizar um comércio semelhante ao que se vê no Brás ou na José Paulino: um preço para a venda a retalho, outro para o atacado. De toda forma, ambos são convidativos o suficiente para fazer uma sacolagem.

As lojas desta especialidade já fazem publicidade em cartazes logo ao longo da rodovia, explorando a sensualidade de suas modelos.


Embora haja também cuecas e ceroulas para os moçoilos, o fato é que a maior parte dos produtos e a totalidade da publicidade se faz com as fotos sensuais das meninas. Eu poderia falar sobre objetificação feminina e outras coisas, mas é tema para ser tratado com cuidado, e o farei em outro momento. No mesmo sentido, poderia falar da moralização tão decantada da família tradicional brasileira, com seus amantes e puladas de cerca, mas, nesse caso, não estou com paciência, porque se trata de hipocrisia, mais que qualquer outra coisa. Corpos são belos, e ponto. O paradigma dessa beleza é cultural, mas somos constituídos da capacidade de apreciar a beleza, seja discutível como for o modelo. Isso tudo fica para depois. No momento, quero discutir o erotismo e o papel da sensualidade.

Está fora de dúvidas que a publicidade lança mão de artifícios mais ligados à emoção do que à razão para realizar o seu trabalho. Em tese, caveat emptor*, e que cada um cuide de não se sentir seduzido. Sedução… esse é o material de trabalho dos cartazes e letreiros. Embora palavras e músicas carreguem uma boa dose dela, é com os corpos que ela chega ao seu paroxismo.

Certamente você já se perguntou porque se compram roupas pré-rasgadas nos dias de hoje, pelo mesmo preço que se pagaria em uma peça íntegra. Claro que a moda explica muita coisa, mas não se pode descartar um certo sabor de sedução no seu uso. Uma roupa, primordialmente, serve para esconder. Se a princípio era para esconder do frio, dizem as religiões e a moral que as mesmas impõem que é para "esconder as vergonhas", seja lá o que isso quer dizer (reprimir a sexualidade, é isso o que quer dizer. A grande pergunta é: para quê?). A calça rasgada abre uma pequena janela que permite entrever um pequeno pedaço do que está lá por dentro, e isso já é ferramenta para atiçar a libido.

Já a lingerie esconde o mínimo, deixa ver tudo, menos a quintessência da sexualidade, e esse é, na verdade, o clímax do jogo. É como se fosse a casamata de um rei que se oculta do ataque inimigo que já transpôs todas as barreiras possíveis, com a diferença que esse rei sorri ao ser atacado. Essa contradição só é possível por conta do erotismo.

Eros é o deus grego do amor. Aqui no Brasil, como figura mitológica, é mais conhecido por Cupido, representado por aquele anjo gordinho de arco e flecha, mas que nada tem de angelical. Filho de Ares, o deus da guerra, com Afrodite, deusa do amor, Eros é a representação do amor erótico, das paixões e do desejo. Junta a permanente combatividade de seu pai com a força dos sentidos de sua mãe para reger o amor inconsequente, aquele que tem por principal objetivo a satisfação orgânica dos corpos, mas que nunca se sacia. Deu nome, dessa forma, àquela modalidade de amor mais carnal, de toque e estímulos físicos, que expus com mais detalhe neste texto. No que essa porção atrativa se imiscui em nossa espécie?

Não vou aqui me descuidar e tentar opinar sobre o papel dos hormônios ou das conexões sinápticas no fenômeno erótico, mas me ater ao meu mundo, o da Filosofia, exatamente como fez o controverso literato e filósofo francês Georges Bataille, uma espécie de pensador do corpo de nossa era contemporânea, no sentido filosofal, sem se preocupar com verdades científicas. Sua polêmica gira em torno de seus livros repletos de sexualidade desabrida, um Marquês de Sade do século XX. Mas suas observações intelectuais sobre o tema são interessantes, vez que completamente desvinculadas de uma visão moralizante.

Bataille vai buscar suas ideias na psicanálise freudiana, mais pontualmente nas pulsões de vida e morte, o Eros e o Tânatos. Mais remotamente (até porque, mesmo que sem declarar, Freud também o faz), resgata de Nietzsche os fundamentos da vontade de potência e os aplica nas suas hipóteses do erotismo.

Flertando com o Existencialismo, nosso intelectual coloca a imanência do corpo como princípio do Ser. Embora possamos pensar coletivamente na humanidade, é no indivíduo que a mesma se realiza, se concretiza, se transforma em existência. Sendo assim, entre um ser humano e outro existe um abismo que o torna eternamente solitário. A própria existência do outro já é a marca de uma individualidade, e de uma separação, e de um abismo, e de uma solidão.

A solidão é oriunda do próprio surgimento da vida, que se propagou por meio das divisões celulares. Quando ela provém de um ser assexuado, a sua reprodução resulta na morte do organismo originário, que se autodestrói para que a vida se eternize em novos seres. No humano, sexuado, também a destruição se dá, só que agora na fusão das células que dão origem ao zigoto. A morte está lá em profusão: milhões de espermatozoides rumam para o fim em busca de um único óvulo que os vá acolher. O único que se safa também não se mantém - doa sua substância para o surgimento da nova vida, o que também ocorre com o óvulo. Para o surgimento de um, dois se sacrificam. A vida é banhada de mortes, e é sua própria natureza.

Daí, o que temos é uma contínua descontinuidade, o que caracteriza a eterna solidão. Um Ser nunca é completo por si só. Acontece que o ser humano tem o impulso da totalidade, uma espécie de nostalgia pela continuidade que tinha em sua unicidade celular, e esse impulso é materializado e constituído pela mesma unificação que se dá na cadeia reprodutiva, ou seja, no sexo. E eis que nós vamos em busca de reintegração, ainda que provisória. Ela vai acontecer no ato sexual, que reconstrói a fusão originária do óvulo e do espermatozoide, agora na forma de amantes, e é exatamente aí que nós nos diferenciamos dos demais animais. Estes são seres que exercem sua sexualidade de maneira orgânica, puramente carnal. Ou seja, satisfazem uma necessidade como outra qualquer. Já nós possuímos o tal do erotismo.

O que difere o erotismo da pura sexualidade é que o primeiro não é meramente carnal como o segundo, mas está relacionado a processos mentais. Todo o circuito erótico faz girar a roda da fabulação, representando todo um contexto do qual o ato em si é só um dos componentes, a sua apoteose. No erotismo, a sexualidade é toda uma história contada, que inclui um pré-ato, um ato imaginário, um ato que é disparado por sutilezas, como um olhar, um gesto, uma cruzada de pernas, um movimento suave, uma palavra lubrica, uma peça de roupa que deixa entrever a pele, que deixa delinear o corpo, que oculta apenas o essencial, uma lingerie.

Sendo assim, podemos reconhecer em nós mesmos a imaginação agindo, quando temos ativados nossos dispositivos eróticos. A fantasia leva a libido para antes da necessidade carnal, e não depois. Sim, é perfeitamente possível que a libido venha pela visão do corpo nu, já preparado para o ato, mas o erotismo torna possível que tudo isso aconteça mesmo na ausência de um parceiro.

O erotismo é fundamentalmente transgressivo, porque o retorno à totalidade que ele almeja foge daquilo que nos é natural: a pré-mencionada solidão. Isso explica porque ele é excessivo, por vezes violento, por vezes exótico, permanentemente em luta com o que a razão conduz. Ele se choca com tabus e vetos, e se alimenta deles, sacralizando o objeto do desejo ao qual se interpõem tantos obstáculos. Por conta disso, o erotismo chega a transcender o mero ato sexual (até mesmo porque o precede). Dentro da religião, existe uma condição chamada de êxtase místico, e que foi descrita por vários religiosos, sendo provavelmente a mais famosa de todas Santa Teresa de Ávila. Segundo suas descrições, Gianlorenzo Bernini esculpiu uma estátua magistral, cujo semblante faz entrever toda a carga erótica contida na experiência extática:


É preciso lembrar que tal escultura foi aprovada pela Igreja Católica. Ela exprime toda a corporeidade do êxtase místico, que é absolutamente semelhante à expressão do clímax sexual, uma espécie de desfalecimento posterior ao orgasmo, a pequena morte mencionada pelos poetas. Mesmo o êxtase místico é uma expressão corpórea. Bataille tenta demonstrar que o erotismo vem de qualquer experiência de integração, e não somente da relação sexual. A religião é um dos mecanismos em que uma pessoa busca se unificar a um todo, no caso, à totalidade divina. Poderia acontecer com o uso de drogas, ou com as catarses gregas. O importante é perceber que é uma experiência transgressora porque, como já dito, a continuidade representa destruição - dois seres unidos já não são mais dois, mas um só. Parece coisa de casamento. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Bataille é um autor muito polêmico, porque escreveu desabridamente sobre sexo e sexualidade, e tem gente que não gosta disso. Como o princípio básico da Filosofia é tratar de qualquer assunto, não tenho essas amarras. Segue a indicação de seu principal livro sobre o tema:

BATAILLE, Georges. O Erotismo. Belo Horizonte: autêntica, 2020.

* Caveat emptor, traduzido por “cuidado, comprador”, significa que a prerrogativa do cuidado na atividade comercial está em quem compra, não em quem vende. Legislações como o Código de Defesa do Consumidor vem dar proteção à esta lei meio desigual do mercado.

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