(Duas cachoeiras, duas realidades)
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Se a esperança urbana se esvaiu em Santa Rita do Sapucaí
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para entender), o jeito é pensar em coisas mais óbvias. É bem verdade que o
capitalismo permite coisas do tipo meter uma cerca ao redor de uma cachoeira,
para gáudio e proveito de poucos, mas também é verdade que há gente de boa
vontade e espaços públicos, então o negócio é se enfiar no meio do mato, porque
sempre haverá a chance de encontrar coisas legais. Daí que eu fui para
Congonhal, pequena cidade do circuito ao qual me propus a palmilhar nesta
viagem.
Esta cidade era originalmente composta por sesmarias de posse do comendador José Ferreira de Mattos, que as doou para o poder público. Até então, as povoações eram compostas de pequenos grupamentos remanescentes da procura por ouro na região.
Como costuma acontecer nessas cidades do interior, há uma
marca profunda da religiosidade, com a tradicional igrejona da praça, cujo
padroeiro é São José Operário.
Esta praça é uma das passagens de uma das principais
manifestações religiosas da região, o Caminho da Obediência.
Essa romaria tem origem nas relatadas aparições de Nossa Senhora da Obediência em uma capela na área rural, mais especificamente na Serra das Tronqueiras, onde há um bairro de nome São Domingos. Consta que um fiel teve a visão de Nossa Senhora em meio ao acende-e-apaga de uma lâmpada na tal capela, o que foi reputado por milagre entre os frequentadores, o que fez com que a pequena ermida começasse a receber grande número de visitantes.
O que tem de mais legal na cidade são as suas cachoeiras, cuja diferença entre elas dará o mote filosófico deste texto. Na mesma serra citada anteriormente, fica a Cachoeira das Quinze Quedas, formada majoritariamente por um conjunto de nascentes que desce para a planície na forma de cascatas.
São quinze quedas de fato. A cada degrau, a formação de poções e remansos dá boa balneabilidade ao local, que tem água mui limpa e fresca.
O acesso aos pontos mais altos se dá por trilhas e escadas que os proprietários, seo Simão e filhos, foram montando nas laterais da cachoeira. Embora facilite muito a vida, alguns pontos são bastante íngremes e escorregadios.
A subida completa traz como brinde uma visão de mirante, a 1600 metros de altitude, e os efeitos da rarefação do ar, aliados ao esforço da subida, de fato fazem com que precisemos puxar mais fôlego do que o normal.
Já nas margens do Rio Cervo, na outra ponta da cidade, fica
uma cachoeira bem mais simples, do estilo escorregador, chamada de Cachoeira
das Almas.
Há mais diferenças entre as duas cachoeiras que a mera variedade geográfica pode fazer supor. O começo está no acesso. A Quinze Quedas custa 25 genocidas-de-saída a entrada, o que, convenhamos, não é pouco. Já a das Almas tem entrada franca. Quando estávamos na primeira, cruzamos com um casal e nós, latinissimamente, começamos a conversar como se vizinhos fôssemos. Pelo meio do papo, falei da minha intenção de ir às Almas, que foi contraindicada pelo par. Diziam ser bem mais feiosinha e, principalmente, mal frequentada. Acontece que eu, macaco velho da Sé e imediações, não iria me assustar com uma cidade que ficou mais de dez anos sem homicídios. Portanto, vamos até lá também, como não?
Bom, "feiosa'' é uma qualificação relativa. Para mim, é
só uma questão de saber aproveitar o que cada uma tem de bom. Se por um lado a Quinze
Quedas é mais deslumbrante aos olhos, a das Almas é mais divertida e segura, o
que é ótimo para concentrações maiores e crianças. Mas a parte problemática
está na segunda afirmação. Vamos por partes.
Quando eu fui à Cachoeira das Quinze Quedas, encontrei uma
estrutura verdadeiramente melhor que nas Almas. Um bom vestiário, bons
banheiros e áreas próprias para refeições, incluindo churrasqueiras de
alvenaria. Na outra, dois banheiros e ça tout. As churrasqueiras vêm no
porta-malas do Corsinha, bem como a farofa, a galinha e a vitrolinha, esta
última substituída por malditas bazucas que valem mais que o combalido veículo.
Notem como já vou forçando a mão nas tintas para chegar onde quero.
Hoje em dia eu tenho condições de ir à cachoeira de 25
moedas, mas juntar a patroa e os dois filhos já faria o orçamento saltar para
cem pilas. Ainda é pagável no "de vez em quando", mas vai se tornando
um programa para menos pessoas, já que o custo do ingresso concorre com o do
piquenique.
Aí eu vou buscar algumas experiências do passado. Meu tio
Salvador tinha uma Kombi, daquelas com cara de coruja, bem desgastada por
sinal. De quando em quando, ele forrava a kombosa de gente e pegava a Estrada
Velha de Santos, eu incluso no chiqueirinho que atendia por porta-malas. Uma
Kombi comporta nove pessoas e, sem exagero, fazíamos com alguma frequência essa
farofa com o dobro de pessoas: só lá de casa, já encheríamos o balouçante
veículo. Escolhida a praia, meu tio enfiava o utilitário na areia que, tal qual
um motorhome, servia de vestiário, de refeitório, de lavabo, de dormitório e de
ambulatório, para quando houvesse algum enjoo a resolver. Isso era o máximo que
se dava para fazer, algo impensável para os dias de hoje.
E agora eu me ponho a pensar em como as pessoas que moravam
na baixada ou podiam alugar casas viam aquela turba na areia. É muito pouco
provável que pensassem: "é só uma família tentando se divertir um
pouco". Pelo contrário, deveriam se incomodar um bocado, querer que
fôssemos para longe, sem sujar sua praia, sem fazer barulho.
Há um muro que nos divide, e ele é alto e sólido. Há uma
barreira mais larga que faz entrever a divisão política que pousou entre nós e
ameaça assentar perenidade. Mas esse é o aspecto mais recente e, até certo
ponto, mais fácil de contornar. Muito mais complexo é o que está arraigado, e
muito menos perceptível. O muro passa pelo abismo financeiro, segue pelo racial
e étnico, anda pelo psicológico e desemboca até mesmo na linguagem, na maneira
como os lados percebem o mundo. Nessas horas, vou pensar em um autor que tenho
lido ultimamente, o norte-americano Willard Quine, e servirá de base para o que
eu quero dizer.
Em um primeiro momento, pode parecer que falar outra língua
se resume a trocar as palavras. Isso é alguma coisa semelhante a colocar etiquetas
debaixo dos objetos a que queremos traduzir, e assim andaremos. O importante é
intercambiar a referência, ou seja, o que eu chamo de alhos e bugalhos, um
inglês chama de garlics and nut-galls, e um italiano de agli e ghiande,
qualquer coisa assim.
"Tradutore, traditore", diziam nessa mesma
Itália já há um bom tempo. O efeito dessa teoria do rótulo é a tremenda
dificuldade de obter fidelidade nas traduções, mesmo quando feita por
linguistas gabaritados. Não é preciso ir longe: a tradução de O
Morro dos Ventos Uivantes feita por nada menos que Rachel de Queiroz é até
hoje objeto de críticas, não porque lhe falte talento ou capacidade, mas pela
dificuldade inerente. E por que isso acontece?
Para além da ausência de certas correspondências
linguísticas, é preciso entender que existe uma intersubjetividade que subjaz
no funcionamento de qualquer linguagem. Ninguém fala somente para si mesmo, e,
mesmo que tente fazê-lo, estará fadado ao fracasso. Primeiro, porque ainda que
eu queira falar sozinho, minha linguagem é fruto da comunicação que eu faço com
meus circunstantes. Depois, a linguagem não tem serventia outra do que
estabelecer contatos. Se a utilizamos na estruturação de nosso pensamento, é
por derivação. A linguagem é a minha subjetividade se comunicando com a
subjetividade do outro, e, por isso, Quine a classifica como arte social.
O problema da etiquetagem é que ele é uma passagem meramente
fonética. De fato, é um aspecto importante, mas que não dá conta de resolver a
questão semântica, central em uma relação intersubjetiva. Mais importante do
que correlacionar palavras e objetos é encaixar a linguagem no seu contexto,
porque há uma mobilidade de significado conforme a relação que se dá entre duas
ou mais pessoas. E as chaves de leitura entre uma cultura e outra precisam estar
tão claras quanto a vivência de cada um é para si mesmo… o que é praticamente
impossível. Por isso, traduzir é um problema. É o que Quine chama de inescrutabilidade
da referência.
Ele monta um exercício mental para fornecer um exemplo.
Estando em uma terra com estranhos que não falam sua língua, surge um coelho e
um dos nativos exclama "gavagai". A reação imediata é compreender que
esse termo corresponde a coelho, mas temos aqui uma incerteza: qual é a função
semântica de um coelho naquela cultura local? Pode ser apenas o bicho, mas pode
corresponder a um alimento, a uma espécie de companhia, a uma raridade, a uma
divindade, a um exemplo de ternura ou até mesmo a uma praga que dizima as
lavouras. Mais ainda, o nativo pode estar se referindo não ao coelho como um
todo, mas a uma parte dele, e, nesse caso, gavagai corresponderia a orelhudo ou
dentuço. Percebam, portanto, que uma associação entre a palavra gavagai e o
objeto coelho não dá conta do total de significados que essa relação pode ter.
Imagine você indo à noite na casa de um desses nativos e perguntando se teremos
fofura para o jantar. Ou que queira enaltecer um devastador bichinho peludo, dizendo como ele é lindinho,
para alguém que tenha perdido sua horta para um desses.
Eis que a linguagem depende de um meio social para existir,
e o mero referencialismo não é suficiente para produzir traduções. Se não
possuirmos as chaves contextuais de uma linguagem, podemos ser um dicionário
ambulante dela, mas, mesmo assim, não traduziremos nada.
Quine está se referindo, naturalmente, a aspectos muito mais
profundos das diferenças das linguagens, mas eu notei uma coisa aqui. É
bastante possível perceber como há diferenças referenciais dentro de um próprio
idioma. Notem a diferença de significação que entre a cachoeira para a elite e
para o proletário.
Quando se troca a língua, troca-se a visão de mundo, porque
todo o seu pensamento é estruturado a partir da linguagem que você vive, mesmo
que seja exatamente a mesma de outros estratos populacionais. Por exemplo:
quando alguém de nível social mais elevado (não gosto dessa expressão) diz que
vai à cachoeira, você pergunta: "qual?". Isso acontece porque está no
espectro dessa pessoa uma variedade de destinos em função de seus ganhos. Então
é possível que seja a cachoeira de 25 reais, ou alguma que eu pegue o carro
para ir a outro estado, ou ir às Niagara Falls ou, até mesmo, ir à Cachoeira
das Almas. Se não vai até esta última, é porque há um incômodo, e não uma
impossibilidade. Já para os que estão além do muro, a possibilidade é única.
Dizer que se vai até à cachoeira já faz subentender que o rumo é o possível, a Cachoeira
das Almas. Neste círculo, falar em “ir à cachoeira”, já significa ir à
cachoeira pobre.
Você que é paulistano como eu pode notar como nos orgulhamos
do sotaque fortemente puxado do italiano, como acontece na Mooca, bairro em que
nasci e do qual me orgulho, mas onde perceptivelmente se força a barra para ter
uma fala mais cantada do que já se tem naturalmente, e esquecemos que há outro
sotaque na própria cidade, um sotaque da periferia, duro, até mesmo soturno, a
quem damos caráter pejorativo, e que é retratado nos raps do Racionais, do
Emicida, do Xis. Esse é um sotaque autêntico e legítimo que só colocamos a
claro quando queremos representar o banditismo, a favela, a pobreza. É duro,
mas é isso: nosso salto social é tão grande que pode ser percebido até no modo
como falamos, ou nas cachoeiras que frequentamos, especialmente quando não
conseguimos nos comunicar com quem está em classe distinta.
Voltamos à noite para o hotel, já plenamente molhados e sem
toalha, o que deu uma bela zoada no carro, matando um pouco de saudades daquele
tempo da Kombi que subia a serra forrada de areia e sal em todos os bancos. Bons
ventos a todos!
Recomendação de leitura:
Esse é só o comecinho de Quine. Tenho lido e gostado
bastante.
QUINE, Willard. Palavra e Objeto. São Paulo: Vozes,
2010.
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