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quinta-feira, 29 de setembro de 2022

Pelo caminho das cinzas de um morto, a transição do Ser para o Outro

(O que a angústia de ter nas mãos uma moderna urna funerária pode nos fazer refletir? Talvez que tenhamos responsabilidades que não conhecemos direto)

Olá!

Tudo é bem recente. Estava em Taubaté fazendo pizza frita quando as mensagens começaram a chegar. “Vocês vêm hoje? Vocês vêm amanhã? Quando vocês voltam?” Essas eram as mensagens do senhor meu sogro no último fim de semana, em uma insistência que não é costumeira. “Tá tudo bem aí? Aconteceu alguma coisa?” foram as respostas da patroa, já ressabiada, conhecendo seus pais como a palma da mão. De toda forma, não era causa de urgência, do contrário teríamos uma ligação. Sendo assim, ficamos em compasso de espera. O mistério foi sanado na terça. A senhora minha sogra ligou chorando para a patroa, com um derramamento que lhe é característico até quando o gato do vizinho é atropelado, o que torna difícil mensurar a gravidade do caso. O rosto da patroa foi desanuviando à medida que ouvia a pantomina da mãe, até virar um sorrisinho jocoso, o que já me prenunciou mais uma da genitora. É preciso aqui descrever com cuidado e detalhe a ocorrência para que possamos seguir no nosso assunto.

O pai da minha sogra morreu há 24 anos. Foi sepultado em uma campa da família de uma das noras, em um cemitério de Santo André, o que livrou uma parte dos pesados custos do féretro. Eles não se davam lá muito bem, mas, no momento do aperto, um pouco de solidariedade não vai mal (e a economia dos cobres faz sepultar junto certos desconfortos). Acontece que a tal nora mudou para outra cidade, e perdeu todos os vínculos com a antiga moradia, vizinhos, convênios, pedicure e etc. Dessa forma, a manutenção do jazigo passou a ser um gasto inútil, já que todo mundo lá dentro já estava reduzido a ossos. Avisou à irmandade da sogrona que iria se desfazer da sua quota de campo santo e pediu para que providenciassem sua exumação, caso se incomodassem com a remessa dos restos mortais para o cruzeiro. Como essa patota é toda cheia de dedos e superstições, resolveram resgatar o “papai” e mandar cremar o calcário. O resultado foi uma urninha parecida com uma caixa de badulaques, que custou bons vinténs para os seis filhos sobreviventes. A questão se tornou que fim dar ao papai em pó, e aí começa a encrenca.

A senhora minha sogra é uma personalidade dúbia. Quando se trata de conviver com o sogrão e com a patroinha, ela é cascuda. Irrita-se com facilidade, com coisas graves como fazer barulho ao comer ou sentar torto na cadeira. Já com os irmãos é de uma indulgência que ultrapassa a barreira da subserviência, submetendo-se a absurdos que chegam a ser desumanos. Digo isso porque os cinco irmãos que não são minha sogra deliberaram, sem consulta, que o encargo das cinzas deveria ser exatamente dela, pelo fato de ser a primogênita.

É uma escolha de Sofia? Não me parece, mas não ME parece. Para os outros, como minha sogra, pode parecer. No meu caso, restos mortais nada mais são que isso: restos. De minha vontade, eu doaria meu corpo morto para pesquisa, ser útil em alguma coisa depois da morte. Contudo, compreendo que isso pode ser muito doloroso para os meus filhos, então eu deixo a critério deles o que fazer, desde me mumificar e colocar em um sarcófago até enterrar na várzea dentro de um saco preto. Só que a sogra sacraliza as cinzas do papai, e buscou até uma história de que ele queria ser enterrado junto com a esposa. Eu acho que é uma falsa memória, mas, se for verdade, é muito estranho. A vida comum dos dois não era nada modelar. Não que vivessem às turras e aos berros, mas, pior ainda, era um casal de absoluta indiferença. Quando estava prestes a morrer, a velha teve sua perna torada, por conta de uma trombose. O papai não teve nenhum remorso em colocar ela para dormir em outro cômodo, porque afirmava que ela passou a se mexer muito e fazer barulho no quarto. Sendo assim, não me parece crível essa vontade de permanência na eternidade (salvo algum peso na consciência).

Os irmãozinhos queridos não diligenciaram a tarefa por respeito à primogenitura da minha sogra. Fizeram-no para não gastar ainda mais, já que a exumação e cremação não saíram de graça. E, como eu disse, o que seria no máximo uma tarefa desagradável virou um dramalhão mexicano. Jogue no mar, solte no vento, leve para Minas que nasceu ou Paraná em se casou, enterre em um jardim… a cada conselho, um choro e uma oposição. Eu discretamente fingi ir ao banheiro, deixando o encargo para a patroa. O que ela quer é enterrar as cinzas no túmulo da velha, mas não há nem a certeza de que este ainda existe. Diante de toda essa incerteza, aliada ao gasto do enterro que os irmãos não compartilharão, a minha sogra está plena de angústia. É como se fosse uma segunda morte do pai, reservada apenas para ela. Sentiram o tamanho da encrenca? Quando a conversa se encerrar, eu volto aqui e cadastro a solução dada, para não lhes deixar pontas soltas*.

Eu não posso pensar só com a minha cabeça. As fronteiras da morte são muito embaçadas, e nunca é claro onde o confronto diário que temos com ela é aceitável ou não, pelo simples fato de sermos todos muito diferentes uns dos outros, e, embora eu possa parecer mais irônico do que deveria em um texto como esse, eu procuro respeitar o que é a dor de cada um. Ela não é consensual nem entre os leigos, nem entre os doutos. E vou mostrar como posições antagônicas podem ser elegantes, ambas.

No começo do século XX, entrou em voga, no âmbito filosófico, uma corrente chamada de Fenomenologia. Ela foi criada pelo tcheco Edmund Husserl e dizia, em seus mais básicos fundamentos, que toda realidade é apresentada para uma consciência. Isso tinha um significado imediato: se cada um tem sua própria consciência, cada um tem sua própria maneira de absorver o mundo que lhe cerca. Isso se dá porque não somos robozinhos com um processador padrão – todos recebemos educações diferentes, de culturas diferentes, repassadas por pessoas diferentes, nascidas em épocas diferentes. Dessa forma, qualquer objeto que observemos vem revestido por várias camadas de cultura, que se apresentam a nós antes do objeto que recobrem, sendo que a primeira e mais fundamental de todas é a própria linguagem. Pense numa vela, por exemplo. Ela é, fundamentalmente, um artefato para iluminar. Alguém a verá meramente nesse sentido, uma peça para substituir a lâmpada quando não houver força. Há outro sentido prático, o de aquecer. Quem precisa esterilizar pequenos objetos, já verá nela outro sentido. Pode fugir de seu uso pragmático e partir para um uso simbólico, ritualístico, como acontece em inúmeras religiões. Pode ser ainda um objeto estético, e, nesse escopo, tanto pode enfeitar e perfumar um cômodo, quanto ser um adereço de dança. Pode mudar de sentido pelo seu material ou sua cor, pelo tamanho da sua chama, pela época do ano em que seu sentido concreto ou metafísico é invocado. Tudo isso pode ser extraído de uma vela e vai depender de um sem-fim de fatores, e cada um verá essa vela de acordo com as circunstâncias que moldaram sua consciência. Quando o filósofo vai analisar essa vela pelo método fenomenológico, procura retirar qualquer conhecimento anterior que se tenha sobre ela, removendo todas as capas de cultura e preconcepções, para evitar a contaminação do processo cognitivo. Isso é fácil? Não é, mas é necessário esse esforço para que se chegue ao âmago de uma essência. Isso é o que é chamado em Filosofia de redução eidética, ou seja, a remoção de qualquer ideia (eidos) enviesada que tenhamos sobre um determinado assunto ou objeto.

Martin Heidegger tornou-se adepto da Fenomenologia, e utilizou-a não para analisar um objeto qualquer, mas a essência do Ser por excelência, o próprio humano, e suas relações com o universo. Eu já falei sobre essa sua tese do humano como Ser, neste texto. Portanto, vou só dar uma rápida repassada: o ser humano, enquanto visto como essência, tem uma permanente relação com seu meio, mas que se mantém em destaque peculiar: é um homem presente, que está no mundo e que se pergunta sobre sua essência - o ser-aí (dasein). Esse dasein vive para si, para o mundo e para os outros, mas toda essa relação desemboca em seu propósito último, a morte. Desta forma, o dasein e todos os demais aspectos do ser são, na verdade, o ser-para-a-morte, caracterizado pela angústia. É porque a existência do dasein assemelha-se a uma estrada cujo fim é um muro. Parafraseando Toquinho, e ali logo em frente a esperar pela gente o futuro está. Pior ainda: há um muro no ponto de fuga do horizonte, e saberemos que em algum momento chegaremos nele, mas não sabemos com exatidão quando. Não sabemos de nada que está para lá deste muro chamado morte, e por isso temos aquela permanente angústia que caracteriza o ser humano, e que foi dissecado com tanta propriedade pelo Existencialismo.

Pelo que podemos notar, o dasein heideggeriano é um primado do indivíduo. A pessoa que pergunta sobre sua própria essência está delimitada por si mesmo, já que eu não tenho como acessar a consciência de outros seres. Como somente é dele que se pode depreender uma consciência autônoma e conhecida, não é possível extrair de outra parte um ponto de vista, que permanecerá sempre em si mesmo. E como será com a morte? O ser humano não pode projetar coisa alguma, por estar dentro de si, assim como só sabemos que o planetinha é azul porque um dia nós saímos dele. Não é possível colocar a morte diante de nós para que possamos encará-la?

O filósofo lituano Emmanuel Levinas, a quem tenho acompanhado com recente interesse, oferece uma resposta. Ao contrário do olhar ontológico de Husserl e Heidegger (e, por extensão, de todos os adeptos da Fenomenologia), Levinas extrai do indivíduo a centralidade filosófica e a transpõe para o Outro, digitado em letra maiúscula para que se dê a ele noção de sua importância, estabelecendo uma ética da alteridade. Há a percepção de que toda a Filosofia, ao se ocupar do Ser como entidades ontológicas (vistas como essências), aponta sempre para a totalização e para a uniformidade, ou seja, para coisas eternamente iguais a si mesmas, invariáveis. Um ser humano, visto dessa forma, não cumpre com aquilo que temos em nosso convívio, não explica as variações, não justificam a diversidade. Vejam: não se trata de negar uma raiz ontológica para o homem, mas unicamente de se enganar no viés de análise. Quando olhamos para a humanidade através da ótica ética, todas as diferenças se justificam. É no outro que está muita explicação para nós mesmos.

A principal representação da alteridade que Levinas utiliza é o rosto. Não se trata aqui meramente do aspecto físico facial de uma pessoa, mas o distintivo de uma presença sobre a qual eu tenho uma responsabilidade. E não se trata aqui de uma responsabilidade alla Pequeno Príncipe apenas (“tu te torna eternamente responsável por aquilo que tu cativas”), mas um reconhecimento de um significado sem contexto e sem preconceitos a cada um que se olhe. Não importa de onde vem, para onde vai, como se chama, de que cor é, a qual etnia pertence, o Outro é um elemento de revelação de mim mesmo e da própria realidade em si.

O rosto, portanto, é o elemento de identificação de outro humano, e sem importar sua beleza já carrega uma predisposição ética que é dada desde a sistematização moral judaica, contida nos mandamentos: não matarás. Isso porque o rosto expressa a vida - só o vivo ri, chora, geme, teme, enoja-se, enraivece-se, assusta-se. É com o rosto do Outro que nos relacionamos e responsabilizamos. O rosto é a expressão de que existe um indivíduo fora de nós, com o qual devemos reconhecer a titularidade de direitos e de existência. Ao reconhecer a responsabilidade que temos sobre o Outro, reconhecemos a responsabilidade que temos para com a humanidade inteira.

Quando vai à morte, o rosto se transforma em máscara. Já não é mais uma expressão de vida, porque a máscara não é rosto, é apenas uma simulação que ainda traz uma expressão, agora fixa, agora eterna. O rosto morto possibilita a nós tornar possível algo que não conseguimos testemunhar em nós mesmos. É o sair de si que era impossível para o dasein heideggeriano.

E como isso acontece? Pelas medidas das reações que temos diante de um caixão, por exemplo. Lá, o universo de emoções que vivemos se dá pela medida da responsabilidade que tínhamos por aquela vida que se esvaiu. A cada vez que vivemos essa experiência, e Levinas, sendo judeu em plena ascensão do nazismo, a teve em profusão, retomamos uma relação ética: o que eu poderia ter feito para manter a vida desse rosto que se torna máscara, ainda que eu nunca o tivesse visto antes? É nessa morte que eu mesmo posso projetar para fora de mim o que será esse além-muro do ser-para-a-morte heideggeriano.

Em resumo: enquanto Heidegger se preocupa com o ser humano que se caracteriza pela permanente angústia diante da morte, Levinas resgata o Outro como elemento com o qual o ser humano obtém uma experiência ética concreta diante da morte, ao reconhecer o espelho que é a morte do Outro para a sua própria morte. Pode não ser divertido, mas é interessante. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Ainda estou estudando este filósofo, e ele é muito interessante, e deverei voltar a ele. Esta é sua magnum opus: 

LEVINAS, Emmanuel. Totalidade e Infinito. Coimbra: Edições 70, 2008.

* Bem, o túmulo da mãe não existe mais. Foi tragado pela correria de sepulturas da pandemia e sua ossada, dizem, foi parar na vala comum do cruzeiro. Sendo assim, a senhora minha sogra localizou mais ou menos onde ficava a sepultura e enterrou as cinzas do papai ao pé da árvore mais próxima. Nem foi tão trabalhoso assim.

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