Já deu o que falar o
meu último texto, em que versei sobre a polêmica envolvendo a vlogueira e
atriz Kefera Buchmann, onde tentei elucidar um pouco melhor o conceito
sociológico de lugar de fala. Mas preciso demarcar melhor o real alcance do que
estou falando, porque dá a impressão que estou nos trending topics com muita gente discutindo onde acerto e onde erro
nas minhas proposições sobre feminismo e congêneres. Nada disso. Na verdade,
meus mais fieis seguidores são mesmo os meus amigos, a quem fico aporrinhando
para ler meus textos, e a discussão principal não se deu em termos
sócio-filosóficos, como eu gostaria, mas por conta essencialmente desta frase:
“É louvável que sua
temática amadureça, que saia do mero entretenimento e é muito bom sua adesão à
causa feminista, porque sua notoriedade carrega toda uma visibilidade de um
público que lhe acompanhava de perto até então e que lhe ouve, além de lhe
tirar uma certa impressão de futilidade (o
que não é um mal em si)”.
Em suma, eu falei sobre amadurecimento, dificuldade de
conceituação, empatia, alteridade, teia social, minorias, representatividade e
o pessoal está me pondo na parede porque eu não afirmei com todas as letras,
pontos e acentos que o ideário da moça em epígrafe é frívolo como ela própria,
ou, melhor dizendo, por quais motivos eu me ocupo de coisas tão banais. Ai,
ai...
Vamos lá, ínclitos confrades. Em primeiro lugar, não existe
tema banal em Filosofia. Tudo, absolutamente tudo é passível de análise e
pensamento, desde temas da mais alta abstração, como designadores rígidos e
estruturas lógico-linguísticas, até concretudes fúteis do nossos quotidiano,
como novelas, futebol, vlogueiras de sucesso. É através desta máscara que o
cosmos apresenta a nós que temos o contato primal com assuntos que se tornarão
muito mais profundos, ora essa. A teoria da gravidade nasce com a queda de uma
maçã, não é verdade?*
Mas é preciso pensar um pouco sobre a imagem que fica
sedimentada sobre cada um de nós. Como eu gosto de escrever sobre Filosofia e
circunvizinhos, o pessoal tende a achar que tudo o que leio são artigos
acadêmicos ou alta literatura. Não, eu leio gibis também. Acham que tudo o que
eu assisto são mesas-redondas sobre temas da mais erudita especificidade, mas
eu gosto mesmo é de desenhos animados. Aliás, o pessoal acha que meu passatempo
favorito é jogar xadrez, mas eu curto de verdade é estar em uma arquibancada,
xingando a senhora progenitora do juiz. Quem me lê, pode achar que eu só me
sinto motivado a ver filmes de arte europeus, daqueles em que o cineasta fixa
dez minutos de película em uma fumaça de cigarro que se perde no espaço, mas
não. Eu me divirto com besteirol, não preciso estar o tempo todo com as
engrenagens cerebrais em funcionamento. Tudo o que eu quero, por vezes, é dar
risada. Isso acontece em tudo, inclusive com vídeos do YouTube.
Eu vou dar aqui bons exemplos de canais que sou inscrito,
para que vocês entendam melhor. Algum tanto do que escrevo aqui tem inspiração
em vídeos, e procuro-os várias vezes para conhecer mais sobre temas dos quais
quero me aprofundar, em especial aqueles que tem o magnífico hábito de fornecer
fontes.
Foi fazendo pesquisas sobre homoafetividade que eu cheguei a
gente excelente, como o Murilo Araújo do canal Muro Pequeno, que fala sobre a
difícil tarefa de conciliar causa LGBT e Cristianismo, ou ao canal Quebrando o
Tabu, que expande seus temas para a afirmação racial e propostas eleitorais, ou
ainda o Põe na Roda, canal do Pedro HMC, que trata de cultura pop concernente à
temática. Há também o canal Guardei no Armário, do Samuel Gomes, que recolhe
muitos depoimentos sobre o difícil momento de se assumir, ou até mesmo o Para
Tudo, da drag queen Lorelay Fox,
alter ego do publicitário Danilo Dabague, que, apesar da temática muitas vezes
ligada à “montagem” do personagem, traz vídeos relacionados ao seu modo de ver
e viver o mundo, com as confusões tão típicas entre pessoa e persona. E foi
assim que eu cheguei ao canal Diva Depressão, eminentemente de humor LGBT. Confesso
peremptoriamente: eu ME CAGO de rir daqueles dois, especialmente quando fazem
suas inextricáveis, herméticas e viscerais investigações sobre... looks de
famosos.
Desculpe se eu decepciono alguém, mas duvido muito que haja
quem se fixe unicamente nos eruditos. Existe um negócio chamado lazer, que
serve justamente para dar um alívio nas coisas mais sérias da vida. Pergunte
para qualquer pessoa sobre o que ela pretende fazer após a aposentadoria.
Invariavelmente se falará sobre coisas prazenteiras, mesmo que seja trabalho,
como cuidar de uma hortinha sem a necessidade de tirar dela seu sustento. Pouca
gente tira férias para arrumar coisas da casa. Se ocorrer, seu semblante será
de um sofrimento semelhante à perda de um parente (já fiz isso para consertar o
telhado). Por isso, lazer é essencial, e por vezes tem que ser frívolo mesmo.
Dia fútil, dia útil, já dizia um reclame da rádio Cultura.
Mas esta casca de insignificância oculta algo que vale ouro,
e que vai muito além da mera proposta de diversão, o que, como eu já disse, se
justifica por si só. Acompanhem meu raciocínio, apoiado por um dos mais
consideráveis sociólogos alemães, Georg Simmel.
Vivemos em sociedade e blá-blá-blá. Mas o que é essa tal de
sociedade? É um somatório de pessoas e nada mais? Não, claro. Para Simmel, a
sociedade é o agrupamento de indivíduos que interagem entre si. Esta é uma
definição mais aperfeiçoada do que tínhamos correntemente em sua época de
atuação, o começo do século XX. Até então, dizia-se que sociedade era o
conjunto de cidadãos de um determinado espaço físico. Mas não havia sentido em
se dizer que viver junto era sinônimo de sociedade, porque para que cada um
seja reconhecido como ator, é preciso que tenha um papel a desempenhar, que
este seja bem conhecido e que tenham entre si algum nível de interdependência.
Uma importante diferença a ser estabelecida entre interação
e socialização: a primeira é um contato onde duas ou mais partes percebem e são
percebidas. É como quando perguntamos para alguém onde fica determinada rua. Há
uma aproximação feita pela fala, como um bom-dia,
por exemplo, a chamada de atenção, a pergunta, a resposta e o agradecimento, e
nada mais. Já a socialização traz consigo toda uma carga cultural e de
expressão de valores, que fazem com que as pessoas sigam uma norma na sua
convivência. No mesmo exemplo da rua, o fato de se falar o bom-dia no início e o obrigado
no final da pergunta já denotam um costume, um hábito que é sedimentado
socialmente e tido como bom pelo meio onde se vive. Desta forma, a socialização
se dá através da interação, mas não se limita a ela. A interação, para ser
considerada um objeto de socialização, precisa carregar consigo a intenção de
influenciar o meio onde se vive, com o rebote de também ser influenciado em
troca. Esse vai-e-vem de interações é exatamente o que chamamos de sociedade, e
Simmel dá o nome de sociação a esta
interação recheada de propósitos.
A interação social, portanto, não se dá sem uma
intencionalidade. Todo aquele que interage o faz motivado por alguma
necessidade ou dependência, nem que seja uma mera conversa em um fim de tarde
de domingo. Essa sociação tem um conteúdo, que corresponde ao elemento
motivador da relação social. Esse conteúdo é exatamente o aspecto individual da
interação, aquilo que leva alguém a cometer qualquer ato social. Se tenho
raiva, se tenho ternura, se tenho necessidade física, o conteúdo é o elemento
subjetivo impulsionador da sociação, e que se traduz naquilo que Simmel chama
de forma, a maneira física com a qual ela se torna manifesta. O xingo é uma das
formas do conteúdo raiva; a entrega da flor, do conteúdo ternura, e o pedido de
esmola, do conteúdo necessidade física.
E se um grupo está presente, mas não existe grandes
processos de socialização com os restantes? Existe uma parte específica dos
estudos de Simmel que fala sobre a curiosa situação do estrangeiro, e que é
muito boa para entender como presença física não insere automaticamente no meio
social, como pareciam pretender outros pensadores sociológicos. Vamos começar
do começo.
Quando os homens viviam em meio rural, era frequente que as
interações entre todos os habitantes da cidade fossem intensas. Em suma, todo
mundo conhecia todo mundo, e sabiam bem o que todos faziam de suas vidas. Com o
advento da Revolução Industrial e da consequente urbanização, cada vez mais os
indivíduos entraram em um processo de especialização. Quando viviam no campo
eram obrigados a fazer tudo, desde cultivar até construir a casa onde
habitavam, passando por tecer, rachar lenha, alimentar os filhos e os animais,
prever o tempo, reparar as ferramentas de trabalho. Já a vida nas cidades era
diferente. O cidadão não precisava saber fazer tudo, mas o que ele sabia fazer
precisava ser levado à perfeição, com uma velocidade extremamente desvinculada
do tempo natural (para ler mais sobre esse fenômeno, acesse este
outro texto do meu blog). Isso o leva a um estado psicológico de retração,
primeiro porque é impossível conhecer todas as pessoas que moram em seu mesmo
espaço físico, e segundo porque não há mais interesse em se saber de tudo um
pouco. Essa impossibilidade de alcançar o meio social por completo faz com que
o indivíduo desenvolva aquilo que Simmel chamou de atitude blasée. Este termo francês significa aquele sentimento de
tédio que temos nos fins das aulas de sexta-feira, quando não aguentamos mais
os professores de cálculo falar sobre derivadas e integrais**. Ou seja, a
atitude blasée é uma manifestação de indiferença com aquilo que está
acontecendo ao nosso redor. Somos mais impessoais.
É por isso que a vida nas cidades parece menos integrada
interpessoalmente que a do meio rural. As pessoas passam nas ruas e dificilmente
se cumprimentam, lidam entre si de maneira bastante formal e via discorrendo. Mas esta é a parte mais
externa da coisa. A atitude blasée denuncia uma indiferença não só com as
pessoas que estão nas nossas proximidades, mas com nacos inteiros da vida
social. Há uma espécie de hierarquia de importância nos nossos contatos
sociais, onde aqueles mais estranhos ao meio são aqueles que receberão a carga
maior de indiferença.
Simmel volta sua análise para os judeus da Europa. São
grupos que eram compostos por estrangeiros com alto grau de endogenia, ou seja,
suas relações se davam majoritariamente dentro de seu próprio grupo. Eles têm a
proximidade necessária para se fazer parte de uma determinada sociedade, mas se
colocam distantes justamente pela falta de interação. Essa atitude não parte
unicamente de dentro para fora, já que os judeus eram mal recebidos em muitas
partes onde tentavam se estabelecer: eram tidos como deicidas, como negociantes
natos, enfim, não eram lá muito bem quistos por aí. O estrangeiro, nesse
sentido, parece estar sempre em situação precária, sempre de passagem. Os laços
de pertencimento são frágeis, ou mesmo inexistentes. O estrangeiro compartilha
o espaço com outras comunidades, mas não está integrado a ela.
Se percebermos que Simmel está se referindo a uma comunidade
cuja principal característica é seu laço religioso, e não sua nacionalidade em
si, podemos deduzir que é possível estender sua análise a outros grupos que
vivam sobre outro tipo de elo, de modo que possam ser considerados estrangeiros
em sua própria terra, e que tenham dificuldades em se integrar à sociedade da
qual deveriam fazer parte. Em síntese, mesmo que estejam organicamente inseridos
em um espaço físico, são considerados como “os de fora”, e para eles a sociedade
em geral volta sua atitude blasée.
Ok. E o que isso tudo tem a ver com o canal Diva Depressão?
Tem a ver o seguinte: todo grupo que é estranho a um determinado meio social
não o faz porque quer, via de regra. E é difícil que este tipo de situação se
mantenha sem que se esperneie de alguma forma. Imagine-se corintiano em uma rua
de palmeirenses. Ninguém vai se preocupar se as eventuais comemorações de
título lhe incomodam, muito pelo contrário. Você, minoria, será objeto de
chacota a todo instante, de violência, de desprezo. Os palmeirenses quererão
que você vá embora, purificando a rua de toda mácula alvinegra. Você, vestido
em sua dignidade, resistirá, lutando pelo seu direito de ser como é, corintiano
dos quatro costados. Tentarão em vão convertê-lo, mas não é possível, vai
contra sua natureza e sua cultura. A sua resistência incomodará até o ponto em
que alguns dos palmeirenses comecem a vê-lo com simpatia. “Esse corintiano é
porreta”, dirão. Não se incomodarão mais em dar folga ao corintiano, passando
até mesmo a conviver com ele. Verão que ele é uma pessoa comum, como eles
mesmos. Perceberão que o que define um corintiano é torcer para o Corinthians,
e nada mais. Maloqueiro, sofredor, analfabeto, desdentado, tudo isso é bobagem,
como é bobagem dizer que palmeirenses são porcos, sujos, mafiosos, brincadeiras
que lhes colaram na testa e que não desgrudam mais. Aos poucos, alguns deles
confessarão que, na verdade, não são de fato palmeirenses, mas torcedores de
outros times que tinham medo de se declarar, face a violência e o menosprezo
devotado ao grupo minoritário. A reação inicial é ruim, mas é preciso mostrar a
todos que a convivência com o corintiano não é nada demais, que ninguém pode
obrigar um palmeirense a se manter ou deixar de ser o que é. Esse processo é
coisa para anos a fio. Os dois escretes citados são exemplos. Troque por
qualquer um de sua preferência, o efeito é o mesmo. O importante é perceber que
a atitude de indiferença precisa ser chacoalhada.
Todo mundo já deve ter percebido que eu quis traçar uma
metáfora. Os pontos de interseção são a exclusão e a vontade de silenciamento
do grupo não integrado. Canais engajados, como os que citei, tem o papel de
soltar o grito de propor o enfrentamento com as armas da racionalidade. Em
resumo, são aqueles que metem o dedo na ferida. Eles são necessários e cumprem
um papel primordial, cujo mesmo não dá para viver sem. Mas o diabo é que a
militância sempre traz consigo o substrato do confronto, o que nunca é
confortável, por mais que a reivindicação seja justa. Ninguém gosta de ser
chamado de opressor, mesmo que seja. Quem milita afirma: “podemos viver em
paz”. Mas o que é esse viver em paz com aquele que mete o dedo na minha cara? O
que inserir o outro harmonicamente em meu convívio?
Essa é a pedra de toque de canais como o do Filipe e do
Eduardo. Eles demonstram o que poderia ser a vida se a camada LGBT pudesse se
manifestar livremente, já com o pressuposto da desnecessidade da militância. É
assim que podemos evocar um mundo futuro, sentir seu sabor e ver que ele não
tem nada de errado. Assistindo o seu canal, vemos que são pessoas divertidas,
espertas, sórdidas por vezes, mas que, essencialmente, são convivas ótimos. Não
é necessário que exista uma barreira entre as camadas populacionais, porque eles
trazem aquilo que os canais de militância têm dificuldade em fazer: uma aura de
normalidade nas relações. Eles não são bichos papões que vão ensinar seu filho
a ser gay, a esterilizar a população, a impedir que casais hétero se desvirtuem
em promiscuidade. São o que são, não precisam ser tratados como estrangeiros em
sua própria terra.
Taí, a importância de ser fútil. Quer dizer, de viver de forma comum.
Recomendações:
Simmel não é tão considerado como deveria, mas recentemente
sua obra tem recebido uma maior atenção por parte dos meios acadêmicos. O
livrinho abaixo dá uma boa ideia de seus pensamentos.
SIMMEL, Georg. Questões
Fundamentais da Sociologia. Indivíduo e Sociedade. Rio de Janeiro: Zahar,
2006.
Abaixo, os endereços de todos os canais que citei neste
texto:
Muro pequeno - https://www.youtube.com/channel/UCnQvEAzKAnc5lz0h6qwPL-w
Quebrando
o tabu - https://www.youtube.com/channel/UCju0n7zSTdS_CH-55h8u9bw
Põe na
roda - https://www.youtube.com/channel/UC1cpNboD3WmXMq4wFt6C2eA
Guardei no armário – https://www.youtube.com/channel/UCIGrPifACeuKmskaDKxJ6mQ
Diva
Depressão - https://www.youtube.com/channel/UCMpWpGXG8tlWA6Xban2m6oA
* Não, não é verdade. Ou, ao menos, não se sabe. Essa fábula
sobre a maçã que caiu na cabeça de Newton deve ter nascido de algum exemplo e
funciona muito bem como ilustração, mas não há nenhum relato deixado por ele
sobre esse fato. Vejam um artigo interessante sobre essa assunto em http://www.ghtc.usp.br/server/pdf/RAM-livro-Cibelle-Newton.pdf.
** Perdão aos colegas de Matemática. Reconheço 100% do valor
das coisas que vocês ensinam, mas é uma questão de vocação mesmo. As coisas que
não entendemos nos chateiam de verdade. Entendam isso tudo como uma limitação
de minha parte, e não uma crítica.
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