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quarta-feira, 29 de setembro de 2021

O livro de Jó e a Filosofia da teodiceia que há por trás dele

(Por que existe o mal no mundo? Essa é uma pergunta tão antiga e tão sem resposta que nunca perdeu sua atualidade)

“Se tão somente ficassem calados, mostrariam sabedoria” – Jó

Olá!

Tudo bem com vocês? Conforme pude avaliar nos meus posts comemorativos (100º texto e 5 anos de blog), meu escrito mais lido versa sobre o Eclesiastes, livro bíblico que mais se aproxima de um tratado filosófico, a ponto de tratar de alguns dos temas mais caros aos pensadores pré-socráticos, como a dialética entre a permanência e a variabilidade do Ser. Dado este fato, resolvi abordar mais alguns temas bíblicos, não pelo prisma teológico, já que não tenho conhecimento para tanto, mas para extrair um pouco de Filosofia a partir de suas narrativas. Comecei fazendo novas reflexões sobre o mesmíssimo Eclesiastes, desta vez mirando mais a questão do tempo e sua estrutura dialética. Desta vez, vamos tentar descortinar um pouco do livro de Jó, mais conhecido como símbolo da paciência (estaria mais para resiliência nos dias de hoje).

Essa história da paciência é o que tornou este livro bíblico célebre para o senso comum, mas, bem medida e bem pesada, trata-se de uma questão para lá de lateral. O que é de mais significativo na narrativa sobre Jó é o sofrimento humano (cuja paciência proverbial é necessária para suportá-lo), e, principalmente, a grande pergunta: por que o mal existe?


A história de Jó é bastante conhecida, portanto façamos apenas um breve resumo. Jó era um pecuarista próspero de algum lugar meio incerto da atual Palestina, que é denominada Terra de Uz. Vivia sobriamente e se apartando o máximo possível do pecado, e era um motivo de orgulho para Javé, o deus judaico. Em um certo momento, Satã, aquele mesmo, propõe um desafio a Javé: retire tudo de Jó para averiguar se sua dedicação permanecerá. Todo o gado foi saqueado ou morto, enquanto os seus filhos foram atacados e passados pelo fio da espada. Mesmo com todos esses dissabores, Jó permaneceu louvando a Deus. Satã lança uma segunda proposta, também aceita por Javé: macular o próprio Jó, cobrindo-o de feridas. Jó se assentou em meio à cinza, e lá ficou se coçando com um caco de louça. Três de seus amigos* vieram para lhe prestar solidariedade, e este é o trecho mais longo do livro. Jó proclama grandes lamentações sem, no entanto, maldizer a Javé em momento algum, apenas clama por sua retidão e por uma explicação, que é a tônica de todo o texto: por que o justo sofre? Seus amigos tendem a imputar-lhe alguma culpa não declarada, indicando haver um pecado oculto para tamanho castigo, o que Jó nega veementemente. No desfecho do livro, o próprio Javé se apresenta a Jó, e passa-lhe bela carraspana, que sobrou também para os seus amigos Elifaz, Bildade e Zofar. Expõe as maravilhas da criação e demonstra que é impossível de Jó querer se comparar em conhecimento ao que ele mesmo, Javé, tem. E, por fim, diante da contrição apresentada, restitui todos os bens e lhe dá novos filhos, além de vida longa e farta.

A crítica histórica em geral é favorável à tese de que Jó não tenha sido efetivamente existente, posição que é corroborada pela igreja católica e por protestantes menos literalistas, como é o caso das divisões mais tradicionais. Isso ocorre porque faltam outras fontes que se refiram a um personagem muito rico e que teve uma marcante queda e um novo florescer, coisa que não deveria passar despercebida em uma região relativamente pequena. É mais provável que se trate de uma história de fundo moral, transmitida oralmente através das gerações para ensinar nos templos que é um erro comparar o conhecimento humano com os mistérios emanados de deus. Sob o prisma filosófico, a existência ou não de Jó é irrelevante, vez que o que importa é a ideia que a narrativa desenvolve.

Apesar de ser um texto especialmente da Teologia, existem questões que transcendem à mera doutrina e aspectos laudatórios, que vão interessar diretamente à Filosofia. O primeiro aspecto é a posição do homem diante da sensação de injustiça. Todos nós já passamos alguma situação em que nos sentimos extremamente injustiçados, mesmo que o sentimento seja desproporcional ou irreal. É uma situação em que dificilmente deixamos de reagir, mesmo que sejamos muito pacíficos. Eu já descrevi um acontecimento em que me senti injustiçado neste post, mas vou contar a vocês uma ocorrência muito mais séria.

Eu trabalhava em uma metalúrgica e fui nomeado secretário da CIPA**. Apesar da pompa do cargo, era um trabalho simples: transcrever os debates em um livro, extraindo uma cópia fiel para colher assinaturas e enviar ao sindicato e à delegacia regional do trabalho. Só isso, sem um centavo a mais de remuneração.

Fiquei nessa função por três anos, sempre cumprindo rigorosamente os prazos e desfiando minha redação acima da média e com a modéstia guardada na gaveta, até ocorrer um fato insólito. Um dos membros foi demitido, o que só poderia ser feito por justa causa, já que a lei protege os cipeiros de demissão a critério. No processo que se seguiu, apareceram nos autos cópias diretas do livro de registros de atas, o que me colocou no olho do furacão. A pergunta veio seca: por que você deu as cópias para o D*** colocar no processo? A resposta também: Que cópias? Eu não dei cópia alguma, embora não teria feito nada de errado se o fizesse. Mas a aura que se deu é que esse era um ato de traição, e o olho da rua se afigurava como a serventia da casa naquele momento.

Não era uma época especialmente ruim para emprego, mas ser demitido carregando a pecha de traíra não estava dentro do meu horizonte, e comecei a fazer de tudo para comprovar minha inocência. Peguei um dos caras do DP e fui fazer minha peregrinação. Na justiça do trabalho, fui conferir o processo e, de fato, estavam lá os manuscritos xerocados. Fui ver se eles saíram do DRT, mas de lá só havia a transcrição datilografada. Fui ao sindicato e idem, mesmo documento. Conversei com o colega demitido, que me enrolou sem confessar a origem e disse para eu contatar o advogado dele. Liguei para este, que tentou me por na roda, dizendo que tanto podia ter obtido no DRT ou no sindicato, o que eu já havia conferido, tudo isso com o cara do DP. No final do dia, já em flagrante desânimo, ainda tentei mais uma ligação para o demissionário, dizendo que ia me custar o emprego. Não o comovi, o que me gerou até certa desconfiança de mim mesmo. Será que eu havia distribuído a cópia e nem me lembrava mais?

Meu chefe à época me chamou e disse: “cara, se você deu a cópia, é melhor você confessar. Pode ser que o gerente deixe passar”. Eu respondi com o máximo de sinceridade: "Toninho, não fui eu. Não consigo dizer se alguém veio aqui e tirou as cópias, o livro fica em cima da minha mesa, ele não é secreto. Mas eu não fui".

O chefe e o cara do DP foram ao gerente levar seus pareceres. Minha indignação e vontade em provar minha inocência, testemunhadas por ambos, era tanta que acabou servindo como prova. Poderia ser uma atuação perfeita de um ator em grande forma? Sim, mas é difícil manter uma mentira com tanta perfeição.

É que a sensação de injustiça mexe com os brios da pessoa, e engoli-la não é para qualquer um. Não foi para mim, não foi para Jó. Diante do homem que se coloca como um perfeito cumpridor de suas obrigações, obter o efeito exatamente inverso é, antes de mais nada, um erro lógico. Se há uma ordem natural no funcionamento do universo, a injustiça vem no seu sentido contrário, vem confrontar tudo aquilo que podemos esperar entre causas e efeitos, e isso é como um zumbido no ouvido durante a noite mais silenciosa. Mais ainda quando vem em contraste com as promessas de sua divindade. Para quem crê nela, bem entendido.

Mas há uma segunda questão mais universal ainda, e que até hoje é de resposta indefinida, embora tenha havido boas tentativas, como mostrarei aqui. O homem sofre porque o mal existe, mas os fundamentos das religiões abraâmicas dizem que Deus é bom e criou tudo, e tudo o que ele criou é igualmente bom. Por que Deus criou o mal? Este é o problema que ficou conhecido como Teodiceia, e já o abordei nesta casa, mas há outras teses igualmente interessantes.

Uma das mais conhecidas tentativas de resposta veio de Santo Agostinho. Para ele, o mal não é um estado concreto, que tenha necessidade de uma criação. O mal surge quando o bem não está presente. O mal é a ausência do bem, em síntese.

Vamos deixar isso mais claro. Quando voltamos ao velho Parmênides, encontramos a noção do não-ser. Relembrando sua máxima, ele dizia que "o ser é, e o não-ser não é, nem poderia ser". Essa frase, entre outras interpretações, diz a nós que há duas opções bastante claras sobre a essência de qualquer coisa que exista no universo. Uma é a presença da coisa, que preenche uma existência, e outra é o vazio causado pela sua ausência. Quando Agostinho fala da essência do bem, refere-se a uma criação de Deus como todas as demais. O bem é aquele estado onde tudo funciona segundo uma lógica da perfeição. Entretanto, qual seria o não-ser do bem? É a sua própria ausência e é aí que acontece o mal. O mal é exatamente o vazio do bem, o não-ser do bem. O homem é racional e possui livre-arbítrio, por esse motivo acaba muitas vezes escolhendo o caminho da ausência do bem. O homem pérfido está na ausência da benevolência, o homem iníquo está na ausência da complacência, o homem corrupto está na ausência da retidão, o homem mau está na ausência da bondade. Desta forma, o mal não pode ser imputado a Deus, mas às escolhas do ser humano.

As justificativas de Santo Agostinho são boas para explicar o mal produzido pelo homem, mas não para explicar o mal que se volta contra o homem. Fica meio difícil de encaixá-la nas ocorrências que não dependem das atitudes humanas, como as catástrofes naturais ou as doenças congênitas. Não havia, por exemplo, nenhuma ação humana possível no terremoto de Shensi, que matou estimados 800 mil chineses no ano de 1556. Neste caso, como dizer que a morte dessas pessoas não é um mal? E como atribuí-lo a uma ausência de bem? Não há valores morais na mecânica do cosmos, mas há consequências devastadoras.

Quem vai tentar uma resposta mais abrangente é Leibniz, o pai da monadologia. Segundo ele, a partir do momento em que Deus cria o universo, há uma infinidade de possibilidades de conformação de todas as coisas. Existem infinitos mundos possíveis, mas apenas um existente, real, palpável, visível e sensível. E por que este, e não outro qualquer, principalmente onde o mal não existisse e comprovasse a infinita bondade de Deus? Leibniz se baseia no entendimento de que as conclusões a que chegamos através da razão nada mais são do que a redescoberta do que já nos é dado através da fé. Veja-se, por exemplo, o caso dos milagres. Eles são uma contingência que ferem uma lei geral. Entretanto, muitas das vezes consideramos como milagres fenômenos que na verdade nada mais são do que ocorrências naturais, ocorridas em determinadas condições, e que simplesmente não possuem explicação bem formada naquele momento específico. Isso dá uma ideia de como a visão dos seres humanos sofrem mudanças com o tempo, na medida em que sua compreensão sobre o cosmos se torna mais sofisticada.

O mundo atual é o melhor dos mundos possíveis e o mal existente não é sem razão. Mesmo este melhor mundo possível pressupõe uma certa dose de males porque eles são uma necessidade ao seu próprio equilíbrio. Imaginamos quando crianças uma gazelinha correndo nos campos e nos parece um mal que um leão a abocanhe. É somente mais tarde, com o desenvolvimento da razão e com o amadurecimento, que percebemos que este fato não é um mal, sendo apenas um meio de se manter a harmonia do mundo. Somos uma humanidade que se encontra permanentemente no estado de infância, e nossa perspectiva é de natureza finita, que não percebe a harmonia preestabelecida por Deus.

A resposta que obtemos a partir da narrativa de Jó vai no mesmo sentido da teodiceia de Leibniz, embora de maneira mais simplificada e conformista. Os debates entre ele e seus amigos fica resumido a um confronto de acusação e defesa, mas a verdade é que ambos os polos são incertos: se Jó não compreende a desgraça que se abate sobre ele, os seus interlocutores tampouco sabem ao certo qual seria tal motivo, apenas se atém à hipótese do pecado não sabido. A resposta que Jó obtém de Javé é uma espécie de "recolha-se à sua insignificância". O Deus desfia um longo rosário de comparações entre si e um simples homem, que vão desde explicitações de força até questões epistemológicas (sempre gostei da figura do behemot, acho curiosa a estupefação diante de um hipopótamo). O homem não tem condições de construir a natureza, assim como não possui clarividência para deter o conhecimento de tudo o que acontece no universo, e as enumerações de Javé colocam Jó, e por extensão todo ser humano, em sua posição de subalterno. No final das contas, não há uma resposta para a questão do mal sofrido pelo justo, mas uma conformação ao mistério incognoscível pela limitada compreensão humana. Jó nem fica sabendo do desafio de Satã, nem que o próprio Javé permitiu seu sofrimento, e isso vai na conta de Leibniz: o entendimento não se faz senão aos poucos, na medida em que nos é dado transformar a fé em razão.

E quanto a mim, o que eu penso? Uma parte importante da Filosofia não está em encontrar as respostas, mas também em fazer as perguntas, e nisso o livro de Jó é muito bom. Algumas delas são permanentes e dificilmente encontrarão respostas definitivas, e a questão do sofrimento é uma delas, especialmente quando se quer dar um sentido subjacente à existência. O drama humano de Jó ganha dimensões universais não porque haja consenso com o pano de fundo abraâmico. Para o niilista, que não vê sentido na vida, o sofrimento não é um problema, apenas uma inerência. Para ateus, não há sentido em se pensar em mistérios divinos, e para religiões onde a existência do mal faz parte da natureza humana, o problema já está resolvido. O mal existe, faz parte de nossas vidas e devemos aprender a lidar com ele, como dizem Umbanda, Taoísmo, Budismo, entre outras. Mas o certo é que o sofrimento faz parte do universo e que nos sentimos menores diante dele, porque demonstra nossos próprios limites e nosso controle ineficaz diante das contingências. O silêncio de Javé diante do clamor do sofredor é uma metáfora bem encaixada diante da incerteza que é posta quando estamos na situação dolorosa. É muito raro os momentos destes em que não nos perguntemos "por que comigo?". Neste sentido, Jó se desvincula da Teologia e nos coloca com toda a nossa fraqueza diante da imensidão universal, incapazes de compreender como as confluências dos fenômenos nos empurram para o abismo.

Bons ventos a todos!

Recomendações de leitura:

Além da natural recomendação do livro de Jó, que pode ser encontrado em qualquer Bíblia, farei remissão aos outros dois pensadores que tratei neste texto. O primeiro é santo Agostinho, habitué deste espaço…

SANTO AGOSTINHO. A Natureza do Bem. Rio de Janeiro: Sétimo Selo, 2006.

… e o outro é Leibniz, um pensador que vai além da filosofia, abrangendo ainda em.sua obra ciências e matemática:

LEIBNIZ, Gottlieb. Ensaios de Teodiceia. São Paulo: Estação Liberdade, 2013.

 

* Meio que do nada, no meio do debate, surge um quarto debatedor (Eliú), que depois some do jeito que apareceu.

**Para quem não sabe, este é um órgão interno das empresas que possuem uma determinada quantidade de funcionários. É composta por empregados e membros nomeados pelo corpo diretivo, e seu propósito é levar reivindicações sob o prisma da segurança de trabalho aos gerentes da empresa. CIPA quer dizer Comissão Interna de Prevenção de Acidentes.

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