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terça-feira, 23 de março de 2021

O café filosófico do quotidiano – quando a verdade não é um mero substantivo

Olá!

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Têm vezes em que o tempo pede um pouco mais de calor. Nesta inconstante cidade onde Ricardo Soares diz não chover mais poesia, a temperatura varia da mesma forma que os humores. Eis que nestes dias, onde mesmo o verão amanhece frio, é melhor optar por métodos que garantam um café mais quente. Sendo assim, vou à prateleira superior e pego minha cafeteira italiana, também conhecida pelo simpático nome de Moka.

Simpático porque lembra a Mooca? Claro que sim. Mas é preciso deixar claro que uma é palavra de origem árabe, e a outra é indígena. Uma faz referência ao porto iemenita de onde saía a maior parte da produção cafeeira do século XV, e a outra à construção de casas aproveitando a argila do rio Tamanduateí, segundo se diz. Explicações à parte, o aparelho oportuniza um café saindo muito quente, porque ele não precisa passar por um coador externo, nem pousar por algum tempo para infundir. É do fogo para a xícara. O café passa por um processo de expansão ao ser banhado pela água fervente de uma câmara onde se forma vapor.

De lá, sobe por uma coluna até ser despejado no recipiente de cima, onde fica até terminar o processo, tudo isso sem apagar o fogo em nenhum momento.

Há uma boa quota de ritual nesse processo, embora haja junto dele uma aura de modernidade. Isso porque o encaixe a rosca e seu material metalizado contrasta um pouco com o jeitão campestre que um café costuma ter.

Nome do utensílio: Cafeteira italiana (moka)

Tipo de técnica: pressurização

Dificuldade: Baixa

Espessura do pó: Médio

Dinâmica: o café é colocado (sem apertar) em um porta-pó em forma de funil no interior de uma câmara de vaporização. Ao atingir a fervura, o vapor pressiona a água a subir pela cânula do funil, onde o pó é atingido. Sua expansão natural faz com que a pressão aumente ainda mais, melhorando a qualidade da extração. Retido por um filtro metálico, o pó fica acumulado na campânula do funil, enquanto o líquido sobe para o recipiente superior do conjunto, de onde poderá ser servido.

Resíduos: baixo-médio.

Temperatura de saída: muito alta

Nível de ritual: médio-alto

O processo todo tem uma cara de mágica, embora seja tudo pura física, e isso dá a tal cara de ritual. A água que se insurge contra a temperatura à qual é submetida, seu irromper como se fosse uma erupção vulcânica, até mesmo a água preexiste no recipiente superior que evita o gosto de queimado, tudo isso dá ar místico ao processo, o que dá um pouco mais de expectativa ao resultado final. Ainda coloquei um pouco de água quente nas xícaras para dar uma temperada e fui levar para a consorte, como faço de hábito.

Tolo dos tolos... Distraído no papo com a patroa, virei o café na boca como se não houvesse amanhã, e levei uma bela sapecada na língua, não conjuminando que a moka faz um café mais quente que outros métodos.

Fui colocar água fria na boca, até parar de arder, e, a partir de então, fui bebericando o que restava de golinho em golinho, com o prazer cortado pela metade, pela perda momentânea da capacidade gustativa. Toda magia foi para o vinagre: a insurgência da água, a erupção vulcânica, a salvação do sabor, tudo apagado na forma de uma bolha na língua. Aquietei-me no ardor e comecei a refletir: como as coisas enganam a gente fácil, fácil. Um segundo de descuido é o suficiente para que a vida gire no sentido oposto, e a tostada na língua é uma metáfora disso. A transitoriedade é uma verdade incontestável. Verdade?

Já falei sobre a verdade mais de uma vez neste espaço, vez que ela é das principais matérias-primas da filosofia, e, se você for bem atento, perceberá que existem diferentes linhas de pensamento sobre a questão. Quando isso acontece, bem, podemos dizer que não chegamos a conclusão alguma. Vou dar uma rápida pincelada nas quatro correntes mais usuais, para logo em seguida dar outro rumo a esta prosa.

Vamos lá. A verdade pode ser correspondência. Se eu digo que a camisa do Juventus é grená, você vai à loja da Javari e confere: é grená de fato. Se não for, ou não temos verdade, ou há uma explicação mais sofisticada, uma correção da tese (segunda camisa, edição comemorativa).

Ela também pode ser coerência. Como exemplo, menciono o golaço do Pelé feito ali mesmo, no velho campo do Cotonifício Crespi. É um gol feito com quatro chapéus, sem que a bola pingasse no chão uma única vez. Não há nenhuma prova concreta da feitura da obra de arte, somente os testemunhos, que sabemos ser a mais frágil de todas as provas, as evidências anedóticas. Mas os elementos da descrição são plenamente coerentes: o gol incrível foi feito por um dos atletas mais hábeis de todos os tempos, contra um time que, mesmo sendo muito querido, nunca foi uma potência inconteste, e os depoimentos são todos coincidentes. Toda essa coerência dá estatuto de verdade à palavra dada. 

A verdade ainda pode ser consenso. Diante de uma multiplicidade de opções, a mais verdadeira é aquela que atinge uma melhor concordância entre aqueles que têm algo a dizer sobre o assunto. Na rua Javari, por exemplo, há uma estátua do zagueiro Clóvis Nori, considerado o maior ídolo da história juventina. Poderia ser o goleiro Mão de Onça, os irmãos Brida e Brecha ou o folclórico atacante Ataliba, mas é consenso que o melhor representante do espírito alvigrená é o esguio e estiloso beque, e isso dá estatuto de verdade ao que está na concordância geral.

Por fim, a verdade pode ser utilidade. Alguém poderia afirmar que o Juventus é o melhor time do mundo enquanto não entra em campo. Quando isso acontece, há uma conjunção de fatores que o impede de exercer sua excelência. Para o pragmático, o que isso importa? Vale o que é percebido na realidade e ponto final, um time da segunda divisão de um campeonato regional. Aqui, verdadeiro é aquilo que tem utilidade prática.

Mas vejam bem. Tudo isso que eu falei até agora é da ordem do discurso. Se você foi até a lojinha do Juventus para conferir a cor do fardamento, é porque alguém afirmou isso, ou, no mínimo, porque uma ideia toda composta de signos e linguagem se formou em sua cabeça. Se julgamos coerente a história do golaço do Pelé, é porque ela foi contada por alguém e achada conforme. Se temos consenso com a idolatria de Clóvis, é porque a narrativa de seu heroísmo é concorde no meio. O pragmatismo escapa um pouco da lógica metafísica da verdade, mas ainda assim não se desfaz do tacão da palavra. Será que a verdade é inerente às próprias coisas e fatos ou é só um elemento narrativo, uma característica linguística? Para isso, vou deixar o futebol de lado e partir para mais uma passagem da minha vida. Dá-lhe autobiografia.

A história toda é a seguinte: Morávamos em nove pessoas no mesmo quintal, cada célula familiar em seu compartimento, mas era como se fosse tudo fosse uma casa só, já que as portas estavam sempre abertas e licenciadas mutuamente. Na ocasião do fato, eu devia ter uns sete ou oito anos, mas era o mais emérito capeta de toda casa, com vantagem muito larga para todos os demais habitantes, cachorro e gato inclusos.

A cena do crime não era de maior complexidade. Em um banheiro que servia a duas das casas, foi encontrado, dentro de um lixinho, um grande amarfanhado de papel higiênico repleto de sangue. Minha madrinha viu aquilo e ficou desesperada, achando que alguém tinha se machucado feio, mas não quis contar para ninguém. Começou a pesquisa no seu próprio pedaço, pela veteraníssima tia Antônia e meus dois primos. Meu padrinho, no entanto, estranhou um sangue tão vivaz em tempo que já deveria ter escurecido. Aproximou seu nariz dos papeis e decretou: não é sangue, é Colubiazol©. Esse medicamento era um spray para garganta, de uma tintura vermelha muito viva, realmente semelhante a sangue, e que eu adorava, principalmente para fazer-de-conta de vampiro. A constatação tirou a dúvida de todo mundo – foi o Decinho. Ele deve ter pegado o remédio para brincar, derramou um bom tanto no chão e tentou fazer um montoeiro de papel para ocultar a arte. Só que não foi, e a acusação me causou uma revolta incomum. Quando me imputavam uma atentação qualquer, eu geralmente fazia uma cara confirmatória que tornava meu dolo inequívoco, mas, pela primeira vez, a culpa de fato não era minha, tanto que a história ficou presa na minha memória para sempre. De nada adiantaram meus protestos. A coça e a carraspana vieram como sempre. E nunca se descobriu quem foi o autor da obra.

Vejamos. Há correspondência: um monte de papel sujo em um lixo de privada e o esvaziamento do frasco. Há coerência: uma arte aprontada por uma criança fazendo uso indevido de um medicamento, tentando ocultar as consequências inesperadas. Há consenso: todos da casa sabiam que o mais capaz da presepada era eu e estavam assentes com relação à autoria, menos eu mesmo, é óbvio, e o dono real da ursada, que se manteve bem quietinho. E, por fim, há sempre a utilidade de se descobrir um culpado e gestaltianamente dar desfecho a uma narrativa. A cada ponto de todo o conjunto, havia uma modalidade da verdade para dar guarida à conclusão. Isso tudo foi alguma garantia da verdade? Parece que não.

Mas há algo que vai além da estrutura discursiva destas propostas da verdade, que é uma espécie de instância metafísica. É como se tudo no universo carregasse em sua essência uma propriedade de ser verdadeiro ou não, assim como ser existente, ou ser imaginário. Neste escopo, a tela de computador que vejo em minha frente é verdadeira porque eu a percebo, e que os led’s que acendem, apagam e variam na cor são verdadeiros porque a Ciência os explica como tal, ou como se houvesse uma “alma” que identificasse as coisas como são de fato. Mesmo a verdade pragmática tem essa característica, já que a verdade como utilidade é tão inerente quanto nas três outras teorias.

Mas há teóricos que colocam a verdade no campo semântico, retirando toda espécie de metafísica da verdade. São os chamados deflacionários. A verdade, para o deflacionista, é um fenômeno de linguagem.

Como funciona isso? E o que é essa tal de deflação? Bem, estes filósofos entendem que a questão da verdade nada mais é do que a concessão de uma substância à realidade que nos cerca que, no final, não existe. Não faz parte da essência de nada ser verdadeiro ou falso, e entender o contrário simplesmente significa dar uma importância maior do que merece à questão, por isso ela fica “inflacionada”, ganha uma importância que não tem. Deflacionista é, portanto, alguém que minimaliza a visão sobre a verdade como parte da substância de um objeto. Ele murcha a verdade como se fosse uma bexiga.

Mas o que é a verdade para o deflacionista? Vamos pegar um dos mais originais pensadores do tema, o matemático Frank Ramsey. Para ele, afirmar que algo é verdadeiro ou falso é uma mera redundância, daí sua tese ser chamada de teoria da redundância da verdade. Segundo ele, há fatores mentais que tornam necessária uma adequação entre o que é o fato em si e a maneira como o observamos. Por isso, afirmamos coisas do tipo: “É verdade que a camisa do Juventus é grená”. Entretanto, não há diferença alguma em afirmar isso ou que “a camisa do Juventus é grená”, sem nenhum tipo de qualificador. Se ele não for, basta dizer “a camisa do Juventus não é grená” e pronto. Não há nenhum ganho lógico em se acrescentar um designativo de verdade ou falsidade à afirmação original.

E por que raios fazemos isso? Porque temos a necessidade de dar ênfases na linguagem. Fazemos isso o tempo todo. Quando dizemos “o Decinho é que derramou o remédio”, podemos notar que o termo sublinhado é meramente enfático, sem nenhuma outra função linguística que melhorar a comunicação da frase. Isso é super válido no coloquial, quando precisamos do colorido dos recursos discursivos para dar mais clareza no que queremos dizer, e quando afirmamos que algum objeto ou fato são verdadeiros, fazemos a mesma coisa. Temos habitualidades psicológicas que nos impelem a afirmar que algo é ou não verdadeiro, como uma espécie de certificado linguístico. É mais fácil de se crer em uma frase que diga que “é verdade que a camisa do Juventus é grená” do que simplesmente afirmar que “a camisa do Juventus é grená”, mas não há diferença lógica alguma entre ambas as frases.

E isso pode crescer. Há uma espécie de escala em que as afirmações da verdade crescem, sem que, no entanto, seu valor lógico se altere em nada. O conjunto de frases abaixo demonstra essa escala ascendente, sendo que todas tem exatamente o mesmo valor lógico:

  1. A camisa do Juventus é grená
  2. É verdade que a camisa do Juventus é grená
  3. Não existe como contestar que a camisa do Juventus é grená
  4. Não há dúvidas e todos no mundo inteiro deveriam concordar que a camisa do Juventus é grená.

Em resumo, a afirmação de verdade ou falsidade não são propriedades inerentes aos objetos, não são coisas que podem ganhar valor de substantivos, nem são qualidades que possam ter valor adjetivo. Isso significa que os deflacionistas acham a verdade impossível? Não, apenas que não há instâncias metafísicas por trás da realidade das coisas.

Vou parar por aqui, porque senão vai ficar maçante. Há outros filósofos deflacionários, e talvez eu os aborde em momento adequado. Mas é um bom exemplo para demonstrar como a questão da verdade não é pacífica, como gostaria que fosse aquele Decinho do passado, que levou rebordosas mesmo nas poucas vezes em que ele tinha razão. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Não é muito fácil de achar textos de Ramsey em português, mas consegui achar um na revista abaixo:

RAMSEY, Frank. MOORE, George Edward. Simpósio: Fatos e Proposições. In: Revista Philósophos. Goiânia, v. 24, n. 1, p. 349-372, Jun. 2019.

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