Olá!
Têm vezes em que o tempo pede um pouco mais de calor. Nesta
inconstante cidade onde Ricardo Soares diz não chover mais poesia, a
temperatura varia da mesma forma que os humores. Eis que nestes dias, onde mesmo
o verão amanhece frio, é melhor optar por métodos que garantam um café mais
quente. Sendo assim, vou à prateleira superior e pego minha cafeteira italiana,
também conhecida pelo simpático nome de Moka.
Simpático porque lembra a Mooca? Claro que sim. Mas é preciso deixar claro que uma é palavra de origem árabe, e a outra é indígena. Uma faz referência ao porto iemenita de onde saía a maior parte da produção cafeeira do século XV, e a outra à construção de casas aproveitando a argila do rio Tamanduateí, segundo se diz. Explicações à parte, o aparelho oportuniza um café saindo muito quente, porque ele não precisa passar por um coador externo, nem pousar por algum tempo para infundir. É do fogo para a xícara. O café passa por um processo de expansão ao ser banhado pela água fervente de uma câmara onde se forma vapor.
De lá, sobe por uma coluna até ser despejado no recipiente de cima, onde fica até terminar o processo, tudo isso sem apagar o fogo em nenhum momento.
Há uma boa quota de ritual nesse processo, embora haja junto dele uma aura de modernidade. Isso porque o encaixe a rosca e seu material metalizado contrasta um pouco com o jeitão campestre que um café costuma ter.
Nome do utensílio: Cafeteira italiana (moka)
Tipo de técnica: pressurização
Dificuldade: Baixa
Espessura do pó: Médio
Dinâmica: o café é
colocado (sem apertar) em um porta-pó em forma de funil no interior de uma
câmara de vaporização. Ao atingir a fervura, o vapor pressiona a água a subir
pela cânula do funil, onde o pó é atingido. Sua expansão natural faz com que a
pressão aumente ainda mais, melhorando a qualidade da extração. Retido por um
filtro metálico, o pó fica acumulado na campânula do funil, enquanto o líquido
sobe para o recipiente superior do conjunto, de onde poderá ser servido.
Resíduos: baixo-médio.
Temperatura de saída: muito alta
Nível de ritual: médio-alto
O processo todo tem uma cara de mágica, embora seja tudo
pura física, e isso dá a tal cara de ritual. A água que se insurge contra a
temperatura à qual é submetida, seu irromper como se fosse uma erupção
vulcânica, até mesmo a água preexiste no recipiente superior que evita o gosto
de queimado, tudo isso dá ar místico ao processo, o que dá um pouco mais de
expectativa ao resultado final. Ainda coloquei um pouco de água quente nas
xícaras para dar uma temperada e fui levar para a consorte, como faço de
hábito.
Tolo dos tolos... Distraído no papo com a patroa, virei o
café na boca como se não houvesse amanhã, e levei uma bela sapecada na língua,
não conjuminando que a moka faz um café mais quente que outros métodos.
Fui colocar água fria na boca, até parar de arder, e, a
partir de então, fui bebericando o que restava de golinho em golinho, com o
prazer cortado pela metade, pela perda momentânea da capacidade gustativa. Toda
magia foi para o vinagre: a insurgência da água, a erupção vulcânica, a
salvação do sabor, tudo apagado na forma de uma bolha na língua. Aquietei-me no
ardor e comecei a refletir: como as coisas enganam a gente fácil, fácil. Um
segundo de descuido é o suficiente para que a vida gire no sentido oposto, e a
tostada na língua é uma metáfora disso. A transitoriedade é uma verdade
incontestável. Verdade?
Já falei sobre a verdade mais de uma vez neste espaço, vez
que ela é das principais matérias-primas da filosofia, e, se você for bem
atento, perceberá que existem diferentes linhas de pensamento sobre a questão.
Quando isso acontece, bem, podemos dizer que não chegamos a conclusão alguma.
Vou dar uma rápida pincelada nas quatro correntes mais usuais, para logo em
seguida dar outro rumo a esta prosa.
Vamos lá. A verdade pode ser correspondência. Se eu digo que
a camisa do Juventus é grená, você vai à loja da Javari e confere: é grená de
fato. Se não for, ou não temos verdade, ou há uma explicação mais sofisticada,
uma correção da tese (segunda camisa, edição comemorativa).
Ela também pode ser coerência. Como exemplo, menciono o
golaço do Pelé feito ali mesmo, no velho campo do Cotonifício Crespi. É um gol
feito com quatro chapéus, sem que a bola pingasse no chão uma única vez. Não há
nenhuma prova concreta da feitura da obra de arte, somente os testemunhos, que
sabemos ser a mais frágil de todas as provas, as evidências
anedóticas. Mas os elementos da descrição são plenamente coerentes: o gol
incrível foi feito por um dos atletas mais hábeis de todos os tempos, contra um
time que, mesmo sendo muito querido, nunca foi uma potência inconteste, e os
depoimentos são todos coincidentes. Toda essa coerência dá estatuto de verdade
à palavra dada.
A verdade ainda pode ser consenso. Diante de uma
multiplicidade de opções, a mais verdadeira é aquela que atinge uma melhor
concordância entre aqueles que têm algo a dizer sobre o assunto. Na rua Javari,
por exemplo, há uma estátua do zagueiro Clóvis Nori, considerado o maior ídolo
da história juventina. Poderia ser o goleiro Mão de Onça, os irmãos Brida e Brecha
ou o folclórico atacante Ataliba, mas é consenso que o melhor representante do
espírito alvigrená é o esguio e estiloso beque, e isso dá estatuto de verdade
ao que está na concordância geral.
Por fim, a verdade pode ser utilidade. Alguém poderia
afirmar que o Juventus é o melhor time do mundo enquanto não entra em campo.
Quando isso acontece, há uma conjunção de fatores que o impede de exercer sua
excelência. Para o pragmático, o que isso importa? Vale o que é percebido na
realidade e ponto final, um time da segunda divisão de um campeonato regional.
Aqui, verdadeiro é aquilo que tem utilidade prática.
Mas vejam bem. Tudo isso que eu falei até agora é da ordem
do discurso. Se você foi até a lojinha do Juventus para conferir a cor do
fardamento, é porque alguém afirmou isso, ou, no mínimo, porque uma ideia toda
composta de signos e linguagem se formou em sua cabeça. Se julgamos coerente a
história do golaço do Pelé, é porque ela foi contada por alguém e achada
conforme. Se temos consenso com a idolatria de Clóvis, é porque a narrativa de
seu heroísmo é concorde no meio. O pragmatismo escapa um pouco da lógica
metafísica da verdade, mas ainda assim não se desfaz do tacão da palavra. Será
que a verdade é inerente às próprias coisas e fatos ou é só um elemento
narrativo, uma característica linguística? Para isso, vou deixar o futebol de
lado e partir para mais uma passagem da minha vida. Dá-lhe autobiografia.
A história toda é a seguinte: Morávamos em nove pessoas no
mesmo quintal, cada célula familiar em seu compartimento, mas era como se fosse
tudo fosse uma casa só, já que as portas estavam sempre abertas e licenciadas
mutuamente. Na ocasião do fato, eu devia ter uns sete ou oito anos, mas era o
mais emérito capeta de toda casa, com vantagem muito larga para todos os demais
habitantes, cachorro e gato inclusos.
A cena do crime não era de maior complexidade. Em um
banheiro que servia a duas das casas, foi encontrado, dentro de um lixinho, um
grande amarfanhado de papel higiênico repleto de sangue. Minha madrinha viu
aquilo e ficou desesperada, achando que alguém tinha se machucado feio, mas não
quis contar para ninguém. Começou a pesquisa no seu próprio pedaço, pela
veteraníssima tia Antônia e meus dois primos. Meu padrinho, no entanto,
estranhou um sangue tão vivaz em tempo que já deveria ter escurecido. Aproximou
seu nariz dos papeis e decretou: não é sangue, é Colubiazol©. Esse medicamento
era um spray para garganta, de uma tintura vermelha muito viva, realmente
semelhante a sangue, e que eu adorava, principalmente para fazer-de-conta de
vampiro. A constatação tirou a dúvida de todo mundo – foi o Decinho. Ele deve
ter pegado o remédio para brincar, derramou um bom tanto no chão e tentou fazer
um montoeiro de papel para ocultar a arte. Só que não foi, e a acusação me
causou uma revolta incomum. Quando me imputavam uma atentação qualquer, eu
geralmente fazia uma cara confirmatória que tornava meu dolo inequívoco, mas,
pela primeira vez, a culpa de fato não era minha, tanto que a história ficou
presa na minha memória para sempre. De nada adiantaram meus protestos. A coça e
a carraspana vieram como sempre. E nunca se descobriu quem foi o autor da obra.
Vejamos. Há correspondência: um monte de papel sujo em um
lixo de privada e o esvaziamento do frasco. Há coerência: uma arte aprontada
por uma criança fazendo uso indevido de um medicamento, tentando ocultar as
consequências inesperadas. Há consenso: todos da casa sabiam que o mais capaz
da presepada era eu e estavam assentes com relação à autoria, menos eu mesmo, é
óbvio, e o dono real da ursada, que se manteve bem quietinho. E, por fim, há
sempre a utilidade de se descobrir um culpado e gestaltianamente
dar desfecho a uma narrativa. A cada ponto de todo o conjunto, havia uma
modalidade da verdade para dar guarida à conclusão. Isso tudo foi alguma garantia
da verdade? Parece que não.
Mas há algo que vai além da estrutura discursiva destas
propostas da verdade, que é uma espécie de instância metafísica. É como se tudo
no universo carregasse em sua essência uma propriedade de ser verdadeiro ou
não, assim como ser existente, ou ser imaginário. Neste escopo, a tela de
computador que vejo em minha frente é verdadeira porque eu a percebo, e que os
led’s que acendem, apagam e variam na cor são verdadeiros porque a Ciência os
explica como tal, ou como se houvesse uma “alma” que identificasse as coisas
como são de fato. Mesmo a verdade pragmática tem essa característica, já que a
verdade como utilidade é tão inerente quanto nas três outras teorias.
Mas há teóricos que colocam a verdade no campo semântico,
retirando toda espécie de metafísica da verdade. São os chamados deflacionários. A verdade, para o
deflacionista, é um fenômeno de linguagem.
Como funciona isso? E o que é essa tal de deflação? Bem,
estes filósofos entendem que a questão da verdade nada mais é do que a
concessão de uma substância à realidade que nos cerca que, no final, não
existe. Não faz parte da essência de nada ser verdadeiro ou falso, e entender o
contrário simplesmente significa dar uma importância maior do que merece à
questão, por isso ela fica “inflacionada”, ganha uma importância que não tem.
Deflacionista é, portanto, alguém que minimaliza a visão sobre a verdade como
parte da substância de um objeto. Ele murcha a verdade como se fosse uma
bexiga.
Mas o que é a verdade para o deflacionista? Vamos pegar um
dos mais originais pensadores do tema, o matemático Frank Ramsey. Para ele,
afirmar que algo é verdadeiro ou falso é uma mera redundância, daí sua tese ser
chamada de teoria da redundância da
verdade. Segundo ele, há fatores mentais que tornam necessária uma
adequação entre o que é o fato em si e a maneira como o observamos. Por isso,
afirmamos coisas do tipo: “É verdade que a camisa do Juventus é grená”.
Entretanto, não há diferença alguma em afirmar isso ou que “a camisa do
Juventus é grená”, sem nenhum tipo de qualificador. Se ele não for, basta dizer
“a camisa do Juventus não é grená” e pronto. Não há nenhum ganho lógico em se
acrescentar um designativo de verdade ou falsidade à afirmação original.
E por que raios fazemos isso? Porque temos a necessidade de
dar ênfases na linguagem. Fazemos isso o tempo todo. Quando dizemos “o Decinho é que derramou o remédio”,
podemos notar que o termo sublinhado é meramente enfático, sem nenhuma outra
função linguística que melhorar a comunicação da frase. Isso é super válido no
coloquial, quando precisamos do colorido dos recursos discursivos para dar mais
clareza no que queremos dizer, e quando afirmamos que algum objeto ou fato são
verdadeiros, fazemos a mesma coisa. Temos habitualidades psicológicas que nos
impelem a afirmar que algo é ou não verdadeiro, como uma espécie de certificado
linguístico. É mais fácil de se crer em uma frase que diga que “é verdade que a
camisa do Juventus é grená” do que simplesmente afirmar que “a camisa do
Juventus é grená”, mas não há diferença lógica alguma entre ambas as frases.
E isso pode crescer. Há uma espécie de escala em que as
afirmações da verdade crescem, sem que, no entanto, seu valor lógico se altere
em nada. O conjunto de frases abaixo demonstra essa escala ascendente, sendo
que todas tem exatamente o mesmo valor lógico:
- A camisa do Juventus é grená
- É verdade que a camisa do Juventus é grená
- Não existe como contestar que a camisa do Juventus é grená
- Não há dúvidas e todos no mundo inteiro deveriam concordar que a camisa do Juventus é grená.
Em resumo, a afirmação de verdade ou falsidade não são
propriedades inerentes aos objetos, não são coisas
que podem ganhar valor de substantivos, nem são qualidades que possam ter valor
adjetivo. Isso significa que os deflacionistas acham a verdade impossível? Não,
apenas que não há instâncias metafísicas por trás da realidade das coisas.
Vou parar por aqui, porque senão vai ficar maçante. Há
outros filósofos deflacionários, e talvez eu os aborde em momento adequado. Mas
é um bom exemplo para demonstrar como a questão da verdade não é pacífica, como
gostaria que fosse aquele Decinho do passado, que levou rebordosas mesmo nas
poucas vezes em que ele tinha razão. Bons ventos a todos!
Recomendação de leitura:
Não é muito fácil de achar textos de Ramsey em português,
mas consegui achar um na revista abaixo:
RAMSEY, Frank. MOORE, George Edward. Simpósio: Fatos e Proposições. In: Revista Philósophos. Goiânia, v.
24, n. 1, p. 349-372, Jun.
2019.
Nenhum comentário:
Postar um comentário