Marcadores

quinta-feira, 14 de outubro de 2021

Navegações de cabotagem - o Aeroporto Internacional de Guarulhos e a diferença metafísica entre medo e angústia

(Medo e angústia não são a mesma coisa, e não é gostoso sentir nenhum dos dois. Mas qual deles tem um sentido ontológico mais consistente?)

”Um homem verdadeiramente sábio não é aquele que persegue cegamente uma verdade... Um saber superior (e todo saber é superioridade) só é concedido àquele que experimentou o ímpeto alado do caminho para o Ser, que não estranhou o espanto do segundo caminho para o abismo do Nada, e que aceitou, como constante necessidade, o terceiro caminho, o da aparência” - Heidegger

Olá!

Clique aqui para ler mais textos sobre meus bate-e-volta

Eu sempre me coloquei em uma posição extremamente ambígua com relação a voar de avião. Por um lado, era um daqueles quase mitos inatingíveis, viajar de forma rápida e eficaz, sem os transtornos do asfalto e se aproximando da tecnologia de ponta. Por outro, um medo de altura que passa do irracional. Mas as voltas que a vida dá nos levam aos becos do destino, e decidi comprar um par de bilhetes para chegar rapidinho em Cascavel, que consome mais de 12 horas de viagem pelo chão, mas uma hora e meia singrando os ventos. Fi-lo com um bocado de antecedência para pegar preços melhores. E aí veio a pandemia… sempre ela. Precisei adiar a viagem, o que fiz para agorinha há pouco, na semana passada, já devidamente convertidos em jacarés, eu e a cara-metade. Só que, daí, o moleque já tinha se mandado da Metrópole do Mercosul para a Cidade Sorriso, mais conhecida como Curitiba, tudo no estado do Paraná. Isso me deu novas dores de cabeça, com o desajuste que ficou nos preços das passagens. Passons, isso são contingências da vida e vamos tocando do jeito que é possível. Acontece que eu não pude deixar de filosofar mesmo estando em um aeroporto, e eu queria dividir meus pensamentos com vocês.


Eu nunca tinha voado anteriormente, embora vontade não houvesse me faltado. Ainda tenho uma pontinha de memória de quando meu avô pegava a mim e levava na laje do aeroporto de Congonhas, para ver as aeronaves pousarem e decolarem. Parece um divertimento ingênuo, mas que era bastante comum nos idos dos 70. O tamanho dos aviões era totalmente discrepante daquele que víamos nos desenhos animados, tipo Esquadrilha Abutre. Isso tudo causava uma grande impressão, mas à pergunta “quando nós vamos pegar um avião?”, a resposta era aquela do operariado: não é para nós.

Entrada do terminal 2

E não era mesmo. Voar era coisa para quem tinha dinheiro, especialmente para viajar. Nosso espectro incluía ir para a Baixada Santista, para o interior paulista ou norte do Paraná, onde moravam os parentes, e isso era plenamente atingível por ônibus. Mesmo que pensássemos em ir para mais longe, a diferença de preços entre viação e aviação era absolutamente proibitiva. Desta forma, pegar um avião necessitava de condições especiais.

Ao fundo, a torre de controle

A mais provável era viajar a trabalho, já que eu comecei carreira nos escritórios da vida. Havia uma ocasião frequente: eu trabalhava em uma fábrica de máquinas, e o meio mais comum de se financiar um caro equipamento industrial era através do Finame*. Os recursos deste dispositivo eram gerenciados pelo BNDES, que ficava situado no Rio de Janeiro. O roteiro já era bem escrito. Não havendo e-mails, nem certificações digitais, o contrato era enviado de malote até a entidade bancária onde seria liberado o dinheiro, o que podia levar até dez dias. Para acelerar o processo, a gerência metia um contínuo na ponte aérea, para ir à Avenida República do Chile - RJ, pegar a papelada, voltar a Congonhas, chamar um táxi e desembocar na Cidade de Deus, bairro de Osasco onde se situava a sede do banco onde minha empregadora desembaraçava seus cobres. Nunca calhou de ser eu o escolhido, e, com isso, não foi por esse caminho minha oportunidade.

O movimento dos saguões, com uma galera de alguma seleção brasileira

O voo veio por conta das novas políticas das empresas aéreas, que diminuíram os luxos e os custos para poder oferecer viagens mais em conta. Não se trata ainda de artigo em conta, mas o abismo que existia entre um bilhete aéreo e uma passagem de busão não é mais tão descompassado, e acabei fazendo a compra que já descrevi anteriormente. Só não foi em Congonhas, foi em Cumbica.

As listas de partidas/chegadas

Conheci este distrito de Guarulhos ainda criança, por vias do mesmo avô do passeio no aeroporto, mas por um motivo muito mais infeliz. Ele já estava bastante adoecido do seu câncer na garganta, e como se recusava a realizar tratamentos, meus familiares tentaram aqueles velhos paliativos que não resolvem nada, a não ser ativar o efeito placebo. No caso, vínhamos à casa de uma acupunturista, uma moça japonesa bastante jovem, que sabia que não o curaria, mas ao menos tentava mitigar suas dores.

Os bilhetes de embarque

A área era composta por uma base aérea e por uma certa quantidade de casas térreas espalhadas pelo seu perímetro. Na maioria delas, havia protestos colados nas janelas pela construção do novo aeroporto, que viria a desafogar o velho aeródromo da capital, já rodeado de prédios e sem a menor possibilidade de expandir seu território. Não adiantou nada, como se pode ver.

O avião em que embarquei

O aeroporto de Cumbica é gi-gan-tes-co. É um sem-fim de pistas, contendo um sem-número de aviões, a ponto de necessitar de transporte interno através de ônibus para dar mais fluxo aos passageiros.

Uma pequena parte das pistas

Preocupava-me a minha proverbial paura diante da altura. Meu medo essencialmente não era de um acidente, mas do puro cagaço mesmo. Sei lá… palpitações, ânsia, um vergonhoso desfalecimento, essas coisas. Mas o fato é que tudo foi tranquilo, mesmo com o trechinho de turbulência que pegamos. A coisa parece tão irreal vendo aquelas casinhas que ficam cada vez menores que entendo haver uma mudança de parâmetro mental, e a sensação se torna muito diferente do que acontece na borda de uma laje.

É bem verdade que assistir vídeos do canal Aviões e Músicas, que mencionei neste texto, ajudaram-me a compreender melhor a dinâmica aeronáutica e me tranquilizar quanto a chacoalhos e cheiros, mas o fato é que o medo é desconfortável e incomoda um tanto. Mais que isso… acompanha-nos do raiar ao pôr do sol, metáforas do nascimento e da morte. Pensar nessas coisas dá uma certa crise existencialista, e quem juntou as duas coisas foi Martin Heidegger.

Heidegger é muito complicado, então eu vou tentar explicar beeeeeeem cuidadosamente o que ele quer dizer. Ele é cheio de termos próprios, o que às vezes mais confunde do que ajuda, mas vamos tentar compreendê-lo.

A pergunta sobre o Ser é muito antiga e difícil de definir, até mesmo pela pouca importância que damos a ela em nosso quotidiano. Entretanto, há momentos em que paramos para pensar e nos questionamos de certos porquês. Um dos possíveis é perguntar porque algo existe, e não o Nada, ou, em outras palavras, o que é esse algo que existe? Heidegger dizia muito sobre a dificuldade de se encontrar o Ser das coisas, e sobre isso eu já falei neste post. Mas o que é o Ser do próprio homem? Havia a mesma dificuldade ôntica/ontológica aqui também, porque conhecemos os entes, que são "aplicações práticas" do Ser, e não o Ser em si. Conhecemos cada homem pelo que ele é, e não pelo que ele tem de comum com o restante da humanidade. Pensemos assim: olhamos uma pessoa andando na rua e contemplamos a sua individualidade, e não a sua essência. Ela pode ser bonita, magra, puxar de uma perna, mascar chiclete e usar roupas descoladas, e é esse ente que enxergamos. Não vemos seu Ser.

As coisas pioram quando olhamos para as velhas explicações sobre a Metafísica. A essência do homem é colocada do lado de fora, como se pudesse se destacar do mesmo. Isso funciona muito bem quando pensamos nos dualismos, do tipo corpo-alma, corpo-mente, res cogitans-res extensa. Acontece que há um ponto fundamental que esses filósofos não levavam em consideração: nada disso tem nenhum valor se essa essência não é concretizada. Em outras palavras, a essência de um ser humano não é nada se ele não existir. A existência é a essência.

Tudo isso soa a Existencialismo, e, embora não fosse intenção direta de Heidegger, esse modelo de pensamento acabou mesmo dando origem ao movimento inaugurado, aí sim, por Sartre. A Metafísica do ser humano, pelo que nos diz Heidegger, vem de sua presença no mundo, de sua interação com as coisas e com os demais seres, e ele deu nome de Da-sein para esse fenômeno, ser-aí. Aí onde? No mundo, sempre em relação com um contexto e uma situação.

O homem não é mera presença, como qualquer outro objeto. Um abajur, uma caneca e mesmo um avião estão cagando se estão servindo ao seu propósito. Essas sim são simples presenças, mas o da-sein não é assim: é para ele que todas as demais coisas estão presentes.

É por isso que o da-sein aplica-se unicamente ao ser humano. Ele tem consciência de si e pergunta sobre si mesmo. Segundo Heidegger, o da-sein é o Ser que se pergunta sobre o Ser. Uma codorna não faz isso, porque se preocupa só com sua sobrevivência. Uma planta, nem isso. Um ser inanimado, menos ainda. Se há pergunta sobre o sentido da vida, essa só é feita pelo próprio homem.

O da-sein, é, portanto, uma concretização do Ser que se pergunta pelo Ser, o próprio homem, cuja principal característica é a sua existência no mundo. Sendo assim, o ser humano enquanto ente, ou seja, cada um de nós individualmente, é uma das infinitas possibilidades de existência. O homem é, portanto e fundantemente, escolha. Guardem bem essa informação.

Pois bem. Sendo o da-sein uma concreção, existente, palpável, não é possível que se pense nele isoladamente. O homem, quando nasce, vem a um ambiente por onde ele fará transcorrer sua existência, que, no caso, é o mundo. Isso tem um significado muito direto: nós nunca nos apartamos do mundo, estamos eternamente (enquanto dure) em uma situação, porque a história é escrita em situações e não vivemos fora da história, como se fôssemos almas eternas. Ela pode ser favorável ou não, agradável ou não, duradoura ou não, mas estamos sempre enfiados em alguma situação, ainda que não queiramos. E isso é eterno porque se trata de um continuum - quando termina uma situação, já começa outra. Isso tudo é óbvio, mas nos dá o corolário de que sempre teremos que nos colocar em relação, ora com o ambiente, ora com os outros homens, ora com ambos. O da-sein não é um ponto isolado, repito, mas um Ser que se relaciona. Portanto, ele também é um ser-no-mundo (in der welt sein) e um ser-com-os-outros (mit-sein), porque não existe um sujeito sem mundo e nem um sujeito único, solipsista, cujas sensações são a única realidade existente.

Temos, portanto, o ser humano se relacionando com o seu ambiente (ser-no-mundo), com os demais homens (ser-com-os-outros) e consigo mesmo (da-sein). Mas existe ainda uma outra dimensão que, no final das contas, vai contribuir com a autenticidade da existência que lhe é peculiar. Heidegger pensa que os homens são livres para fazer suas escolhas, e, por conta disso, se veem de frente a um mar de possibilidades. É evidente que a quantidade de escolhas que cada ser humano pode fazer possui limites, e, com isso, a existência nada mais é do que projeção. É muito fácil de pensar nisso quando imaginamos o que seria nossa carreira profissional, por exemplo. Se opto por lecionar Filosofia, atiro-me nos estudos das diferentes teorias e das técnicas didáticas, eventualmente acrescendo um perfil de pesquisa para enriquecer meus conhecimentos. Fazendo isso, dificilmente conseguirei concomitantemente virar piloto de aviação comercial. Entretanto, e esse é um grande problema para Heidegger, ainda que nossas possibilidades de escolha fossem ainda maiores, há uma projeção que quase ninguém faz e que é o máximo horizonte de todas as possibilidades de nossas escolhas, que é a morte. Para além dela, cessa tudo, incluindo nossa metafísica, ao contrário do que pensaria a filosofia e as religiões de até então. O dasein se complementa e se finda com o ser-para-a-morte.

É aqui que começamos a chegar onde eu queria. O ser-para-a-morte não é terceirizável: ninguém pode morrer pelos outros. Isso acontece porque o da-sein é vivido em cada uma das individualidades, e que não é experienciável, pelo simples fato de que, sendo a existência a verdadeira essência, seu término encerra o da-sein. No ser-aí, a morte finda o "aí", representativo do nosso ponto de relações, e se não as temos mais, nossa vida vai junto, perde seu objeto e encerra nossa existência e essência. Como nós não podemos experienciar a própria morte, tendemos a fazê-lo pela morte dos outros, que acaba por se banalizar e perder seu significado, tirando boa parte da importância e magnitude que tem o ser-para-a-morte, ou a noção de finitude, para todos nós. Mas ainda assim, sabendo-nos seres-para-a-morte, reconhecemos o horizonte final.

Temos aí a raiz do medo. O medo sempre é a reação a uma ameaça à nossa permanência. Ocorre que a morte é uma possibilidade como as outras, cuja diferença é ser própria, incondicionada e insuperável. Ela é própria porque somente o homem tem a perspectiva da morte, e todos os demais seres, apesar de conviverem com ela, não tem consciência disso, e que, mesmo ainda sendo existência, coloca o fim à existência. É incondicionada porque, como eu já disse, a morte pertence ao indivíduo e não pode ser vivida por procuração, devendo cada um viver sua própria experiência, e é insuperável porque ela põe fim ao da-sein. Vivemos para a morte, e isso consiste em nossa existência autêntica.

A diferença entre ter medo e ter angústia está justamente na aceitação da finitude. O próprio medo já é, antes do próprio fato, ter medo da angústia. A angústia é o prenúncio do aniquilamento, e não necessita de nenhum objeto. Por isso, quando temos medo de alguma coisa, temos medo extensivamente de encarar a angústia da morte. Só que é justo essa angústia que Heidegger diz ser o elemento de autenticidade da vida, porque a aceitação da finitude é indissociável da vida completa. A existência banal exclui o encarar da morte, que somente se dá pela angústia.

É por isso que ter medo de avião é uma bobagem. Diante de tantas as possibilidades na vida, uma delas embutirá necessariamente o ser-para-a-morte, e a angústia é válida como expectativa, e não como paralisação. Se o fim não chega pelo avião, chega pela doença, pelo assassinato, pela velhice... Sentir angústia pelo fim que se aproxima não é sinal de fraqueza, nem nada que exclua nossa normalidade, pelo simples fato de que ela não deslegitima a vida. Portanto, o medo é uma coisa feita para ser superada, especialmente aquele que é tão antirracional com relação a um uso tão seguro. Talvez de hoje em diante eu tenha medo só dos preços das passagens. Bons ventos a todos!!!

Recomendações:

Como eu já mencionei a principal obra de Heidegger por aqui, cito outro livro, um pouco mais amigável e que trata do mesmo tema:

HEIDEGGER, Martin. Introdução à Metafísica. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1999.


E, se você quiser viver a experiência com os seus filhos, há um bom terraço no Aeroporto para ver as naves comendo um bom saquinho de pipoca.

Aeroporto Internacional de Guarulhos
Rodovia Hélio Schmidt, sem nº
Cumbica
Guarulhos/SP


* Finame é uma sigla que significa algo com Financiamento de Máquinas e Equipamentos, um programa público federal que existe desde os anos 1960, para promover a aquisição de insumos fabris.

Nenhum comentário:

Postar um comentário