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terça-feira, 21 de setembro de 2021

Navegações de cabotagem – a barraca da Fátima de Redenção da Serra e as causas ocasionais como elo entre corpo e alma

(A ideia de divisão entre corpo e alma é velhíssima, mas como ambos podem se articular, se possuem naturezas tão distintas?)

Olá!

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Sempre temos um lugar onde nós gostamos de ir mais que em outros. Eu gosto muito do Vale do Paraíba, seja na parte da Mantiqueira, seja na banda da Serra do Mar. A coisa aumentou depois que a filha mais nova se mudou para Taubaté, no coração do Vale. Passo muitos dias fazendo pequenos reparos em sua casa, bem velhinha, e do jeito que eu gosto – bom mooquense. Mas a área do Vale é muito extensa e com muita coisa a se fazer, de modo que fica mais difícil estabelecer qual de todos é o local mais frequentado. Mas eu tenho esse lugar. Concluí que todas as vezes que pego a Oswaldo Cruz, não é numa cachoeira, num rio, numa represa, numa montanha, num mirante, numa igreja, numa trilha ou numa casa antiga que eu passo obrigatoriamente, mas em uma mercearia, uma vendinha de beira de estrada, que tem o nome oficial de Santa Terezinha, mas que já está consagrada em meu meio como Barraca da Fátima, que mencionei inclusive em uma das listas de 10 do meu post de comemoração de 10 anos. É sobre este lugar que eu quero falar e filosofar hoje.


Como se pode ver acima, é um dos típicos empórios de beira de estrada do interior deste país que o seo Cabral diz ter encontrado. Um pequeno cômodo com uma cozinha ao fundo, tudo isso à frente da casa da comerciante, que transforma seu lar em ganha-pão. Por lá, uma série de produtos vendidos a miúdo garantem o sustento para a família que se desdobra lá dentro.


Há algumas coisas compradas prontas de fora, para dar incremento às demandas, mas o principal está na manufatura e nos produtos típicos. Afinal, estamos em uma das regiões mais distintas em termos de folclore e cultura popular de todo o estado. Aqui, há requeijão de prato, taiada, cangalhinha, pão com linguiça caseira e tudo o que se pensar de milho e amendoim, muitas das quais feitas aqui mesmo, pelas mãos habilidosas da agora já amiga.


Como eu disse, muita coisa é existente na própria casa da Fátima, como é o caso dos pezinhos de Cambuci, provavelmente a fruta mais simbólica de toda a região. Ela vende as mudas que florescem em seu quintal e o fruto in natura, que pode ser extraído sem prejuízo nas matas e é azedo a vida inteira.

Por sua característica endêmica, é um dos produtos mais consumidos pelos turistas, que dificilmente conseguem encontrar o produto fresco para consumo imediato em outros lugares, principalmente na forma de refresco ou de batida.


Pessoalmente, seu produto mais imperdível, daqueles que a gente fia a palavra sem nenhum medo é a sua pamonha embrulhada na folha de caeté, uma planta da mesma família da bananeira, e que serve também para assar peixes, por exemplo. Dá um tempero único à massa de milho, e é de se desfiar um rosário completo enquanto se a come.


Eu tive um pequeno entrevero com a senhora minha sogra por causa dessa pamonha. Ela deu uma esnobada de leve no produto, dizendo que tinha muito bagaço. Eu retruquei elegantemente, dizendo que essa é a diferença fundamental entre pamonha e curau: pamonha tem bagaço, curau é que é coado. A pamonha que a senhora faz é curau na palha; um excelente curau, diga-se de passagem, mas curau, não pamonha. Ela ficou puta possessa possuída um pouco irritada e disse que eu, moleque da cidade, não sabia nada, nem de curau, nem de pamonha, mas eu não quis tergiversar, de auréola na cabeça; apenas fazer uma observação. Alheia a essas escaramuças, a patroa se diverte no consumo do acepipe.


Na Fátima também tem alguns gatilhos para reminiscências infantis. Doces que costumeiramente dividiam espaço com as baratas naqueles inseguríssimos armários de vidro, como a Maria Caxuxa, eram coisas que eu consumia a rebo enquanto meu pai molhava o bico. Abaixo, uma dessas com um potinho de geleia de Cambuci. Coisas que representam furos na minha dieta restritiva de sacarose.


A venda da Fátima fica não só na beira da estrada, mas também no pé do morro, e a natureza que lhe rodeia é exuberante, como a mata ciliar que guarnece o riachinho que ladeia a terra, todo fechado pela flora exuberante...

... e como as culturas plantadas, que lhe servem de fornecedoras das matérias primas para o comércio, como este pé de amendoim que fica quase que como um monumento.


De resto, algumas curiosidades sazonais, como essa planta chamada pelo insólito e sacana nome de “saco de velho”, que as crianças adoram estourar...


... ou esta planta que não sei o nome (descobri – chama-se “aranto”), mas que é repleta de brotos que parecem enxertos.


A Fátima é uma pessoa muito religiosa. Começando pelo nome de sua vendinha, dedicado à santa padroeira dos jardineiros e precursora do “Pequeno Caminho”, um meio de vida que privilegia a simplicidade para se chegar à santidade, em detrimento das histórias heroicas dos grandes santos e mártires. Tem seus nichos com seus santos de devoção, como Santo Expedito e São Miguel Arcanjo, além da própria Santa Terezinha, e é de participar das festas do Divino, hábito típico desta região. Está sempre dando graças e agradecendo por tudo, inclusive coisas extremamente prosaicas, como as nossas visitas. Pôs a difícil gravidez de sua filha sob a proteção de Nossa Senhora, e fica emocionada todas as vezes que fala disso.

Pode parecer um pouco estranho que alguém atribua a uma divindade tudo aquilo que lhe acontece de bom, porque dá um ar de subvalorização dos próprios méritos, mas essa é uma correlação que nem sempre é verdadeira. Talvez seja possível entender que a pessoa não se põe, ela mesma, em um pedestal, e reconhece suas próprias falhas e limitações. Por esse motivo, compreendo sua posição. A questão Deus é muito importante na vida das pessoas e já conduziu o pensamento da humanidade por muito tempo, e o faz ainda, em certa medida. Entretanto, existiu um momento na história da Filosofia em que houve uma transição da divindade como explicação de tudo para uma causação mais voltada à razão como fenômeno mental independente. Como todo bom e velho período transitivo, havia quem aderisse aos novos ventos e quem resistisse a eles, e havia ainda quem buscasse conciliar tradição e novidade. O francês Nicolas Malebranche é um desses, e vamos falar rapidamente sobre ele.

Na verdade, Malebranche foi o primeiro autor de quem fiz um trabalho mais sério na faculdade. O mestre de História da Filosofia Moderna pediu que escolhêssemos um filósofo do Racionalismo e o situássemos dentro do movimento. Eu, querendo parecer diferentão, fugi dos óbvios Descartes, Espinoza e Leibniz e fui me socorrer do padre que buscava uma alternativa às coisas que, em sua concepção, estavam mal explicadas nas teses gerais do movimento.

Malebranche era um grande admirador de Descartes. O sistema dualista cartesiano, em rápida sinopse, consistia no seguinte: a principal característica de um ser humano é sua substância mental. É por ela que nasce a prova mais substancial de existência, seu famoso cogito: eu penso, eu existo, porque mesmo que puser minha própria existência em dúvida, haverá aquele que duvida – ao menos o pensamento existe. É uma das mais célebres intuições filosóficas, e mesmo que o erro dos sentidos já preconizados desde os filósofos pré-socráticos fosse um fato, poderia haver uma escapatória consistente para a prevalência da razão. Só que é inegável que, por mais que a atividade racional seja possível e conduza ao conhecimento quando banhada pela evidência, as contingências do corpo efetivamente levam às incertezas. Vistas embaçam, ouvidos ensurdecem, narinas entopem. Por esta razão, Descartes separava de maneira bastante distinta estas duas instâncias do sujeito: a res cogitans, composta por todo o equipamento psíquico-cognitivo, e a res extensa, a coisa concreta que gira em torno do sujeito pensante, formada pelo seu próprio corpo, que é a sede dos sentidos. Dessa forma, a res cogitans interage com o cosmos ao seu redor através de sua própria porção de res extensa.

Mas havia uma dúvida que surgia já no nascedouro da noção de dualismo cartesiano. Se a res cogitans (mente) e a res extensa (corpo) são completamente distintos entre si, como se dava a interação entre ambos? Afinal de contas, a mente necessita da via de entrada dos sentidos para absorver informações do mundo, e o corpo precisa receber de alguma forma orientações sobre para onde dirigir sua intencionalidade, ou seja, para saber para onde olhar. Descartes dá uma solução surpreendentemente pobrezinha (nada é perfeito). Para ele, essa articulação se dava por ação da glândula pineal. Este pequeno órgão fica na porção central do cérebro, em uma posição que, simbolicamente, parece estratégica: exatamente entre os dois olhos, mas em posição mais profunda em relação ao rosto. Isso passava a impressão meio mediúnica de uma terceira visão. Essa glândula era conhecida pelas cada vez mais frequentes dissecações de cadáveres, mas ninguém sabia exatamente para que ela servia*. Pela posição privilegiada e incerteza quanto a sua função, Descartes a elegeu como esse ponto de convergência entre res cogitans e res extensa. É o que se chama de asylum ignorantiae, um confortável repouso para questões não resolvidas.

Malebranche se tornou um fãzaço de Descartes, especialmente porque o dualismo res extensa e res cogitans se acomodava perfeitamente à dicotomia cristã do corpo e alma. Mas a historinha da glândula pineal era um espinho na sua garganta, e ele sentiu a necessidade de desenvolver uma tese melhor. O roteiro não é tão curto, mas tentarei ser sintético.

Embora a igreja católica já vivesse os tempos da escolástica de São Tomás de Aquino, Malebranche volta a Santo Agostinho e sua interpretação do platonismo para constituir suas ideias. Já falei muito disso por aqui, mas vamos dar concisão: Platão entendia que existiam duas instâncias da realidade, sendo que uma continha todas as formas perfeitas, e que era acessível unicamente pelo intelecto, e outra que se tratava de reproduções imperfeitas, colocadas no nosso mundo igualmente imperfeito. Tudo o que existe na nossa percepção sensorial é uma cópia de algo que possui sua forma perfeita no universo intelectual. Dessa forma, todos os homens são cópias do homem perfeito existente no mundo das ideias, assim como o coelho perfeito, o cachorro perfeito, o vinho perfeito, e qualquer outra coisa que se colha da realidade. Vamos dar um exemplo. É possível que se pense no círculo perfeito, que é aquele em que não há nenhuma quina, que o grau de giro é sempre idêntico e que todos os seus diâmetros possam ser medidos de maneira exatamente igual, além daqueles coeficientes relacionados a pi (3,1416...) que não trataremos aqui. Vamos pensar em colocá-lo em prática, para ser transposto ao mundo dos sentidos, e começamos com um lápis e papel. À mão livre, o resultado é risível, todo torto e mais parecendo uma ameba qualquer. Lançamos mão de um pires, como fazem as crianças, e resultado melhora, mas não a ponto de plasmar a perfeição, já que as superfícies do artefato possuem rugosidades e defeitos. Passamos a pensar em um compasso… agora vai! Mas há outros problemas. O giro do instrumento tem diferenças de pressão e do balanço aplicado que fazem com que o risco contenha ainda problemas, ainda que mais próximos de um círculo sem defeitos. Partimos para a ignorância e vamos a um laboratório para traçar um círculo como jamais se viu, com o mais fino dos equipamentos. Ainda assim, quando chegarmos ao nível molecular, vamos notar que há imperfeições para brunir. Portanto, ainda que matematicamente seja possível chegar ao círculo perfeito, e a matemática é pura abstração mental, na prática não se consegue fazê-lo, e ele permanece habitando unicamente o mundo das ideias.

O que faz Santo Agostinho? Retoma essa dualidade, retirando de um mundo metafísico as ideias perfeitas e colocando-as na mente de Deus. Deste jeito, as formas perfeitas estão nos intelectos porque os mesmos partilham das ideias divinas. Portanto, tudo o que se pode ver e refletir tem como fiel depositário o intelecto divino, e, como o homem é imperfeito, o mesmo degenera, embora seja uma obrigação do homem de boa vontade buscar ao máximo se aproximar do conhecimento divino.

Sendo assim como falamos acima, o intelecto humano participa do intelecto divino, e é exatamente desta forma que Malebranche responde à aporia cartesiana da imbricação alma-corpo. Descartes imagina a glândula pineal como o eixo de articulação entre corpo e alma porque sente a necessidade de estabelecer um nexo causal entre um que comanda e o outro que age, mas Malebranche diz que essa relação de causa e efeito não faz sentido na absorção do conhecimento. Como as almas tem conexão direta e imediata com Deus, é daí que se dá o processo cognitivo. Quando uma pessoa faz a intuição de qualquer coisa, que nem sempre representa um contato (é possível pensar em uma estrela mesmo em pleno dia, ou em uma temperatura muito quente mesmo no mais denso inverno), a fonte da ideia que brota em sua alma vem do mundo das ideias divinas. Esse relacionamento de corpo e mente, tão caro a Descartes, é desnecessário em Malebranche. A alma é plenamente independente do corpo.

Ora, e como os corpos se movem? Por qual motivo obedecem aos impulsos dos pensamentos? Bem, embora Malebranche não fosse um adepto do aristotelismo, concordava que a realidade tinha causas eficientes. Para quem não lembra o que é isso, é uma das quatro causas, que nada mais são do que o fundamento da realidade. A causa eficiente é aquela que faz um fenômeno acontecer. Dessa forma, quando estou digitando estas mal escritas linhas, sou sua causa eficiente. A causa eficiente do gol é o centroavante, a causa eficiente da casa é o pedreiro, a causa eficiente da cinza é o fogo. Se todo acontecimento tem uma causa eficiente, também os movimentos e ações têm a sua. Se o que conhecemos vem da consciência de Deus, do mundo das ideias divinas, naturalmente a causa eficiente de cada coisa que sabemos é o próprio Deus. Como a interação entre corpo e alma é não eficiente, e como a ação humana é contingencial e finita, plasma a vontade necessária e infinita de Deus, e o que vemos transformado em ato é uma ocasião da manifestação dessa vontade. Cada ação humana vem de uma causa ocasional, ou seja, um momento em que há uma manifestação de Deus. Essa é a grande tese de Malebranche, à qual foi dado o nome de Ocasionalismo. Pensamentos vêm de Deus porque as mentes humanas são partícipes menores da mente divina, e ações também vêm de Deus porque são ocasiões para sua manifestação.

O que eu penso de tudo isso? Bem... Malebranche sem dúvida vai na contracorrente do seu momento histórico, em termos de Filosofia, e, embora não haja dúvidas que seu pensamento guarde interesse, ele tende a se tornar anacrônico mesmo em sua época. Embora ele rejeite a ideia da glândula pineal e ela seja mesmo mais um subterfúgio do que uma explicação com bons fundamentos, o fato é que a causa ocasional é igualmente pobre, e funciona mais na base do deus das lacunas ou do apelo à ignorância do que propriamente como um argumento mais consistente. É o famoso tipo de argumento que subentende uma fé para guarnecer seus fundamentos. De toda forma, é muito bem construído e vale a pena ser conhecido.

É isso. Quando vocês estiverem a caminho de Ubatuba, não deixem de dar uma passada no comecinho da vicinal de Redenção da Serra, para dar uma boa agasalhada no estômago e respirar um pouco de ar puro misturado com perfume de comida. É uma boa ocasião para notar que a vida pode ser boa. Bons ventos a todos!

Recomendações:

Em primeiro, a obra mais célebre de Malebranche, que sintetizou seu pensamento:

MALEBRANCHE, Nicolas. A Busca da Verdade. São Paulo: Discurso Editorial, 2019.

E depois, a costumeira indicação do lugar a quem me refiro nas navegações:

Mercearia Santa Terezinha (Barraca da Fátima)
Rodovia Major Gabriel Ortiz Monteiro (SP-121), Km 2
(Bem no encontro entre as cidades de Redenção da Serra e Taubaté)
Aproximadamente 150 Km a partir do centro de São Paulo.

*Mais tarde, descobriu se que a pineal é responsável pela liberação de melatonina, o hormônio de regulação das funções do sono.

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