Olá!
As coisas no mundo às vezes convergem sem que nos demos
conta. Alguns dão a isso o nome de destino; outros, de acaso. Não importa o que
seja. O fato é que venho me interessando com tópicos da Filosofia da Mente, o
que abarca, inevitavelmente, muitas discussões acerca de uma de suas
aplicações, a psicologia. Acabei chegando à leitura fria (que redundou no texto
deste link), e a principal interrogação que me veio foi a fragilidade
que temos para cair em engodos. Pois bem. Ao cabo daquele texto, propus-me a
detalhar um pouco melhor certos caminhos que levam a esses erros, sendo um
deles a questão dos laços de confiança que se estabelecem de maneira quase
instantânea, e que tem a capacidade de desviar a capacidade crítica de um
interlocutor incauto. A par disso, pus-me a fritar uns churros em casa para
alimentar minha galera, e a inevitável Renata me perguntou se eu conhecia um
tal de efeito Rapport, algo bastante
mencionado no serviço dela, e que seria relacionado à repetição de gestuais
para melhorar a interatividade (imaginei duas velhinhas discutindo o melhor
método de enrolar seus novelos de lã). Quase com vergonha, respondi que não,
deixando pendente alguma pesquisa a respeito para me inteirar melhor. Como
minha fila é grande e meu tempo é pouco, o assunto foi para a anotação de
prioridades, esperando sua vez chegar. Ao retomar o estudo sobre influências
interpessoais, com o que me deparo? Com o tal do Rapport! Ok, vamos a ele, passo a passo.
Um dos fenômenos mais intrigantes da natureza é o mimetismo.
Os mecanismos da seleção natural fazem com que, após anos e anos a fio, algumas
espécies se assemelhem tanto ao ambiente do qual fazem parte que acabam por se
tornar indistinguíveis, como se fossem uma coisa só. Se os predadores não
possuíssem suas estratégias de caça e captura, provavelmente morreriam de fome.
O mimetismo faz todo sentido biológico. Não fosse ele,
milhares e milhares de espécies teriam vida curta, com poucos recursos de
sobrevivência. Uma das grandes sacadas é que mimetizar demanda pouco consumo de
energia, diferentemente do que ocorre nas fugas, que requerem grande esforço
físico.
É claro que a sofisticação de um camaleão, que consegue alternar suas cores, ou a semelhança contundente que alguns insetos tem com flores e gravetos não são alcançadas no mesmo nível por todas as espécies. Mas é fácil compreender porque há tão poucos animais com cores berrantes onde o meio é monocromático – em uma savana, por exemplo, é vantajoso ter uma cor pardacenta ou em mesclas de marrom e preto, assim como os bichos de pelo branco costumam se dar muito bem nas regiões polares.
Mas não é só na imitação do ambiente que o mimetismo apresenta suas armas. Também existem vantagens em se imitar comportamentos. Vejam que certos animais apresentam engenhosidade em atos que visam obter alimentos, buscar abrigo, provocar acasalamento. Imitar aqueles que se saem bem é uma boa garantia de repetir o sucesso, além de constituir uma forte noção de grupo.
Nós, seres humanos, estamos hoje distantes da época em que necessitávamos utilizar estes dispositivos escancaradamente, mas o fato é que algum rabicho psicológico restou em nós. Notem como uma pessoa bocejando faz as outras bocejar; como alguém coçando induz comichão em todos ao redor, e como um contribuinte com tosse faz surgir um pequeno séquito de pigarrentos. Nada disso ocorre conscientemente. A boca que boceja está distante de ti, e só por sua percepção periférica, desligados todos os mecanismos atencionais, acionam seus alarmes miméticos. Portanto, em menor grau, somos praticantes da mimesis, como uma mariposa ou um peixe-pedra.
Mas é evidente que a coisa não é tão simples. A imitação se espraia para o interior mais profundo do nosso subconsciente. Ter similaridade no gestual, na postura, nas reações, nos rictos faciais, em tudo isso temos sinais de identificação – identificamo-nos como espécie. Daí, temos uma percepção inconsciente de que estamos em nosso lugar conforme esse conjunto de signos se repita em nossos semelhantes. Vejam só o que ocorre com os cães: eles coçam seus pescoços com as patas traseiras, chacoalham o corpo todo quando se molham, lambem certas partes do próprio baixo ventre que não nos apetecem. Podemos achar tudo isso engraçadinho, mas são ações que nos distanciam deles como espécie, porque está fora da nossa própria estrutura orgânica (imagine-se coçando o pescoço com a perna). Mas achamos fofíssimo quando eles cruzam as patinhas da frente, à moda das vizinhas que espiam a vida dos outros pela janela do quarto; achamos graça quando eles brincam com bolinhas, do mesmo modo que faz uma criança pequena, e sentimos o coração ungido de indulgências quando eles fazem aquela famosa cara de misericórdia, do mesmo modo que fazem as beatas ao cabo da missa de Ramos. Ou, mais ainda, quando surge uma daquelas historinhas típicas de Facebook contando a saga de um cão que vai dormir sobre a sepultura do dono pelo resto da vida, numa idealização do amor incondicional. Olhem só – são humanizações, são gestos identitários que se podem observar entre cães e homens. E isso faz com que cães nos sejam mais simpáticos do que ostras, que se limitam a ficar pousadas sobre as pedras.
Se há essa interação quase que emocional entre cães e homens, o que não dizer da relação intra-espécie? Quanto maior for a coincidência entre o gestual de duas pessoas, tanto maior será a empatia subjacente. Pegue duas meninas que gostam de puxar os longos cabelos para trás, cofiando-os entre os dedos para tentar obter um pouco de obediência; ou pense em dois rapazes que coçam suas barbas ralas ao encarar o indigesto exercício de Cálculo II que lhes é impingido; ou o casal que chama o garçom do mesmo jeito, levantando o indicador timidamente, um pouco abaixo da linha dos olhos. São uniões pela vaidade, pela aflição ou pela timidez – são elos. Ou ainda outra característica, mais facilmente perceptível: para fazer coisas em que há necessidade de um certo impulso, todos ficam esperando alguma cobaia ir primeiro para todo mundo seguir atrás, como acontece em um karaokê, ou para pintar o rosto e fazer micagens, como essa turma aí embaixo:
Tudo bem até aqui? Então reserve. Vou quebrar violentamente a estrutura deste texto, mas vocês vão entender.
Sou filho de costureira. Minha pobre e defunta mãe tinha talento suficiente para ser uma artista plástica de estirpe, tão hábeis eram suas mãos no manuseio de massas, pincéis e decorações outras; mas o fato é que as coisas nunca são como queremos e a ilustre genitora precisou canalizar suas habilidades para decotes, vieses, agulhas e linhas, com os dedos protegidos por dedais de alumínio. Era a época do operariado que trabalhava muito e ganhava pouco (bom, ainda é assim) e, se as mulheres quisessem ter algum luxozinho que passasse do básico, tinham que meter a mão na massa, às vezes literalmente. Isso quando seus parcos trocados não eram agregados aos do marido para fazer parte integrante do orçamento da casa. Para conseguir uma melhor produtividade, minha mãe não podia ficar saindo da máquina para cada botãozinho que se precisasse comprar. Por conta disso, virei uma espécie de estafeta dela, fazendo entregas de calças prontas, retiradas de fazendas para costurar e pequenas compras, incluindo aí linhas, zíperes, forros e os precitados botões.
Quando o sapato estava verdadeiramente apertado, ela precisava ousar e me mandava comprar tecidos. Dava-me uma amostra do pano, o dinheiro da compra e do então barato ônibus, e despachava-me para a rua 25 de Março, que na época era especialista nesse tipo de produto. Modéstia a parte, eu fazia muito bem meu ofício. Não me lembro de ter trazido material errado nunca.
Quando o tecido era de uma cor só, era muito fácil. Bastava pegar
a amostra, comparar cor e textura com os grandes rolos disponíveis e pedir a
metragem necessária. Se o tecido era estampado, também era fácil: se é igual, é
igual; se não é, não é. O drama era quando o tecido era composto por uma
padronagem, coisas como xadrez, risca de giz, quadriculado, as malditas
ondulações. Nestes casos, achar o tecido exato era tarefa para horas, caçando
lojas e driblando turcos que queriam te empurrar panos parecidos, mas não
iguais. Afinal de contas, uma vez no corpo, tecidos levemente diferentes ficam
quase que opostos.
A urdidura dos tecidos que utilizam padronagem é antecedida por um cuidadoso planejamento por parte dos tecelões, porque a trama não considera apenas mudanças de cores, mas também de texturas, densidade e mesmo de fios, dependendo da sofisticação desejada. É preciso que o conjunto forneça boa distribuição, unidade estética, amarração contínua suave e ritmo adequado. Estes elementos todos devem ser levados em conta porque esse padrão (chamado em alfaiataria de módulo) será repetido várias vezes na peça toda. Isso é chamado de rapport.
Rapport vem do francês, uma das grandes terras da moda. Como se pode deduzir pela descrição que fiz acima, quer dizer alguma coisa como repetição, embora não exista uma tradução direta para o termo. E, neste sentido, começamos a costurar os fios com a mimese que mencionei na primeira parte deste texto. Mimetizar é imitar e repetir, e o rapport nada mais é do que um termo que significa a capacidade de gerar sinergia entre as pessoas utilizando essa característica.
Mas esse termo também pode significar relação. Rapport sexuel, por exemplo, significa relação sexual. Desta forma, há dois pontos que separam e convergem o termo: a maneira como as pessoas se relacionam e como essa relação pode se constituir a partir de padrões de comportamento.
Pois então. Quando eu falei que havia algo empático entre as pessoas que assimilam seus gestuais entre si, estava me referindo a esse efeito. É como se uma pessoa enviasse às outras um sinal de sincronia, um sinal de existência de pontos de vista em comum. Voltando ao exemplo das meninas – quando ambas mexem nos cabelos, é como se afirmassem: “Ambas gostamos dos nossos penteados, ambas temos pontos de contato, ambas podemos usar essa sincronia para aprofundar nossos laços”. É claro que a coisa não acontece de forma tão escancarada, é tudo muito sutil, não existe mágica...
Não?! Pois parece que há quem pense que sim. E desta forma acabamos por desperdiçar uma bela hipótese psicológica em uma pseudociência, a Programação Neurolinguística, mais conhecida como PNL. Antes que eu receba a fúria dos defensores da PNL, devo desde já informar que não vou afirmar neste texto que ela seja mera empulhação, como é o caso do horóscopo, mas de um conjunto de procedimentos que não estão bem explicados, como é o caso da acupuntura, que parece funcionar, mas ninguém explica por quê.
A pretensão da PNL é oferecer modelos de comunicação que proporcionem uma melhora na capacidade de influenciar o pensamento de outras pessoas, através do aumento da empatia entre os polos comunicantes. É uma autêntica salada mista que mistura linguagem, Gestalt, comportamentalismo, psicanálise, pedagogia sistêmica e uma certa dose de leitura fria. Seu principal defeito se dá pela carência de evidências científicas bem construídas, já que seus mentores utilizam princípios paradoxais, como as colisões entre a primazia do ambiente e do comportamento na cognição, e pelo fato de desconsiderar pesquisas mais recentes na construção dos seus modelos. Como eu já disse, a PNL tem aquela carinha mista de autoajuda e esoterismo, em que utilizamos elementos esparsos para formar uma teoria sem fundamentações sérias. Baseia-se em uma visão pragmática, que visa, no limite, a convencer o interlocutor. E isso é muito bom nas vendas, na política, na publicidade. Não sei se é o mais desejável em uma relação pessoal sincera.
Fazer rapport, nestes casos, significa penetrar no campo de manifestações da pessoa com quem nos comunicamos e, através da repetição de alguns gestos (como a postura, o sotaque, a vivacidade do discurso), criar uma sincronização. A pessoa se sente semelhante à outra, e acaba por “amarrar” uma espécie de empatia. Vemos dúzias de vendedores fazer isso espontaneamente: é o que chamamos de “língua de veludo”. A PNL entende que é possível fazer uma espécie de programação em nossa linguagem visando alcançar essa virtude. Bem instrumental, no meu ver... Espontaneidade zero!
Isso desmerece o efeito rapport? Não inteiramente. Percebam que os fatos descritos até a parte em que comecei a falar sobre a PNL são empiricamente perceptíveis. O exemplo do bocejo é muito emblemático, mas o mecanismo que faz com que seja disparada sua imitação não é muito claro. A tese mais bem aceita hoje em dia é a de que possuímos neurônios-espelho. Que diabo é isso?
Nosso cérebro é uma maquininha cinza da qual pouco sabemos, mas que aos poucos vai se pondo desnudada à nossa frente, principalmente com a invenção de instrumentos que consegue captar os fracos sinais elétricos por ela emitidos. Utilizando recursos como eletroencefalogramas e ressonâncias magnéticas, os pesquisadores em neurologia têm observado que, ao visualizarmos uma atividade corriqueira qualquer, nós temos as mesmas áreas de nosso cérebro estimuladas das que são utilizadas pela pessoa que pratica efetivamente a ação. Em um exemplo, podemos imaginar que estamos sentados ao lado de um garoto jogando videogame. Se há uma tarefa que exige acurácia por parte do menino, uma determinada área do seu cérebro é ativada, a área da atenção; se é necessário noção espacial, outra área é requerida, e via discorrendo. Estamos apenas sentados ao lado, observando. Mas as nossas áreas cerebrais ativadas por esta simples observação são as mesmas que a do garoto em ação, cada uma de acordo com o momento da missão a ser cumprida. Notem que isso pode dar uma noção de perspectiva do outro, do sentimento que o outro tem do mundo, e, principalmente, de nos identificarmos com esse modo de ver e agir, a tal da alteridade.
Além disso, é uma tremenda ferramenta de aprendizado, o que dá guarida fisiológica a muito do que os psicólogos comportamentais haviam preconizado. É uma bela explicação dos processos cognitivos. Ao registrar a nível neurológico uma ação qualquer a ser repetida, o cérebro cria uma espécie de “roteiro” a ser utilizado quando o mesmo ato houver de ser realizado por nós mesmos.
O espelhamento foi descoberto meio que por acaso, como é comum acontecer. Fazendo testes de atividade cerebral em um macaquinho, o neurocientista italiano Giacomo Rizzolatti e equipe observaram que, ao ver um dos membros pegar uma banana em uma cesta, o pequeno símio emitia os mesmos sinais elétricos que ocorriam quando ele mesmo pegava a banana. Aprofundando a pesquisa, perceberam que o mesmo fenômeno se repetia todas as vezes que o macaquinho observava qualquer ação passível de cognição – se o cientista utilizava um brinquedinho, certas áreas do cérebro do bichinho eram ativadas; quando a brincadeira era feita pelo filhote, lá estavam as mesmíssimas áreas em funcionamento.
A mesma pesquisa estendeu-se a humanos, e obteve-se a mesmíssima conclusão – também em nós o espelhamento é uma realidade. A conclusão mais filosófica que podemos chegar é que, a nível cerebral, pensar e agir é exatamente a mesma coisa. E daí por diante muita coisa se explica na cognição, no aprendizado, na experiência pessoal e nas relações interpessoais. Mais uma vez voltando às vaidosas e cabeludas meninas, ou às mulheres que enrolam seus novelos: lá dentro da cabeça delas, observar os dedos entrando nos cabelos ou a linha de lã sendo enrolada é a mesma coisa que elas mesmas desfiarem os cabelos ou enredar os novelos. As cadeias elétricas dos neurônios espelho são ativadas da mesma forma. Dá para perceber o potencial de identificação que isso causa? E mais ainda, dá para perceber que isso é uma maneira física de obtermos a perspectiva do outro?
Para finalizar, tenho a lamentar que a PNL queira usar essa característica de modo tão pragmático, mas o pior é que o faça no estilo “o sol nasce porque o galo canta” – falácia da falsa causalidade. Os fenômenos que utilizam, incluindo o rapport, parecem funcionar, mas suas bases não são científicas – poderiam ser, ainda que não concordássemos com elas. Mas aí a contestação de suas teses poderia fazer com que acontecesse o mesmo que acontece com as teorias de terra plana – caírem no ridículo.
Recomendação de leitura:
Impossível achar literatura a respeito do espelhamento e do efeito rapport no Brasil sem estar atravessado pela modinha da PNL. Sendo assim, fui beber na fonte original, já que consigo ler em italiano (com um bom site de tradução ao lado, já se diga) e achei este livro em que o Dr. Rizzolatti, com o apoio do filósofo Corrado Sinigaglia, descreve todo o processo de pesquisas que o levou à descoberta dos neurônios-espelho e suas implicações.
RIZZOLATTI, Giacomo; SINIGAGLIA, Corrado. So quel che fai. Il cervello che agisce e i neuroni specchio*. Milão: Raffaello Cortina, 2006.
*Sei quem faz. O cérebro que age e os neurônios espelho.
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