(O que é o niilismo? É justa sua associação com o ateísmo e o ceticismo? E por que ele vira de cabeça para baixo com Nietzsche?)
Olá!
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Eu nunca tive grandes problemas para pegar no sono com café,
mas ele me ajuda a acordar. Como tenho procurado fazer tudo o mais cedo
possível nesses tempos pandêmicos, às vezes a coisa chega às raias da
maluquice. A maior delas foi quando precisei ir ao dentista. O doutor não tem
muita noção de cronogramas e aceitou o desafio: “te atendo às seis da manhã, se
você quiser”. Eu quis, por amor à saúde e arrepio do sono. Coloquei o
despertador para as quatro e meia da madrugada, e levantei zumbizando, mas com
lógica suficiente para preparar um café turco, o mais potente de todos no
quesito estímulo.
O ibrik é o
recipiente canônico para o preparo do café turco, um dos métodos mais antigos e
que extrai um dos cafés mais fortes, e que é cheio dos rituais na preparação. Inclusive,
é desse modo de usar que é feita a célebre leitura de borra, ou cafeomancia –
nome mais feio do mundo. A coisa toda começa com o café sendo moído em uma
espessura finíssima, o mais próximo possível de uma farinha. Ele é colocado no
cadinho em água fria para ebulir junto, para obter um processo de transferência
de essências. Caso se queira, é admissível a mistura de especiarias, como
cravo, cardamomo e anis. Eu fiz uma vez com pimenta em grão e ficou bom prá
caramba.
A parte mais cerimonial já começa aqui. Quando ocorrerem os primeiros sinais de fervura, o caldo vai subir, como se fosse leite, e é preciso tirar rapidamente da chama. Esse rito é feito por três vezes. Ao fim, já com o fogo desligado, o pó ficará boiando encharcado sobre a água. Para iniciar o processo de decantação, é preciso despejar água fria sobre a borra, em um fio bem fininho, de preferência com um pescoço de ganso.
Feito isso, o café é colocado sem filtragem para descansar na xícara. Fica forte à beça, e cheio de pó. Por isso, é um café de nicho, feito para ser enfrentado por quem gosta de níveis petrolíferos de cafeína. Se o objetivo é fazer o ritual de leitura de borra, faça sua vida ter mais graça e leve a coisa a sério. Pegue uma xícara sem alças e tome cuidado para não engolir todo pó do fundo. Mentalize o questionamento que você quer fazer aos deuses rubiáceos e ingira aos poucos. Vire-a então sobre um pires e espere escorrer.
Do pó assentado no fundo que escorreu pelas paredes da
xícara é feita a leitura do futuro de quem tomou o café. Eu, por exemplo, previ
que uma xícara seria lavada, sob pena das altercações com a patroa. Percebem
como está escrito exatamente isso?
Nome do utensílio: Ibrik
Tipo de técnica: fervura em
recipiente de cerâmica (decantação)
Dificuldade: Média
Espessura do pó: Muito fino
Dinâmica: água e pó muito
fino são levados à fervura até o líquido subir. É arrefecido com água fria para
o pó descer, e mantido em decantação para que o líquido possa ser extraído com
o mínimo de pó possível.
Resíduos: Muitos
Temperatura de saída: Média-alta
Nível de ritual: Altíssimo
Brincadeiras a parte, a cafeomancia tem oposições perfeitas
em seus valores culturais e epistemológicos. Ela carrega alto valor
tradicional, em proporção inversa à sua carga de verdade, mas isso é coisa para
chatos como eu reparar. Astrologia, numerologia, biorritmo, profecias e
meteorologia paulistana têm valores preditivos parecidos: nenhum. Tudo isso
para este escriba, não precisam brigar comigo.
Mas daí que eu fiz um café no ibrik neste dia específico e
fiquei lá raciocinando antes de, pela centésima vez, virar a xícara só de
brincadeira, enquanto esperava a cara consorte. O que é um ritual desses para
quem não acredita em rituais? Bem, como eu acabei de dizer, os ritos têm valor
antropológico e, além disso, nós vivemos, mesmo o mais arraigado dos ateus,
algumas formas de celebrações
e de rituais. Mas em termos práticos, não se vê onde as artes divinatórias
vão dar. E com isso lembrei que esqueci de falar no meu
texto sobre ateísmo de uma vinculação muito comum que se faz entre ele e o
niilismo. Ora, nunca é tarde, façamos isso agora.
Niilismo é um termo meio esquisitinho, que vem da palavra
latina nihil, que, ora vejam,
significa nada. Seu sentido mais
estrito é uma descrença absoluta em tudo, pelos mais diferentes motivos. Como a
descrença em deus faz parte do conjunto de descrenças, está bem explicada a
amarração que se faz entre niilismo e ateísmo. Como regra geral, todo niilista
é ateísta, mas nem todo ateísta e niilista. O ateu pode ter vários propósitos
que não são a total negação a que os niilistas se propõe. Na mão inversa, se o
niilista não vê sentido em nada, pareceria um pouco antagônico se ele
acreditasse em um deus. Portanto, o vínculo possível seria uma espécie de
encapsulamento, onde o conjunto “ateus” englobaria o subconjunto “niilistas”,
sem guardar uma relação necessária de sinonímia.
Essa história de niilismo já vem de muito tempo atrás, desde o sofista Górgias, que dizia que "nada existe; se existe, não pode ser conhecido; se pode ser conhecido, não pode ser expresso". Como os socráticos não viam com bons olhos os sofistas, especialmente pelo uso comercial do conhecimento que estes faziam, esse tipo de niilismo ficou um pouco obscurecido, mas não inexistente. Isso porque, ainda que nos carreguemos de profundos estudos metafísicos e existenciais, por mais que busquemos conhecer as divindades e suas teologias, e mesmo que tenhamos um desejo profundo de acreditar firmemente nessas disposições presentes e futuras, há apenas dois fatos dos quais temos experiência direta: os enganos dos sentidos e a certeza da morte. Tudo o mais vai no campo da expectativa, e não do empirismo.
Neste ponto, podemos diferenciar o niilismo do ceticismo. O
cético é aquele que duvida, e não aquele que desacredita. Grosso modo, o cético
aceitará provas incontestes, só não aceitará engolir argumentos puramente
apoiados no ar. Já o niilista passou dessa fase da suspensão do juízo: ele
pauta toda sua cognição na negação da possibilidade de saber. O ceticismo, por
exemplo, duvida dos valores de uma sociedade, enquanto um niilista os nega. O
cético não se importa em dar um sentido à vida, o niilista os exclui.
De uma forma ou de outra, o niilismo esteve no horizonte de
muitos filósofos no transcurso da história. Teve seu auge com o voluntarismo
de Schopenhauer, que deu contornos de conformismo e pessimismo à visão
metafísica da existência, ao estabelecer uma total submissão à vontade e às
suas representações; e com o existencialismo
de Sartre e tantos outros, que deu prioridade à existência concreta, em
detrimento a uma suposta essência.
Mas é com Nietzsche que ele deixa de ser uma tendência para virar
objeto de estudo. Quer dizer, daquele jeitão sui generis dele, né? Tanto que
precisamos recorrer à metanálise feita pelo filósofo francês Gilles Deleuze
para que isso fique bastante claro.
Na interpretação de Deleuze, o nada para o qual Nietzsche
volta seu foco tem correlação com a vida. Portanto, sempre que se falar em
negação, é nisso que Nietzsche está pensando - negação à vida, em uma crítica
contundente à civilização da modernidade. Ele constrói em diferentes textos
quatro maneiras de ver o niilismo, sendo que eles seguem uma espécie de roteiro
histórico, que, mais do que se seguirem linearmente, vão se acumulando.
O primeiro deles é o niilismo negativo, e aqui as bazucas
nietzscheanas se voltam contra a Metafísica e a Religião, notadamente o Platonismo
e o Cristianismo. Quando observada a antiguidade clássica, podemos notar que as
ideias de Platão falam de um mundo além do sensível. Todas as essências e
modelos estariam em uma dimensão apartada, perfeita, detectável unicamente pelo
intelecto. Sendo inacessível pelo corpo e pelos sentidos que, no fundo, são a
nossa forma de fluxo pela vida, temos já aqui sua primeira negação. O mundo
sensível é imperfeito, uma mera cópia do que seria o mundo inteligível,
cambaio, torto, inadequado. O mesmo se aplica ao modo de vida cristã. Para seus
praticantes, a vida terrena é somente uma passagem para a eternidade. Pior
ainda, é um condicionante para essa eternidade, que pode se tornar terrível se
o destino for o inferno. Essa dor eterna se dará justamente se instintos forem
liberados e se os sentidos forem colocados em um primeiro plano, gerador
infinito de pecados. Vejam como os maiores impulsos são condenados pelo
Cristianismo, sendo que a solução, igualmente, é negar a vida que nos é
estranhamente dada pelo deus, na expectativa de que se possa obtê-las em outro
lugar. Esse é o niilismo negativo,
porque se baseia fundamentalmente em negar virtudes existenciais presentes para
projetá-las para fora, em um outro plano.
Com a chegada do Renascimento e do Iluminismo, todo esse
aspecto metafísico citado anteriormente deixa de existir. É o século da Ciência
e do olhar voltado para o próprio homem, que passa a enxergar sentido para a
vida novamente, através dos avanços no conhecimento e na tecnologia. É aqui que
surge a morte
de Deus, e os homens, livres do peso que lhes oprimia, buscam seus
propósitos no próprio mundo. Mas esse avanço não é para agora, e Nietzsche
passa a martelar a própria Ciência. As descobertas e invenções são boas, é
fato, mas ainda custará tempo para que produza um mundo onde verdadeiramente
valha a pena viver. Então a negação muda seu foco: o mundo onde o sentido
existe é este mesmo, mas o que está sendo negado é o presente, o momento atual.
É o futuro que reserva significação plena para o ser humano. Hoje, ele é mera
expectativa. Por ser produzido a partir de uma reação à impossibilidade de se
afirmar a vida do niilismo negativo, este é chamado de niilismo reativo.
Acontece que o futuro chegou e o que tivemos foram guerras e
pestes. O homem não criou um paraíso através da técnica, somente obteve mais
miséria para si mesmo. Aumentar a tecnologia para facilitar a vida somente fez
com que seu desejo se tornasse incontrolável. Órfão de deus e desiludido com a
ciência, já não se tem o lenitivo da expectativa, e o homem se vê
metaforicamente pelado debaixo das pontes, sem nenhuma solução de sentido. É a
hora de torpedear a própria Filosofia. A ascese sugerida por Schopenhauer não é
solução, é um disfarce, e a negação de significado passa a ser total, doentia,
dolorosa, imobilizante, o que dá a ela toda a carga de pessimismo que lhe é
peculiar. É um deixar-se levar exaurido, de corpo solto, por isso chamado de niilismo passivo.
Por fim, temos a efetiva proposta de Nietzsche. Ele concorda
com a carência de sentido da vida. Realmente, não se está aqui para buscar um
lugar melhor, nem um tempo melhor, mas para transvalorar todos os valores. O
homem fica preso ao próprio desespero porque não consegue ir para além de si
mesmo, de reconhecer que a vida tal qual se apresenta a nós é tudo o que temos,
em um pacote completo que inclui alegria e tristeza, prazer e dor, animosidade
e paz, força e fraqueza. É como se saltássemos de para-quedas e este falhasse.
Se é irremediável meu fim, o que melhor me cumpre fazer? Rezar
desesperadamente, gritar em pleno céu ou aproveitar os últimos segundos que
tenho para me regozijar com a sensação única do colchão de ar que me sustenta
no nada? A dificuldade do exercício está exatamente no cerne do novo valor:
apreciar ao máximo a força do agora, livre de qualquer amarra metafísica, seja
ela qual for. A vida é para ser vivida em derramamento, já que não há nada para
detê-la, com todos os seus percalços e recompensas. Afinal, em qual dos dois
nós vamos assentar nossa oportunidade única? Esse é o niilismo ativo, o mais caro de todos para Nietszche.
A humanidade não tem clareza sobre essas distinções porque
está em trâmite nas suas três metamorfoses, que Nietszche trata em seu Zaratustra.
Na sua fase de camelo, carrega em suas costas todo o peso de suas convicções e
preconceitos; na fase do leão, ela se verá sozinha e perdida na selva, e rugirá
pela obtenção de seus novos valores, enquanto na fase da criança terá tudo para
ser criado, tudo para ser inventado, deixando para trás e esquecendo tudo o que
lhe amarrava. Desta forma, o significado da vida será a própria vida, o sentido
de existir estará no próprio ato de existir.
É uma puta visão legal, vai... Principalmente após uma boa
dose de cafeína. Bons ventos a todos!!!
Recomendação de leitura:
Deleuze não foi um mero analista de textos de outrem, mas um
pensador importante do pós-estruturalismo. Voltarei a ele oportunamente.
DELEUZE, Gilles. Nietzsche
e a Filosofia. São Paulo: N-1, 2018.
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