Com o tamanho da costa do país
do futebol, não é de se estranhar que os nossos principais destinos turísticos
sejam as cidades litorâneas. Feriados prolongados são sinônimo de formigueiro à
beira-mar, com os consequentes engarrafamentos das rodovias que cumprem a árdua
tarefa de dar caminho às praias. É assim mesmo – sol, mar, corpos bronzeados,
cerveja e churrasquinho são a combinação perfeita para 99% por cento dos
brasileiros. Eu estou no percentual restante.
Ora, direis, que te faz tão rabugento? Nada de substancial.
É um misto de frustração
com overdose de areia, e acabei perdendo um bom tanto da graça de ficar com o
sal grudento nas costas, com a areia urticante nos pés, os mil e um cremes para
evitar as queimaduras que me vêm só do mormaço, das intermináveis filas do pão,
da carne e da novalgina. Enfim, houve um ponto de inflexão tal que o incômodo
com o litoral se tornou maior que o prazer, só isso.
Claro que eu me refiro às repetições contumazes. Se tudo
fosse uma grande novidade, com certeza pensaria diferente. Se alguém me
convidar para conhecer Jericoacoara ou Porto de Galinhas, arrumo as malas em
cinco minutos. Mas a costa paulista, conheço-a toda, de inúmeras farofagens
feitas desde a época de pequeno, embora tenha mais de trinta anos quando fui
pela última vez às praias do Vale do Ribeira. Acho que iria para lá de boa.
É... boa ideia. Vai para a lista de roteiros.
Mas não é só de orla que vivem as cidades do litoral.
Algumas são verdadeiramente grandes, centros importantes, tanto nas finanças
quanto na cultura, e já fui a Santos só para levar a patroa para ver o time da
casa. Tenho também alguns parentes em Itanhaém e um primo em São Sebastião:
visitas também são bons motivos para descer a serra. E há concursos públicos.
Mais um? Mais um. Do filho mais velho novamente? Do filho
mais velho novamente. É meu jeito de cooperar, entrando com gasolina e pedágio,
enquanto ele entra com inscrições e sapiência, já que não posso nem quero fazer
as provas em seu lugar. Estamos rumando para o Guarujá, a Pérola do Atlântico,
que, para quem não sabe, é totalmente destacada do continente, acessível por
balsas ou pontes.
A prova do concurso foi realizada em uma escola de Vicente
de Carvalho, o distrito pobre da cidade, perto do porto que ladeia o estuário de
Santos. Não tinha nada para fazer por lá em um domingo bem cedinho, nem tomar
café em um boteco minimamente confiável. Nesse diapasão, melhor seria encher os
olhos com alguma bela vista, nessa cidade que é conhecida como uma das mais bonitas
de todo o litoral paulista. O mirante mais próximo e mais fácil é o Morro do
Maluf, e é para lá que eu vou, em demanda do meu cafezinho. Achei em um bar que
fica no pé de tal logradouro.
O Maluf é um promontório que se projeta mar adentro, de modo
a fazer divisa natural entre as praias de Pitangueiras e Enseada. Seu nome nada
tem a ver com o famoso político, mas com o empresário Edmundo Maluf, que
costuma dar festas de arromba em sua casa localizada no morro. Sobrou o nome e
a profunda visão que se tem do mar.
O nome oficial deste mirante é outro. Chama-se de Morro da
Campina, mas foi consagrado com o nome tipicamente libanês. Há dois pontos por
onde se pode acessá-lo: pela praia das Pitangueiras, cheia de cascalho, por
onde temos as portarias dos principais prédios, e que é mais próximo às pedras
da orla...
... e pela praia da Enseada, por onde é possível chegar à
parte mais alta do morro, cuja ladeira passa por meio do que restou de bosque
no local. Da orla, é possível ver o paredão que o pessoal do rapel usa em suas radicalidades.
Já, já volto a falar sobre isso.
Quando nós chegamos ao morro, ainda estava bem cedo e tínhamos
a “friaca” matinal, com o céu bastante encoberto e meio escurão. Os poucos
corajosos que se atreviam pela orla não estavam lá para praticar banhismo. Pelo
cheiro de tecido queimado, era outro tipo de atividade. Para quem já foi em São
Thomé das Letras dialogar com os artesãos locais, não há muito
conservadorismo a ser colocado.
Pela entrada de Pitangueiras, a rampa é toda murada, e,
mesmo naquela hora da manhã, não há lá muitas vagas para se parar o carro.
Entretanto, é dali que se pode observar a água do mar batendo nas pedras e
fazendo sua espuma. Já sentiram uma estranha sensação de que o mar te puxa em
mergulho suicida? Pois é, neste lugar me dá esse negócio.
Já pela entrada da Enseada, é possível chegar no topo do
mirante. O morro tem uma culminância de 40 metros de altura, contando,
evidentemente, do nível do mar. O que lhe restou de vegetação é de gramíneas na
parte exposta ao front marítimo, e um quase desaparecido pedacinho de mata
atlântica na parte de trás.
É daqui que temos a vista mais bonita, de toda a longa praia
da Enseada, e é daí que aprendemos um pouco de geografia: uma enseada é uma
espécie de curvatura na linha costeira que forma uma reentrância, mais aberta
que uma baía, mas mesmo assim facilmente delimitável. Neste caso, a praia fica
entre o Maluf e o Morro da Península, lá do outro lado.
Os antigos marinheiros gostavam de aproveitar estes
acidentes geográficos porque os cabos produzem quebra-mares naturais, fazendo
com que as águas em seu interior fiquem mais mansas do que em mar francamente
aberto. Além disso, os avanços de terra adentrando o mar costumam propiciar um
pouco mais de profundidade para as embarcações acostarem.
Podem perceber que, pela mudança de luminosidade e pelo
incremento populacional, nós ficamos um tempão lá em cima, já que não havia
pressa nenhuma. A princípio, era possível complementar as contemplações ambientais,
como as várias ilhas que guarnecem aquele pedaço de litoral, como a Pompeba,
para o lado das Pitangueiras; a Moela, para quem olha no sentido das Astúrias,
ou a das Cabras, fotografada aí em embaixo.
No entanto, a preguiça matinal vai se esvaindo e intervenções
humanas passam a ser mais frequentes que ilhotas ou ondas que batem em pedras. O
Maluf, como eu já disse, tem um belo paredão para quem gosta de praticar rapel.
Sinceramente, não me vejo praticando esse tipo de diversão, pelo mero aspecto
prático de que é muito tempo perdido com parafernálias e segurança para descer
uma encosta. Mas admiro quem curte – sou cagão para alturas.
Mais longe, sim, algo que eu adoraria. Uma burguesíssima lancha
singrando o mar e fazendo rodeios para lá e para cá, a esmo. Também vi alguns jet-skis,
e meu grande barato nem seria uma lancha, mas um barco a vela, o que não
significa que não aceitaria de bom grado fazer um rolê náutico em uma dessas.
Algo muito digno de nota, que necessitará de um relatozinho
básico: quando eu era pequeno, meu padrinho tinha uma Kombi e outro tio tinha
uma Variant, as duas em um estado de conservação que não passaria nem em uma
rua secundária, quanto mais em uma rodovia. Mas eram outros tempos e isso não
vem ao caso. O que importa era que meu avô elegia uma praia qualquer e para lá
íamos farofar em comitiva, com veículos cheios como um ovo cozido. Lembro bem
do Maluf, porque era diferente das habituais “planícies” do litoral sul. Já
existia o Grande Hotel, mas, no geral, era possível ver uma boa parte dele de
longe. Acontece que sua parte traseira está absolutamente tomada por prédios.
Não se sabe que há uma elevação quando se chega pela avenida praieira. Ela está
completamente cercada pelas edificações.
É bem verdade que ainda existe uma pequena parte do bosque,
mas somente é possível entrevê-lo entre um edifício e outro.
O mesmo pode se dizer com relação ao morro descoberto. O paredão
abaixo não pode ser aproveitado para praticar rapel, já que vai dar na área dos
fundos dos prédios que ficam no acesso de Pitangueiras. Também aqui boa parte
do espaço está oculto. A única parte ainda aberta é aquela que está defronte ao
mar.
A questão se radicaliza no topo. Se por um lado a praia da
Enseada é visível de maneira majestosa, a de Pitangueiras ficou praticamente
toda escondida, sendo necessário encontrar um ponto exato para conseguir enxergar
uma nesga da areia. Que puta desperdício de beleza. Desperdício, não;
privatização, isso sim. Quem está nos prédios tem a visão que foi roubada dos
transeuntes.
Isso me obriga a retomar a questão tratada no texto
anterior, e recomendo sua leitura. Mas dá para entender este post com
independência. Mercadorias tem valor de uso e valor de troca, e só assim são
mercadorias. Algumas coisas têm só valor de uso, como o ar que se respira, e não
existe essa coisa que tenha valor de troca puro. Mas existem muitas relações de
equivalência. O valor de uso só se realiza no próprio uso ou no consumo, e só
ganha valor de troca quando se permuta com valor de uso de outras espécies, que
dificilmente possuem correlação direta, do tipo “um quilo de arroz vale um
quilo de feijão”. Por exemplo, Karl Marx utiliza a comparação entre uma peça de
roupa e o tecido necessário para fazê-la. Pensando em termos de uso, um casaco
serve para guarnecer o corpo contra o frio, e o linho serve, ora essa, para
fazer casacos. Digamos que, colocados em seus valores de troca, um casaco
equivalha a duas medidas de linho. Em um pensamento simplista, poderíamos
afirmar que a correlação direta se dá na quantidade necessária de linho para
manufaturar o casaco, mas, na realidade, esta dá e sobra – há mais linho do que
o necessário.
Por que essa diferença nos valores de troca? Por que há um
terceiro elemento, um valor de trabalho embutido no casaco que majora aquele
próprio com relação ao material linho. Afinal, não basta jogar o fio para o céu
e obter a peça pronta. É preciso tecer, cortar, alinhavar, costurar e dar
acabamento. Da mesma forma, qualquer mercadoria carrega consigo uma parcela de
valor do trabalho que foi aplicado para constituí-la, mesmo que seja um simples
extrair da natureza.
Todas as mercadorias guardam entre si uma correlação de valores
de troca, ainda que de maneira distante. Um casaco vale duas medidas de linho,
que vale três garrafas de uísque, que valem um quintal de alface, que valem cinco
barras de estanho e assim sucessivamente, todos determinados pelo somatório do
valor concreto dos materiais e do valor abstrato do trabalho, lembrando que o
valor dos materiais já inclui o trabalho que se houve para obtê-lo.
Acontece que, na prática, não vamos à quitanda com barras de
estanho para comprar alface. Há inúmeros contratempos para limitar o escambo
direto: dificuldade de mobilidade, falta de interesse em uma das partes, limites
na avaliação dos valores, impossibilidade de fracionamento em mercadorias
indivisíveis. Para solucionar o problema, nasce uma mercadoria cujo valor de
uso consiste exatamente no seu valor de troca: o dinheiro, um equivalente
universalmente aceito que resolve a questão dos valores de troca. Assim, um
casaco custa a mesma quantia em dinheiro das medidas de linho, das garrafas de
uísque, da alface, do estanho e de tudo o mais que possua valor de troca, de
modo a ser sua posse a necessidade básica para comerciar.
Ocorre que o dinheiro funciona tão bem que esquecemos a
verdadeira razão de sua existência, a de representar valores de troca
vinculados a mercadorias fisicamente existentes, e passa a ter vida própria. Ele
ganha a primazia na relação comercial, e tudo dentro dela passa a ser expresso
em cifras, como se o dinheiro fosse uma espécie de fantasma, um componente que
surge não se sabe de onde, mas que embute em si todo o campo de relações de
trabalho que são parte integrante dos valores de troca das mercadorias. As
coisas têm preço, mas já não sabemos bem de onde vem, aparecendo como um
feitiço, e não de nossa força de trabalho. Esse é o fetiche da mercadoria.
Percebam que o termo fetiche não tem aqui a conotação sexual
que normalmente lhe damos, danadinhos que somos. Portanto, não está ligado apenas
ao desejo e ao consumo excessivo, tão característico das elites, mas a toda e qualquer
relação de consumo. Afinas de contas, a mercantilização se dá até com bolinhas
de gude, e sua cotação no mercado não é algo que se explicite facilmente na
etiqueta à borda do pote que as guarda. O fetiche vem da ideia de
enfeitiçamento que dá ao dinheiro uma espécie de carga sobrenatural. Portanto,
Marx não estava se ocupando em explicar o fenômeno do culto ao supérfluo, e sim
à alienação causada pelo fetiche da mercadoria. Mas o fenômeno do preço caro
que atrai mais compradores também já foi estudado, e seu principal analista foi
o norte-americano de origem norueguesa Thorstein Veblen.
Veblen foi um economista que abraçou um socialismo
não-marxista, cujo principal objeto de estudo foi a classe ociosa gerada pelo
capitalismo. Os magnatas dos inícios da Revolução Industrial auferiram ganho
tal que lhes era impossível consumir toda a própria riqueza, por mais
perdulários que pudessem ser. Como distintivo dessa nova classe, nasce um novo
culto ao ócio e o consumo conspícuo, termo utilizado por nosso autor para
designar o ato de adquirir bens com o único propósito de ostentar riqueza.
A humanidade, diz Veblen, só saiu da sociedade igualitária
quando a noção de propriedade individual passou a fazer parte dos objetivos de
cada um de seus membros. Mas uma das chaves do sucesso não está apenas na maior
aquisição de terras, e sim na apropriação do trabalho alheio, começando
justamente pelo das próprias mulheres. Uma vez desobrigado de atividades
laborais, essa casta passou a cultuar o ócio, que ganhou um aspecto de quase
sacralidade. Devemos nos lembrar que a própria religião dá ao trabalho um
estatuto de castigo (“comerás o pão com o suor do seu rosto”), o que reflete o
pensamento que vê na atividade voltada a coisas supérfluas como uma espécie de
recompensa pela capacidade de ter posses, o que deve ser ostensivamente
demonstrado a todos os nichos sociais que o cercam.
De fato, no espectro das classes, quem mais tem interesse em
se diferenciar são aquelas do topo da pirâmide. É a posição psicológica de quem
precisa ser fonte de determinação de regras. Em uma sociedade guiada pela
mercadoria, quem nos indica quais são as melhores são aqueles que as podem
consumir sem limites. Passa imediatamente pela nossa cabeça que as mercadorias
mais caras são aquelas que melhor se enquadram como objetos de desejo. Portanto,
o melhor champagne, o melhor carro, a joia mais preciosa, o estilista mais
renomado são justamente aqueles consumidos por quem podem pagar mais. E isso
inclui casas à beira-mar.
Percebam como as marcas que produzem mercadorias caras nunca
baixam seus preços. Não há uma Ferrari popular, uma Mont Blanc linha B, uma
Gréville de baixo custo. Fazer isso significaria perder o seu público habitual,
que está disposto a pagar muito caro.
E caro é o preço de um imóvel no interior da faixa de areia,
principalmente em um morro como o Maluf. Caríssimo. Somente um estado
psicológico em que alguém deseja provar que pode mais do que os outros explica
o tanto que se paga a mais por um patrimônio nesta posição. Um imóvel do outro
lado da via é muito mais em conta, e a única diferença é atravessá-la. Somente
o desafio da inveja, de causá-la, pode explicar o tanto a mais que se investe.
Ainda mais porque, junto com este sentimento, vem a raiva pela privatização da
paisagem. A visão que se tem da elite é duplamente malfazeja: por um lado, invejamos
a posição e as benesses que possuem; por outro, morremos de ódio porque esfregam
sua opulência em nossas caras.
O problema é quando sua capacidade de ostentar interfere diretamente
em direitos básicos, simples como ter a visão de um morro na beira da praia. Os
diferentes governos não deveriam permitir, na minha humilde opinião, a construção
de empreendimentos em área que deveria ser pública. O que custa para alguém
subir o morro ao lado de todos os outros cidadãos para apreciar o mirante? Os impostos
pagos não podem justificar a concessão à vaidade de meia dúzia de abastados em
detrimento de todos os demais, mas o fato é que isso ocorre.
O Morro do Maluf, nesse sentido, é um monumento à exclusão
que beira a tolice. Por mais que eu entenda que os sonhos de uma sociedade
equânime sejam utópicos, certas compras o dinheiro não deveria poder fazer.
Nestes tempos em que elegemos governos que primam pela prosperidade das camadas
mais abastadas, desprezando ações sociais, não dá para manter muito otimismo.
Bons ventos a todos, na medida do possível.
Recomendações:
O Guarujá tem se notabilizado não só pela beleza, mas pela
balneabilidade de suas águas. Para quem estiver a fim de uma praia, é o passeio
ideal. Fica bem perto, a cerca de 90 Km da capital.
A teoria de valores de Marx está logo nos primeiros
capítulos de seu capolavoro, O Capital,
a quem já recomendei, com as devidas contingências, neste
texto. Vão lá.
Veblen tem uma abordagem bastante original sobre o consumo
conspícuo, embora tenha sido considerado um outsider da Economia por um bom
tempo, já que a pauta racionalizante era mais significativa do que os aspectos
psicológicos que ele gostava de lançar mão. Segue sua obra mais importante:
VEBLEN, Thorstein. A
Teoria da Classe Ociosa. Col. Os Economistas. São Paulo: Abril Cultural,
1983.
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