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terça-feira, 1 de dezembro de 2020

Pequeno guia das grandes falácias - 53º tomo: o estilo sem substância

Olá!

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O centro de SP é a própria imagem do caos. Carros e pessoas se confundem e se amassam nas praças e ruas estreitas, típicas de um tempo em que sequer se sonhava com automóveis e caminhões, apenas as carroças e tropas de burros. Afinal de contas, a Capital da Vertigem é uma das cidades mais antigas do Brasil, que nasceu como uma espécie de repouso para quem acabava de vencer a subida da Serra do Mar. Por conta disso, o centro mais histórico não tem lá muito para onde se expandir, a não ser que se derrube tudo (ainda mais do que já se derrubou).

Eu moro em uma dessas ruas estreitas e cheias de lixo, como já contei para vocês, e há bem poucos prédios onde more mais gente ao meu redor. Por isso, as noites são o exato oposto dos dias: um silêncio que permite ouvir os morceguinhos vindo se saborear com as mariposas de minha arandela. E isso se repete todas as noites. Quer dizer, quase todas…

Eu normalmente não me incomodo com ruídos da vizinhança. São normais e eu mesmo já fiz muito barulho, principalmente quando ainda tentava viver de rock’n’roll (veja, veja e veja). O guaio é quando você é acordado pelo ribombar das bazucas do carro de algum infeliz quando você já está na cama. E olha que eu não durmo cedo. De tempos em tempos, o mesmo fenômeno se repete, e vem gente que não sei nem de onde para fazer um chaveirinho de pancadão na rua paralela à minha. Só não podemos dar esse nome com acerto e precisão porque o repertório é menos de funks cariocas e mais daquilo que se convencionou chamar de sertanejo universitário.

Bem… até isso me faz filosofar, mesmo com toda raiva do mundo. E a verve poética que me chega ao ouvido me faz lembrar da falácia do estilo sem substância. Vamos entender isso.

O amadurecimento nos traz um viés crítico que tira um ranço típico da juventude. Eu, por exemplo, impunha a mim mesmo um detestar de certas tendências justamente por não estarem na mesma caixinha à qual eu me propunha a estar. Só que eu fui me livrando desse tipo de bobagem, à mesma media que o cabelo começou a rarear e a barba a embranquecer. Acho que isso já aconteceu com todo mundo. Hoje em dia, o samba que eu dizia não gostar passou a fazer parte de meus acervos, como também a bossa nova, o fado, o baião, o tango. Só do tal sertanejo eu nunca consegui livrar a repulsa.

Eu não falo daquele sertanejo mais raiz, feito por aquilo que costumávamos chamar de dupla caipira. Esses eu respeito e até gosto, porque não só são músicas mais puros e intuitivos, mas também porque dão o testemunho vivo do êxodo rural que tanto afligiu nossos antepassados. Também não falo de aperfeiçoamentos musicais mais sofisticados, como Almir Sater, Renato e Chico Teixeira, Passoca, Pereira da Viola, Braz da Viola, Paulo Freire e outros. Desses, eu tenho discos e recomendo neste espaço (aqui). Meu problema é com uma linha de música que teve seus primeiros sinais na década de 70, foi para a grande mídia na década de 80 e se transformou nisso que ouvimos hoje.

Vou pedir desculpas para quem é fã do estilo. Não estou aqui pregando verdades absolutas nem fatos imutáveis, como bem ensinou Nietzsche, e pode até ser que (quem sabe?) venha a apreciá-lo um dia. Portanto, lembre-se que se trata de um mero suporte para exemplificar o que eu quero e não me xingue, apenas discorde. Para tanto, vou colocar minha biografia mais uma vez a meu serviço.

Eu creio que esse bode com a vertente vem do meu pai, com um grande reforço da minha mãe. O que acontecia era que o velho era muito fã de duplas, como sói acontecer com pessoas vindas do interior. E ele gostava muito de ficar ouvindo suas musiquinhas pela manhã, antes de sair para trabalhar, em um programa do Zé Béttio, muito famoso quando eu era criança. Pior ainda nos finais de semana, quando, já bêbado, o genitor perdia a tramontana e desandava a pôr suas longas estradas da vida no último volume, seja no radinho de pilha, seja na vetusta vitrola da sala. Minha mãe fazia esgares de desânimo, e aguardava pacientemente o indefectível sono do patriarca para primeiro baixar o volume à metade, depois mudar para um som qualquer no rádio e finalmente desligar o aparelho por completo, técnica esta que garantia o sono contínuo do patriarca. Um belo dia meu pai apareceu em casa com um aparelho três-em-um*, que vinha guarnecido com duas caixas acústicas. Eu fiquei todo empolgado com aquele equipamento caro, e me prontifiquei a ajudá-lo a desemaranhar os fios e planejar a distribuição pela sala. Minha mãe observava tudo com a cara contrafeita, quedada silente. Meu pai nem notou, mas eu sim, e fui perguntar para ela o porquê, em local discreto. "Agora só vai faltar montar um galinheiro no quintal", disse. Minha mãe tinha um jeito meio cifrado de falar as coisas.

No disco de teste, entendi perfeitamente o mal disfarçado azedume da minha mãe. "Quando olho na parede e vejo o seu retrato, as lágrimas ganham meu rosto num pranto sem fim", foram os versos inaugurais berrados pelo National SS8000, comprado em prestações na Casa Bahia. E o meu pai era o protótipo do homem que encarava uma compra como uma conquista. Como era duro conseguir comprar qualquer coisa do gênero, um aparelho desses era uma das pequenas vitórias do homem suburbano, saído de sua terra para tentar superar, por pouco, sua miséria rural. Ficou por dias e dias e dias desfiando sua pequena coleção de elepês e compactos, pouco incrementada porque, ora essa, era preciso pagar a cara regalia. Minha mãe estertorava enquanto tentava tirar o atraso de suas costuras, e agradecia aos céus porque a estridência do motorzinho de sua máquina de costura encobria um pouco a cantilena chorosa que saía das caixas. É bem fato que já a essa época a velha tinha desesperançado do casamento, e tudo o que meu pai fazia lhe irritava, mas também é verdade que meu pai ficou enciumado com sua máquina de fazer chorumelas, até eu compreender que ninguém mais tiraria proveito dela, e também eu fui aprofundando meu azedume, a ponto de me mandar para a rua todas as vezes em que começava o recital.

Tá… mas por que eu superei o desgosto com o sertanejo raiz e não com sua derivação mais popularizada? É difícil de explicar, mas eu acho que tem muito a ver com o vazio do seu universo. Vou traçar uma rota das minhas percepções pessoais.

Até a década de 60, o padrão da música sertaneja era a dupla acompanhada por viola e violão tocados pelos próprios cantores, algumas vezes também por sanfona. Os vocais adotavam um padrão onde um dos integrantes usava uma voz cantada na terça baixa da tônica, que por sua vez era cantada pelo outro membro. Trocando em miúdos, um cantava a melodia principal, e o outro cantava em um tom um pouco mais baixo, padrão que persiste até os dias de hoje. Entretanto, até esse momento, as duplas procuravam fazer uma espécie de acorde vocal**, sem que uma voz tivesse muito destaque com relação à outra. Os temas falavam da vida no campo e das saudades da vida simples do interior. Esse tipo de composição é possível de ouvir em Tonico e Tinoco, Pedro Bento e Zé da Estrada, Belmonte e Amaraí, e os melhores de todos, Pena Branca e Xavantinho.

A partir da década de 70, houve uma mudança de rumo, com a introdução de instrumentos de sopro, teclados e violinos. A temática tipicamente caipira é substituída por um romantismo transbordado e trágico. Com relação à técnica vocal, passou-se a dar destaque muito maior à primeira voz. A harmonia das duplas mais antigas foi substituída por um floreio cada vez mais destacado do cantor principal, com agudos mais e mais penetrantes, enquanto o outro virou uma espécie de capacho sonoro. Os representantes máximos dessa escola são Milionário e José Rico, mas lá também estão Trio Parada Dura, João Mineiro e Marciano, Duduca e Dalvan, Mato Grosso e Matias e outros mais.

Do meio para o fim da década de 80 o fenômeno foi exacerbado, chegando o pesadelo mais autêntico. A eletrificação da sonoridade aproximou as duplas de um conceito industrial e das músicas tocadas nas rádios FM, onde são praticamente abandonados os instrumentos originais: viola, violão e sanfona são substituídos por guitarras e teclados, como qualquer banda mainstream. A romantização das temáticas chega ao seu ápice, de forma a ganhar o desonroso apelido de "música de corno", e o campo cantado como objeto da nostalgia praticamente deixa de existir. A única manutenção do antigo sertanejo são os vocais com o baixo na terça, sendo que, em alguns casos, a segunda voz é um mero grunhido, enquanto a primeira faz o tímpano tremer de tão esganiçada. Isso nasce especialmente com Chitãozinho e Xororó, mas se estende até hoje, sem perspectiva de mudanças: Zezé de Camargo e Luciano, Leandro e Leonardo, João Paulo e Daniel, Bruno e Marrone... É exatamente esse tipo de som que estampa meus tímpanos nessas inglórias noites.

Ora (direis de novo), se fosse um funkão carioca, com sua peculiar repetitividade e pobreza lírica, não seria pior ainda? Não, e eu explico. Primeiro que a repetição excessiva tão típica do ritmo, apesar da irritação inicial, vai variando para uma sensação nauseabunda típica dos excessos, que, no final das contas, desemboca no mesmo efeito entorpecente dos mantras e das ladainhas. Ou seja, ainda que seja um daqueles sonos que não propiciem descanso, o fato é que você acaba dormindo pelo tédio. E o mais importante: os funkeiros, ao contrário dos sertanejos, não se consideram grandes artistas que fazem obras do mais puro enlevo musical. O funk carioca, já foi dito, é uma espécie de não-arte, de não-música, um dadaísmo harmônico, uma negação musical. Sabem que são provocadores e que incomodam, porque há toda uma crítica à futilidade e excessiva sexualização de suas letras, e apelam justamente para esse sentido meio marginal. Isso é proposital, nenhum deles quer se arrogar virtuosismo. Não é isso o que fazem os sertanejos. Eles se consideram verdadeiramente ótimos, porque se cercam de bandas formadas por músicos renomados, usam equipamentos da mais alta qualidade, possuem motorhomes que mais parecem mansões e pagam caro para que especialistas em músicas de mercado componham seu repertório. O resultado são espetáculos onde tudo é grandioso, que ocupam enormes espaços, que consomem imensos recursos, que arrastam descomunais multidões, que auferem titânicas quantias, mas que, do ponto de vista puramente artístico, é vazio. Suas letras não dizem absolutamente nada, e não pelo fato de serem populares, mas por não estimularem o cérebro de ninguém. Uma comparação rápida:

Enquanto Cartola fala assim de amor...

Queixo-me às rosas
Mas que bobagem, as rosas não falam
Simplesmente as rosas exalam
O perfume que roubam de ti, ai

...e Orestes Barbosa fala assim...

A porta do barraco era sem trinco
Mas a lua furando o nosso zinco
Salpicava de estrelas nosso chão
E tu pisavas nos astros distraída
Sem saber que a ventura desta vida
É a cabrocha, o luar e o violão

... Simone e Simaria falam assim...

Adoro quando corro pra você, assustada
Você é o meu herói, matador de baratas
E depois de tudo a gente dá risada

... e Leandro e Leonardo falam assim:

Em vez de você ficar pensando nele
Em vez de você viver chorando por ele
Pense em mim, chore por mim
Liga pra mim, não, não liga pra ele

Compreendam novamente que minha crítica é absolutamente pessoal. Não precisam me dizer quem é mais rico, quem come mais quem, e que, enquanto eu filosofo pobre em um apartamento velho de mais de setenta anos, os precitados não só vivem abastados pela sua música, mas por inúmeras outras atividades que os tornam ainda mais nababos. Existirá quem os mesmos detestem, como filósofos ou professores, e isso não os empobrecerá nem um cruzado de mel coado, mas o fato é que sua produção não tem conteúdo algum. Por trás dos músicos renomados que eles contratam, dos equipamentos da mais avançada geração, das luzes mais ofuscantes de seus shows, há o vazio. Um autêntico ensopado de pedras preciosas, as mais caras de todas, que não alimentam ninguém. Uma forma elaboradíssima sem conteúdo algum. Um estilo sem substância.

Como eu disse lá no começo, e também como já contei neste texto, quando estou deitado e impossibilitado de dormir, sempre me resta a Filosofia, girando pela minha cabeça inerte. É que o furor me tira o sono, mais do que o próprio barulho, e aprofundar os pensamentos não deixa de ser uma maneira de tirar o foco do inferno sonoro. E começo a lembrar de quantas vezes uma bela forma oculta um conteúdo inane. Isso é especialmente válido na retórica. Quantas e quantas vezes um discurso empolado carrega uma construção que fica muito aquém do valor semântico em si. É exatamente o que vemos expresso nas sentenças atenuantes típicas da figura de linguagem conhecida como eufemismo, com uma de suas variações conhecida por circunlóquio, a palavra rodeada, como o próprio nome diz, e que serve para suavizar uma expressão que, dita diretamente, pode soar agressiva ou antipática. O caso mais clássico são aquelas palavras que são proibidas, como morte, câncer ou diabo (leiam mais aqui). Usa-se uma série de expedientes para não se falar a palavra maldita, e enriquece-se uma forma que tem um conteúdo muito mais simples e direto. O que é mais conciso de se dizer? Que fulano morreu ou que foi dormir com os anjos ao lado do pai?

Ainda aqui temos diferentes formas para expressar o mesmo conteúdo. O grande problema acontece quando damos estatuto de verdade para alguma expressão meramente por sua forma mais elaborada. É aqui que temos uma falácia, aquela que mencionei na abertura: o estilo sem substância.

Nesse tipo de falácia, a construção de uma estética é prioritária para o convencimento de quem ouve. Alguns dos casos mais clássicos são os dos políticos, que possuem uma espécie de “quintalzinho” moral de onde não devem sair, para fins de não ferir susceptibilidades do eleitorado. Isso inclui uma fala sem vacilos, um olhar direto, uma amplitude vasta de qualquer temática (ainda que sem substância), uma certa agressividade com adversários, a rejeição a temas polêmicos, um discurso favorável à moralidade reinante e um ensaboamento para assuntos que lhe são problemáticos. Essa espécie de gabarito é quase uma unanimidade nos tempos do Brasil República, que demonstrou um desgaste muito grande nos tempos atuais, embora a recentíssima eleição para prefeituras tenha demonstrado um regresso do político clássico ao poder. Talvez seja esse mais um dos fatores que ajudaram os dois últimos presidentes eleitos a chegar ao cargo: o discurso fora do padrão. Dilma Rousseff com sua fala confusa e o atual mandatário com seu estilo bronco são, de certa forma, mais um elemento do anticonvencionalismo de quem buscava algum ar de mudanças.

É claro que é perfeitamente possível falar argumentos válidos e sólidos com termos rebuscados. O grande problema acontece quando o estilo deixa a visão crítica obnubilada pela estética do discurso, e é mesmo uma tendência que sejamos seduzidos por palavras bonitas, pelo simples fato de que há duas instâncias lutando em nossa cabeça: a da veracidade do argumento em si e a da forma como ele é proferido. Às vezes esta última é que faz o jogo ser vencido. Ou perdido.

Bons ventos a todos!

Recomendações de audição:

Vamos só de música caipira hoje. Comecemos pelo esplêndido álbum de Almir Sater, somente instrumental (daí seu nome). Em alguns momentos, esse disco beira o folk prog, dada sua elaboração e habilidade na execução. Se alguém quiser saber como pode soar bem uma viola, é aqui. Sua música mais conhecida é Luzeiro, o tema de abertura do programa Globo Rural. Mas escutem com atenção à música Doma.

SATER, Almir. Instrumental. São Paulo: Som da Gente, 1985. 29:16 min. 1 LP.

Falei de Pena Branca & Xavantinho como a melhor dupla caipira no estilo antigo que conheço, embora sua carreira não tenha se desenvolvido exatamente na época do sertanejo raiz. A referência que faço aqui junta a eles outro grande da música sertaneja, Renato Teixeira. Desse jeito, mato três coelhos com uma só paulada. E é ao vivo, para não deixar dúvida do talento de ninguém. A versão em CD tem cinco musicas a mais. Muita atenção ao violino de Zé Gomes, um daqueles músicos ocultos que todo mundo deveria conhecer.

PENA BRANCA & XAVANTINHO; TEIXEIRA, Renato. Ao Vivo em Tatuí. São Paulo: Kuarup, 1992. [73:21]. 1 CD.

Por fim, vamos de Passoca, escrito assim mesmo. Não se trata exatamente de um artista do âmbito sertanejo, mas da Vanguarda Paulistana (de quem ainda falarei um dia), o movimento oitentista que chacoalhou o underground de Sampa. Coloquei aqui essa recomendação exatamente para mostrar um intercâmbio: um movimento rico lançando mão de uma música rica.

PASSOCA (Marco Antônio Villalba). Sonora Garoa. São Paulo: Barclay, 1984. 31:58 min. 1 LP.

* Para quem é mais jovem e nunca viu um desses, um três-em-um era um aparelho que era composto por um toca-discos, um toca-fitas e um receiver de rádio. Sua sonoridade era distribuída em caixas acústicas, normalmente duas, que eram instaladas separadamente, de forma a permitir o efeito estereofônico.

** Em teoria musical, um acorde necessita de, no mínimo, três notas para serem combinadas. É claro que não é possível constituir um acorde com apenas duas vozes, mas a sensação buscada nesse caso é de unicidade.

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