Olá!
Muitas pessoas relatam certas experiências suas e de seus
filhos que seguem a um padrão, digamos, diferente do esperado. Não é diferente
com meus filhos. O moleque dizia com surpreendente precisão, aos dois anos, que
lembrava como fazia para utilizar um boticão, ferramenta que ele nunca havia
visto até então. Já a menina alegava aos prantos que não queria crescer, porque
um homem havia roubado seus filhinhos. Bem, bem, bem... Há quem diga que sejam
eventos místicos, de recordação de outras vidas; há quem diga que seja o
inconsciente em plena operação, manifestando-se através das fantasias (que nem
sempre são positivas); há quem diga que são uma associação entre coincidências
e as interpretações imaturas que a criança faz confusamente, dada sua linguagem
neófita; e há quem diga que são coisas do demônio. O fato é que, no meu caso
particular, não tenho recordação de nada extraordinário, nenhuma espécie de
contato transcendental ou experiência mística. Nada que fuja estritamente às
leis da Física, a não ser uma. Vamos a ela.
Tenho uma boa parte da família de origem italiana. O ramal
no qual está inserida a matrona prima Nellyd, do alto de seus quase novantanni, possui uma campa no
cemitério da Quarta Parada, cercada por vários oriundi: Barrichelli, Franciosi, Garofali, Basile, Buono,
Sigismondi, Chiarello, Arduini e até os insólitos Sacco. Para quem não conhece
o cemitério, é um daqueles à moda antiga, repletos de capelinhas e com pouca
terra à mostra, que um dia esteve na periferia mais extrema da cidade, às
margens do córrego do Tatuapé (que está embaixo da avenida Salim Maluf). No
alto da entrada de cada capela, há o nome do respectivo patriarca, e a
dedicatória ao santo de preferência, sempre lembrando que estes cemitérios
nasceram em uma época na qual quase todo mundo no Brasil se declarava católico.
No caso específico da minha turma, o fundador e patriarca era o tio Antonio
(mas quem estreou mesmo foi a tia Rosa) e o padroeiro era o xará Santo Antonio.
A capela da família fica bem na esquininha de uma das
inúmeras ruelas, e na parte de trás fica encostada uma campa menor, hoje em dia
completamente largada, daquelas que são fechadas por portinhas de 80 X 80, onde
os defuntos são acomodados em gavetas visíveis.
Sobre as sepulturas, uma pequena laje com uma imagem
azulejada do Bom Pastor ao fundo, se eu não me engano. Na frente deste painel,
havia uma pequeníssima imagem de Nossa Senhora Aparecida, inserida em uma
igualmente minúscula igrejinha de portas abertas. Abaixo, um desenho bem porco,
só para vocês entenderem a dinâmica da coisa:
Pois então. Naqueles mesmos arredores, havia vários vasos
com aquelas plantas resistentes ao sol, incluindo uma suculenta de cachos conhecida
como dedinho-de-moça, incrivelmente comum naquelas cercanias. Enquanto minha
mãe e minha madrinha davam um trato na capela e faziam suas rezas e cantilenas
(hoje ambas estão em seu subterrâneo), eu e minha prima, então crianças,
enchíamos a mão dos bagos da precitada e íamos infernizar a pobre santa,
fazendo-a de alvo. Iconoclastas (direis)! Nada disso. Crianças, apenas
crianças.
Até aí, nada além de uma brincadeira sacrílega praticada por
dois perigosos hereges, mas belo dia aconteceu: cansada de ser alvejada, a
santa FECHOU as portinhas de igreja. Saímos correndo assustados. Contamos o
ocorrido, levaram-nos de volta, sob broncas: portas abertas, a santa em seu
lugar. Nova operação de tiro, novo fechamento, nova fuga, nova carraspana e
inédita desistência. Melhor deixar a santa quietinha no seu canto, velando por
seus mortos.
Volta e meia eu regressava ao assunto. Para ser mais
preciso, todas as vezes em que marcávamos de ir ao cemitério. Levava todo mundo
para trás da capela, mostrava a campa e a capelinha de Nossa Senhora. Nem minha
mãe, nem minha madrinha, nem minha prima lembravam-se de nada. Com relação às
duas primeiras, tudo bem. Os adultos não se ligam muito nas baboseiras das
crianças. Mas minha prima... ela é dois anos mais velha do que eu. Deveria ter
uma memória ainda mais presente do acontecimento. Não adianta, só eu me lembro
da história.
Seria um sonho vívido o suficiente para ser tomado como
verdade? Seria alguma história ouvida por aí e maquinada na minha cabeça? Seria
uma experiência mística real, que se apagou das demais memórias por ser
destinada somente a mim? Serão falsas memórias?
Falsas memórias? Isso é possível?
Sim, a memória é uma caixinha de surpresas, e seu funcionamento ainda é um mistério que precisa ser desvendado. Vou começar fazendo um pequeno apelo à literatura para ajudar a ilustrar o caso. É da obra Tartarin de Tarascon, do francês Alphonse Daudet, uma obra que retrata um protagonista que funde o idealismo de Dom Quixote com o materialismo de Sancho Pança. Vamos ler.
“Quase ter ido a Shangai ou ter ido lá, para Tarascon, era
exatamente a mesma coisa. De tanto se falar na viagem de Tartarin, acabou-se
por acreditar que dela voltava e à noite no clube todos aqueles senhores
pediam-lhe informações sobre a vida em Shangai, os costumes, o clima, o apoio,
o ‘Alto Comércio’. Tartarin, muito bem informado, dava prazerosamente os
detalhes pedidos e, por fim, o bravo homem não estava muito certo, ele mesmo,
de não ter ido a Shangai, de tal modo que, contando pela centésima vez o ataque
dos tártaros, dizia muito naturalmente: ‘Então fiz armar meus empregados,
hasteei a bandeira consular e pan! Pan! Das janelas sobre os tártaros’. Ouvindo
isso, o clube estremecia. (...) Entretanto, ouçam bem isso. Já é tempo de
entrarmos em acordo sobre essas reputações de mentirosos que a gente do Norte
fez aos do Sul. Não existem mentirosos no Sul, não mais em Marselha do que em
Nimes, do que em Toulouse, do que em Tarascon. Os homens do Sul não mentem,
enganam-se. Nem sempre diz a verdade, porém acredita dizê-la. Sua mentira não é
mentira, é uma espécie de miragem”.
Parece uma síntese da célebre frase atribuída a Goebbels,
ministro da propaganda do III Reich: “Uma mentira repetida mil vezes torna-se
verdade”. Mas não se trata exatamente disso, já que não é necessário que exista
deliberadamente uma intencionalidade para ocorrer um fenômeno desses. O que
podemos ter então?
Uma das teses mais significativas surgidas nos fins do
século XX é o paradigma reconstrutivista da memória. Os defensores desta escola
imaginam o seguinte processo para gravação e resgate das memórias:
Primeiramente, temos uma fase de aquisição, que nada mais é
que a observação do fato ou do objeto. Acontece quando lemos um livro,
assistimos a um jogo, vemos uma briga na rua, encontramos um bicho na salada...
Enfim, quando experienciamos um acontecimento qualquer. O próximo passo é fazer
a retenção de todos estes elementos na memória, a memorização propriamente
dita. É como se colocássemos todos os elementos observados em um armário. E,
finalmente, temos a recuperação das lembranças, a recordação. Acontece, como
podemos bem perceber, que o fato resgatado nunca é idêntico ao fato ocorrido.
Isso porque a memorização tende a ser feita pela divisão de elementos mais ou
menos significativos, fazendo com que a nossa metáfora do armário não seja
apropriada se o virmos como um guarda-roupas, que abrimos as portas e enfiamos
tudo lá dentro, inteirinho. É melhor pensarmos naqueles gaveteiros, onde
guardamos os elementos de um fato de acordo com sua importância. Os elementos
mais vivazes são guardados nas melhores gavetas, muito bem arrumados, lavados e
passados, enquanto os secundários vão para aquelas gavetas mais rotas, com o
fundo desmanchando, e lá não são postas – são arremessadas e amarfanhadas, como
bem fazem nossos queridos juvenis.
No processo de recordação, nossa mente faz uma reconstrução
dos elementos do fato. Busca a sua estrutura lógica e vai remexer nas gavetas
da memória. As memórias vivazes são aquelas em que não há dúvidas. Pensando no
bicho da salada, resgatamos que se tratava de acelga povoada por uma lagartinha,
e tudo se deu no bar do seo
Quinzinho. Já o dia da semana, a mesa em que sentávamos, que bebida
acompanhava, tudo isso é meio incerto. Estava guardado nas gavetas estragadas.
E sabemos mais de suas existências por conta da estrutura lógica do que pela
recuperação do dado em si. Em nosso exemplo, se almoçamos no seo Quinzinho, certamente foi em algum
dia da semana, porque não estávamos alijados do tempo; provavelmente bebemos
alguma coisa, por ser uma habitualidade. E, finalmente, é pouco provável que
tenhamos comido de pé; portanto, ocupamos uma mesa.
Pois muito bem. Elizabeth Loftus é uma psicóloga
norte-americana aderente ao paradigma reconstrutivista, dando a ele uma
característica intrigante: o processo de reconstrução pode ter falhas graves.
Basta, por exemplo, que se abra a gaveta errada. E pior. A cada recuperação, há
uma nova retenção, e, se os elementos vão para a gaveta errada, a nova memória
se perpetua sem reflexo na realidade. O que aconteceu de fato é uma coisa, o
que se recorda do fato é outra. É a síndrome da falsa memória.
Esse fenômeno é muito mais comum do que podemos supor.
Qualquer memória que esteja enevoada pode ser influenciada por algum item
externo. Prosseguindo no exemplo da lagarta, talvez tentemos lembrar o tal dia
da semana do ocorrido. Um amigo nosso diz que o seo Quinzinho costumava servir acelga na terça-feira, sugestionando
nossa memória. Antes embaciado, agora esse registro é nítido. Já não temos mais
dúvidas: foi numa terça-feira. Percebam que não estamos mentindo, achamos mesmo
que essa é a verdade, porque ela foi reconstruída dessa forma.
Mas esse é um detalhezinho ilustrativo, de pouca
importância. O que Loftus descobriu é que também as gavetas principais podem
ser mexidas, especialmente nas experiências traumáticas, nas situações de
pressão interna, em pacientes de psicoterapia e em experiências nas quais há
alterações de percepção, como a hipnose, os transes místicos e o consumo de
drogas. Buscou comprovar suas teses através de alguns experimentos, sendo o
mais conhecido de todos um que consistia no seguinte: para um grupo de
voluntários, foram levantados junto a pais e parentes próximos três
acontecimentos moderadamente traumáticos ocorridos por ocasião da infância de
cada um deles. Tais acontecimentos foram narrados aos participantes, mas com a
adição de mais um evento, que nunca existiu – a experiência de se perder em um
shopping. Para um melhor resultado, foi consultado aos parentes qual shopping
era frequentado pelos voluntários, com alguns detalhes arquitetônicos e lojas
normalmente visitadas – e se de fato não havia na história dos voluntários
nenhum acontecimento semelhante, é óbvio. Inquiridos sobre os quatro
acontecimentos, muitos dos voluntários disseram se recordar de todos, inclusive
do susto do shopping. Mas o melhor estava por vir. Foi informado aos
voluntários que um dos quatro eventos descritos era falso. Questionados sobre
qual desses eventos seria de mentira, 12% dos entrevistados reputaram o evento
do shopping como verdadeiro, indicando como falso um outro acontecimento que
ocorreu de fato!
O grande problema levantado por Loftus foi a validade de
provas obtidas por depoimentos, como as confissões, as acusações e os
testemunhos. Se de fato a memória é uma reconstrução, e esta pode se dar com
troca de elementos, isso implica em dizer que nenhum depoimento, visto
isoladamente, pode ser confiável.
Além disso, há uma ferramenta relevante para adulterar a
percepção que temos dos fatos: a maneira como a linguagem é utilizada na
evocação dos mesmos. Voltando ao caso da lagarta, é muito diferente recordar
alguém assim:
“Lembra de quando você encontrou aquele bichinho na salada?
Coitado do seo Quinzinho! Tão trabalhador...”
Ou assim:
“Lembra aquele dia que você encontrou aquela nojeira toda na
espelunca do porco do seo Quinzinho? Ave, ninguém merece...”
Ou ainda assim:
“Lembra daquele dia que o seo Quinzinho quis te sacanear?
Você não acha que ele botou aquele bicho na salada de propósito?”
Percebam o potencial transformador que cada uma das
colocações tem. A própria maneira de questionar já carrega consigo elementos
que influenciam uma resposta. Na primeira pergunta, há um viés que leva o fato
para o lado do acidente; já na segunda, para a negligência; e a terceira para a
intencionalidade. Isso pode ser transposto para um tribunal? Claro que pode. A
pergunta em si já pode carregar um juízo e indicar ao inquirido uma tendência,
que pode, inclusive, ser lesiva para si mesmo. Olhem como, no nosso exemplo, a
primeira pergunta aponta para a inocência, a segunda para a culpa e a terceira
para o dolo.
Alguém por aí se lembrou do meu texto sobre leitura fria?
Sim, incutir falsas memórias é mais uma técnica de engodar o cérebro humano, e
Elizabeth Loftus mandou bem em detectar o fenômeno. É importante levar em conta que não é qualquer recordação que se conseguirá manipular, e nem sem o conto do vigário vai encaixar. Mas, como eu bem disse, a linguagem pode ajudar a distorcer as ligações entre os fatos e objetos, e alguém que domine bem a técnica pode perfeitamente trazer elementos distintos à mente de alguém e ligá-los de maneira a produzir a recordação que ele quer. Como o processo não é tão simples de entender, posteriormente vou retomar
o assunto para tentar entender o que faz, a nível cerebral, ser possível as
trocas de gavetas, mas vou parar este texto por aqui, antes que fique chato
demais.
Recomendações de leitura:
Já que mencionei, segue a indicação do livro de Alphonse
Daudet. Tartarin de Tarascon é um livro no estilo comédia, mas que carrega em
si toda a angústia do ser humano diante da sua falta de coragem, e da
dissonância entre o sonhado e o vivido.
DAUDET, Alphonse. Tartarin
de Tarascon. Rio de Janeiro: Record, 1962.
Elizabeth Loftus é uma personagem polêmica, midiática e que
deu de frente com uma instituição muito relevante: o Judiciário. De toda forma,
é muito importante, é muito importante conhecer suas teses, porque o pensamento
funciona por contraposição, e mesmo instituições sólidas podem ser
perfeitamente contestadas. Como não há nada em português de sua autoria, vou
indicar dois livros. O primeiro é da Dra. Lilian Stein e seus colaboradores,
que abordam aspectos científicos e jurídicos da coisa:
STEIN,
Lilian et al. Falsas Memórias.
Fundamentos Científicos e suas aplicações clínicas e jurídicas. Porto Alegre:
Artes Médicas, 2010.
E o segundo é em inglês mesmo, fazer o quê?:
LOFTUS,
Elizabeth; KETCHAM, Katherine. The myth
of repressed memory. False memories and allegations of sexual abuse. New
York: St. Martin, 1996.
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