Olá!
Quem me acompanha aqui neste espaço sabe que há coisa de dois
anos minha mãe morreu, cabendo a mim correr atrás de todos os trâmites
necessários para velório, enterro, registro de óbito e inventário. Nem vou
ficar aqui arrolando uma por uma a quantidade insuportável de punhetações
burocráticas necessárias para dar cabo destas tarefas, ainda mais em um momento
em que você se encontra tão fragilizado. Parece que o cadáver fica exposto ao
vento enquanto você cumpre a série infindável de obrigações. Mas eu tive um
desavento adicional: pespegaram-me uma bela multa de trânsito. O motivo foi
trafegar em hora de rodízio com veículo de placa restrita, imputando-me quatro
preciosos pontos na carteira e lesando-me em injustos R$ 85,13. Não havia
dúvidas. Lá estava a fotografia da traseira do meu carro e o inequívoco horário
de 7:15.
Pagar ou recorrer? Reconheço que cometi o ilícito, como
restou bem comprovado, mas, dadas as circunstâncias, não seria perdoável a
conduta? Juntei meus documentos e resolvi impetrar o tal recurso.
Cópia da multa, cópia da CNH, cópia do óbito, cópia da nota
do cemitério, contendo o horário do velório, além da declaração do hospital
dizendo o horário em que o corpo da finada deixou o estabelecimento. Faltava
redigir o requerimento, e, para isso, contei com os bons préstimos do vindouro
causídico de casa, o filho Danillo. Ele removeu alguns “ni-qui-qui” que eu
coloquei na primeira versão e me explicou que a lei tem um “espírito”, um
intento (uma espécie de geist
hegeliano?), e que a mesma não pode ser interpretada duramente, só na letra. É
preciso compreender o que se quer regulamentar e se uma possível punição é
aplicável ou não. Afinal, mais do que cagar regras, a lei pretende distribuir
justiça.
No meu caso específico, a coisa estava no seguinte ponto: a
lei de rodízio tem um objetivo que flutua entre causas ambientais e fluxo do
trânsito, sendo que o meio utilizado é a restrição à circulação de veículos.
Pois bem. Estes objetivos reservam uma punição para quem a infringir.
Penaliza-se a desobediência, a distração, a negligência, e somente assim a lei
funciona. Se alguém se propõe a burlá-la, corre o risco de pagar. Acontece que
meu caso era o que conhecemos por motivo de força maior. É preciso resolver
tudo em um piscar de olhos, e não dá para deixar de lado um carro em uma hora
dessas, dependendo de caros táxis ou de lentos ônibus. E é aí que entra o tal
do espírito da lei. Ela não pretende restringir cegamente a utilização de um
meio que, mais do que facilitar, é imprescindível para desenroscar mais
rapidamente os liames legais que nos fazem tropeço em momento debilitante. Com
isso, ganhei o recurso!
No que baseei minha defesa? No ponto fora da curva. Fugi de
uma situação em que a regra geral sugeriria a punição, mas o fato é que as
exceções existem, e quando elas são negadas caímos em uma falácia chamada de Dicto Simpliciter, ou falácia do
acidente.
Pegar a contramão é, às vezes, a única coisa a fazer |
Dicto Simpliciter é a redução do termo latino dicto secundum quid ad dictum simpliciter,
ou algo como “da afirmação qualificada para a não-qualificada”. Em resumo,
trata-se de uma generalização tomada como obrigatória quando na verdade ela não
é.
E o termo “falácia do acidente”? Tá meio óbvio, né? Acidente
é tudo aquilo que é casual, que escapa a uma regra geral, como foi exatamente o
caso que mencionei no começo deste texto. Afinal de contas, não é todo dia que
você tem que sair apressado de casa para enterrar sua mãe. Mas, seguindo a
caneta dura da regra geral, eu teria que ser multado. Dá para perceber como é
maléfica a inexistência de exceções?
Acontece que, pelo fato de existir uma regra, o dicto simpliciter somente é aplicável
quando se tratar de uma exceção justificável. Mantendo o foco na questão da
lei, podemos lembrar que são apenáveis os comportamentos desviantes, ou seja,
aqueles que escapam à norma – e que constituem exceções. Ao furar o rodízio, já
estou caindo na exceção, e a penalidade é plenamente justificável, gostemos ou
não. É preciso, portanto, que haja a exceção da exceção; no caso, o motivo de
força maior, para que a lei geral não seja aplicada.
Esse tipo de discussão pode ser ampliado imensamente. Ainda
no campo da legalidade e das cominações, podemos encontrar muitos paradoxos que
nos fazem pensar insistentemente em como a própria defesa dos direitos podem
largamente usar falácias com caras legítimas. Um exemplozinho básico:
“Art. 5º - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade, nos termos seguintes (...)”
Constituição Federal (1988) – grifo meu
Os jurisconsultos chamam
isso de princípio da isonomia, e é uma das vigas de sustentação da democracia.
No entanto, o Código de Processo Penal estabelece, desde 1941, em seu artigo
295, o instituto da prisão especial, onde são garantidas internações
provisórias apartadas para uma série de cidadãos, conforme se pode ler abaixo:
“Art. 295 – Serão
recolhidos a quartéis ou a prisão especial, à disposição da autoridade
competente, quando sujeitos a prisão antes de condenação definitiva:
I - os ministros
de Estado;
II - os governadores ou
interventores de Estados ou Territórios, o prefeito do Distrito Federal, seus
respectivos secretários, os prefeitos municipais, os vereadores e os chefes de
Polícia;
III - os membros
do Parlamento Nacional, do Conselho de Economia Nacional e das Assembléias
Legislativas dos Estados;
IV - os cidadãos
inscritos no "Livro de Mérito";
V – os oficiais das Forças
Armadas e os militares dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios;
VI - os
magistrados;
VII - os
diplomados por qualquer das faculdades superiores da República;
VIII - os
ministros de confissão religiosa;
IX - os ministros
do Tribunal de Contas;
X - os cidadãos
que já tiverem exercido efetivamente a função de jurado, salvo quando excluídos
da lista por motivo de incapacidade para o exercício daquela função;
XI - os delegados de polícia
e os guardas-civis dos Estados e Territórios, ativos e inativos”.
Ok.
Não vou fazer grandes juízos legais, vou só fazer algumas elucubrações,
dividindo a lista em três. No primeiro caso, mesmo constituindo exceções ao
regramento constitucional, há funções públicas descritas nessa lei em que se pode
justificar a prisão especial. São eles:
(...)
V – os oficiais das Forças Armadas e os militares
dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios;
VI - os magistrados;
(...)
X - os cidadãos que já tiverem exercido
efetivamente a função de jurado, salvo quando excluídos da lista por motivo de
incapacidade para o exercício daquela função;
Não se trata de propiciar
conforto ou de apartar do convívio dos demais presos a estes cidadãos, mas é
uma questão de segurança mesmo, dada a característica coativa de suas funções.
Falando genericamente, presidiários não têm essencialmente nada contra
universitários ou sacerdotes, mas têm contra juízes, promotores, jurados e
policiais. A prevenção visa proteger uma classe de cidadãos que se ocupam de funções
coercitivas, que poderiam sofrer injúrias e ameaças ainda que não condenados, e
não apenas os indivíduos em si. Há o privilégio, mas este parece ser
justificável.
Na segunda categoria, há
aqueles casos dúbios. São eles:
“I - os ministros de Estado;
II - os governadores ou interventores de Estados
ou Territórios, o prefeito do Distrito Federal, seus respectivos secretários,
os prefeitos municipais, os vereadores e (...);
III - os membros do Parlamento
Nacional, do Conselho de Economia Nacional e das Assembléias Legislativas dos
Estados;
(...)
IX - os ministros do Tribunal de
Contas;”
Nestes casos, é discutível
se a proteção é justificável ou não. Legisladores fazem leis e governantes as aplicam, de modo a poder desagradar a carceragem em geral, mas não são coisas
obrigatórias na função. Um deputado pode passar quarenta anos na Câmara sem
escrever uma única linha sobre legislação penal, e, mesmo assim, se aproveitar
desta lei. Por outro lado, é possível alegar que, sendo a prisão provisória,
não há necessariamente a perda do cargo, e o dito cujo pode sofrer coações
irresistíveis no período em que se encontrar alojado, caso se misture aos
presos da plebe rude. Enfim, são as intermináveis teses jurídicas, das quais
pouco me familiarizo e apenas mando meus palpites.
E, finalmente, têm também aqueles
que... bem...
“(...)
Por que estas três classes
de cidadãos caem na exceção da lei? Boa pergunta. Mas temos algumas dicas. A
lei em questão foi promulgada em 1941, ocasião em que o acesso ao ensino
superior era um sonho praticamente inalcançável para o povão. E, neste caso,
não se tratava da plebe mais ignara (valendo-se da expressão de Stanislaw Ponte
Preta). Mesmo os remediados tinham pouco acesso à universidade, que era ocupada
predominantemente por classes abastadas. Era o tempo em que havia poucos
estabelecimentos e poucas vagas, com custo altíssimo nas escolas particulares e
com vestibular intransponível nas públicas. Financiamento? Rá, rá, rá... Só do
papai. E como papai não trabalhava nas fábricas, nem arava no campo, o funil
tinha um bocal muito estreito. Ser diplomado, portanto, era praticamente um
distintivo menos de saber, e mais de classe social. Livrar a cara dos
formados da prisão comum significa que, por tabela, o conteúdo desta lei
traz proteção clara para um determinado segmento da sociedade, em detrimento
dos demais. Segundo ponto: sendo o Brasil um país não oficialmente laico na
ocasião, a proteção dada aos ministros de confissão religiosa dava, por
consequência, uma maior cobertura aos sacerdotes, mas também extensível
a outros credos, o que se mantém até hoje. E o misterioso “Livro de Mérito” é
uma remanescência dos tempos da nobiliarquia. Ao invés de dar o título de barão
ou marquês para determinado conspícuo, insere-se o nome do indigitado em tal
livro, que, em rapidíssima consulta, percebi que só serve para dar prisão
especial e fazer afagos no ego.
E concluímos, com isso, que
tais alíneas foram inseridas claramente por questões historicamente elitistas,
porque na época da proclamação desta lei eram formadas por indivíduos das
castas mais altas da população. Não há outra justificativa para alguém receber
tal privilégio, bem como ser mantida em vigor uma lei que está em flagrante
oposição a um dispositivo pétreo constitucional.
É
possível perceber como o dicto
simpliciter depende de interpretação? Em uma única lei podemos encontrar
exceções injustificáveis, justificáveis e discutíveis, dependendo do ângulo com
o qual enxerguemos a situação. Vejam como a Constituição estabelece a regra e o
CPP a exceção. Para alguns juristas, este desacordo faz com que a disposição do
Código seja nula; para outros, a exceção é válida. Pois é. A questão da falácia
também tem sua face de entendimento e opinião.
Mas a coisa pode se
complicar muito. Questões como pena de morte, aborto e eutanásia
vão de encontro à afirmativa de que a vida é um valor absoluto, um direito
inalienável ou uma dádiva divina. E provam como a falácia do acidente muitas
vezes depende menos de lógica e mais de convicção de quem a profere. Quando
campeia por sendas polêmicas, é difícil atribuir a uma afirmação um valor de
verdade. E daí uma rede intrincada de argumentos contrapostos se estabelece,
sem chegar a conclusão alguma. Por isso, o dicto
simpliciter, como falácia, nem sempre tem configuração confortável.
Mas, para o gáudio daqueles
que se sentem incomodados diante de uma aporia, vou colocar aqui um exemplo
canônico de falácia do acidente, vindo direto da antiguidade clássica. Eis um
trecho da República, de Platão:
“Céfalo – (...)
Palavras maravilhosas. Devido a isto, tenho as riquezas em grande apreço, não
para todos, mas somente para aqueles homens moderados e cautelosos. Jamais
enganar alguém ou mentir, ainda que inadvertidamente, nem ser devedor, quer de
sacrifícios aos deuses, quer de dinheiro a uma pessoa, e depois falecer sem
nada recear. Para isso, a riqueza é de grande serventia. Existem várias outras
vantagens. Porém, mais do que tudo, ó Sócrates, é por causa desta finalidade
que eu considero a riqueza utilíssima para o homem judicioso.
Sócrates — As tuas
são palavras maravilhosas, ó Céfalo. Mas essa virtude de justiça resume-se em
proferir a verdade e em restituir o que se tomou de alguém, ou podemos dizer
que às vezes é correto e outras vezes incorreto fazer tais coisas? Vê este
exemplo: se alguém, em perfeito juízo, entregasse armas a um amigo, e depois,
havendo se tomado insano, as exigisse de volta, todos julgariam que o amigo não
lhe as deveria restituir, nem mesmo concordariam em dizer toda a verdade a um
homem enlouquecido.
Céfalo — Estou de
acordo.
Sócrates — Como
vês, justiça não significa ser sincero e devolver o que se tomou”.
Temos aqui o debate entre
Sócrates, Céfalo e Polemarco, que tentam chegar à conclusão do que seja
justiça. É justo restituir a alguém tudo o que lhe foi tomado em empréstimo? Se
respondermos que sim, incondicionalmente, cairemos fatalmente na falácia do
acidente. Imagine uma metralhadora na mão de um psicótico, dono do mortífero
aparelho. Desta forma, podemos determinar a verdade daquela famosa assertiva de
que não há regra sem exceção, a não ser que queiramos desprezar o risco de
levar chumbo. A rigidez de pensamento pode até parecer uma necessidade lógica,
mas é uma atitude que dá de cara com o bom senso.
Recomendação de leitura:
Sabe aqueles textos que às
vezes desprezamos, mas que são alguns dos pilares daquilo que pretendemos
entender? É exatamente este o caso da República de Platão. Parece extemporâneo,
arcaico, chato, mas não se estuda Filosofia sem conhecer as obras onde
floresceram temas como o idealismo, a figura central do homem, a dialética, os
temas mais caros ao conhecimento da época. Vale a pena ler, nem que seja só
pela alegoria da caverna.
PLATÃO. A República. São Paulo: Martin Claret, 2000.
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