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terça-feira, 24 de maio de 2016

Pequeno guia das grandes falácias - 25º tomo: o dicto simpliciter (falácia do acidente) - e uma discussãozinha sobre as exceções da lei

Olá!


Quem me acompanha aqui neste espaço sabe que há coisa de dois anos minha mãe morreu, cabendo a mim correr atrás de todos os trâmites necessários para velório, enterro, registro de óbito e inventário. Nem vou ficar aqui arrolando uma por uma a quantidade insuportável de punhetações burocráticas necessárias para dar cabo destas tarefas, ainda mais em um momento em que você se encontra tão fragilizado. Parece que o cadáver fica exposto ao vento enquanto você cumpre a série infindável de obrigações. Mas eu tive um desavento adicional: pespegaram-me uma bela multa de trânsito. O motivo foi trafegar em hora de rodízio com veículo de placa restrita, imputando-me quatro preciosos pontos na carteira e lesando-me em injustos R$ 85,13. Não havia dúvidas. Lá estava a fotografia da traseira do meu carro e o inequívoco horário de 7:15.

Pagar ou recorrer? Reconheço que cometi o ilícito, como restou bem comprovado, mas, dadas as circunstâncias, não seria perdoável a conduta? Juntei meus documentos e resolvi impetrar o tal recurso.

Cópia da multa, cópia da CNH, cópia do óbito, cópia da nota do cemitério, contendo o horário do velório, além da declaração do hospital dizendo o horário em que o corpo da finada deixou o estabelecimento. Faltava redigir o requerimento, e, para isso, contei com os bons préstimos do vindouro causídico de casa, o filho Danillo. Ele removeu alguns “ni-qui-qui” que eu coloquei na primeira versão e me explicou que a lei tem um “espírito”, um intento (uma espécie de geist hegeliano?), e que a mesma não pode ser interpretada duramente, só na letra. É preciso compreender o que se quer regulamentar e se uma possível punição é aplicável ou não. Afinal, mais do que cagar regras, a lei pretende distribuir justiça.

No meu caso específico, a coisa estava no seguinte ponto: a lei de rodízio tem um objetivo que flutua entre causas ambientais e fluxo do trânsito, sendo que o meio utilizado é a restrição à circulação de veículos. Pois bem. Estes objetivos reservam uma punição para quem a infringir. Penaliza-se a desobediência, a distração, a negligência, e somente assim a lei funciona. Se alguém se propõe a burlá-la, corre o risco de pagar. Acontece que meu caso era o que conhecemos por motivo de força maior. É preciso resolver tudo em um piscar de olhos, e não dá para deixar de lado um carro em uma hora dessas, dependendo de caros táxis ou de lentos ônibus. E é aí que entra o tal do espírito da lei. Ela não pretende restringir cegamente a utilização de um meio que, mais do que facilitar, é imprescindível para desenroscar mais rapidamente os liames legais que nos fazem tropeço em momento debilitante. Com isso, ganhei o recurso!

No que baseei minha defesa? No ponto fora da curva. Fugi de uma situação em que a regra geral sugeriria a punição, mas o fato é que as exceções existem, e quando elas são negadas caímos em uma falácia chamada de Dicto Simpliciter, ou falácia do acidente.

Pegar a contramão é, às vezes, a única coisa a fazer

Dicto Simpliciter é a redução do termo latino dicto secundum quid ad dictum simpliciter, ou algo como “da afirmação qualificada para a não-qualificada”. Em resumo, trata-se de uma generalização tomada como obrigatória quando na verdade ela não é.

E o termo “falácia do acidente”? Tá meio óbvio, né? Acidente é tudo aquilo que é casual, que escapa a uma regra geral, como foi exatamente o caso que mencionei no começo deste texto. Afinal de contas, não é todo dia que você tem que sair apressado de casa para enterrar sua mãe. Mas, seguindo a caneta dura da regra geral, eu teria que ser multado. Dá para perceber como é maléfica a inexistência de exceções?

Acontece que, pelo fato de existir uma regra, o dicto simpliciter somente é aplicável quando se tratar de uma exceção justificável. Mantendo o foco na questão da lei, podemos lembrar que são apenáveis os comportamentos desviantes, ou seja, aqueles que escapam à norma – e que constituem exceções. Ao furar o rodízio, já estou caindo na exceção, e a penalidade é plenamente justificável, gostemos ou não. É preciso, portanto, que haja a exceção da exceção; no caso, o motivo de força maior, para que a lei geral não seja aplicada.

Esse tipo de discussão pode ser ampliado imensamente. Ainda no campo da legalidade e das cominações, podemos encontrar muitos paradoxos que nos fazem pensar insistentemente em como a própria defesa dos direitos podem largamente usar falácias com caras legítimas. Um exemplozinho básico:

“Art. 5º - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes (...)”
Constituição Federal (1988) – grifo meu

Os jurisconsultos chamam isso de princípio da isonomia, e é uma das vigas de sustentação da democracia. No entanto, o Código de Processo Penal estabelece, desde 1941, em seu artigo 295, o instituto da prisão especial, onde são garantidas internações provisórias apartadas para uma série de cidadãos, conforme se pode ler abaixo:

“Art. 295 – Serão recolhidos a quartéis ou a prisão especial, à disposição da autoridade competente, quando sujeitos a prisão antes de condenação definitiva:

I - os ministros de Estado;
II - os governadores ou interventores de Estados ou Territórios, o prefeito do Distrito Federal, seus respectivos secretários, os prefeitos municipais, os vereadores e os chefes de Polícia;
III - os membros do Parlamento Nacional, do Conselho de Economia Nacional e das Assembléias Legislativas dos Estados;
IV - os cidadãos inscritos no "Livro de Mérito";
V – os oficiais das Forças Armadas e os militares dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios;
VI - os magistrados;
VII - os diplomados por qualquer das faculdades superiores da República;
VIII - os ministros de confissão religiosa;
IX - os ministros do Tribunal de Contas;
X - os cidadãos que já tiverem exercido efetivamente a função de jurado, salvo quando excluídos da lista por motivo de incapacidade para o exercício daquela função;
XI - os delegados de polícia e os guardas-civis dos Estados e Territórios, ativos e inativos”.

Ok. Não vou fazer grandes juízos legais, vou só fazer algumas elucubrações, dividindo a lista em três. No primeiro caso, mesmo constituindo exceções ao regramento constitucional, há funções públicas descritas nessa lei em que se pode justificar a prisão especial. São eles:

“II – (...) os chefes de Polícia;
(...)
V – os oficiais das Forças Armadas e os militares dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios;
VI - os magistrados;
(...)
X - os cidadãos que já tiverem exercido efetivamente a função de jurado, salvo quando excluídos da lista por motivo de incapacidade para o exercício daquela função;
XI - os delegados de polícia e os guardas-civis dos Estados e Territórios, ativos e inativos”.

Não se trata de propiciar conforto ou de apartar do convívio dos demais presos a estes cidadãos, mas é uma questão de segurança mesmo, dada a característica coativa de suas funções. Falando genericamente, presidiários não têm essencialmente nada contra universitários ou sacerdotes, mas têm contra juízes, promotores, jurados e policiais. A prevenção visa proteger uma classe de cidadãos que se ocupam de funções coercitivas, que poderiam sofrer injúrias e ameaças ainda que não condenados, e não apenas os indivíduos em si. Há o privilégio, mas este parece ser justificável.

Na segunda categoria, há aqueles casos dúbios. São eles:

“I - os ministros de Estado;
II - os governadores ou interventores de Estados ou Territórios, o prefeito do Distrito Federal, seus respectivos secretários, os prefeitos municipais, os vereadores e (...);
III - os membros do Parlamento Nacional, do Conselho de Economia Nacional e das Assembléias Legislativas dos Estados;
(...)
IX - os ministros do Tribunal de Contas;”

Nestes casos, é discutível se a proteção é justificável ou não. Legisladores fazem leis e governantes as aplicam, de modo a poder desagradar a carceragem em geral, mas não são coisas obrigatórias na função. Um deputado pode passar quarenta anos na Câmara sem escrever uma única linha sobre legislação penal, e, mesmo assim, se aproveitar desta lei. Por outro lado, é possível alegar que, sendo a prisão provisória, não há necessariamente a perda do cargo, e o dito cujo pode sofrer coações irresistíveis no período em que se encontrar alojado, caso se misture aos presos da plebe rude. Enfim, são as intermináveis teses jurídicas, das quais pouco me familiarizo e apenas mando meus palpites.

E, finalmente, têm também aqueles que... bem...

“(...)
IV - os cidadãos inscritos no ‘Livro de Mérito’;
(...)
VII - os diplomados por qualquer das faculdades superiores da República;
VIII - os ministros de confissão religiosa (...)”

Por que estas três classes de cidadãos caem na exceção da lei? Boa pergunta. Mas temos algumas dicas. A lei em questão foi promulgada em 1941, ocasião em que o acesso ao ensino superior era um sonho praticamente inalcançável para o povão. E, neste caso, não se tratava da plebe mais ignara (valendo-se da expressão de Stanislaw Ponte Preta). Mesmo os remediados tinham pouco acesso à universidade, que era ocupada predominantemente por classes abastadas. Era o tempo em que havia poucos estabelecimentos e poucas vagas, com custo altíssimo nas escolas particulares e com vestibular intransponível nas públicas. Financiamento? Rá, rá, rá... Só do papai. E como papai não trabalhava nas fábricas, nem arava no campo, o funil tinha um bocal muito estreito. Ser diplomado, portanto, era praticamente um distintivo menos de saber, e mais de classe social. Livrar a cara dos formados da prisão comum significa que, por tabela, o conteúdo desta lei traz proteção clara para um determinado segmento da sociedade, em detrimento dos demais. Segundo ponto: sendo o Brasil um país não oficialmente laico na ocasião, a proteção dada aos ministros de confissão religiosa dava, por consequência, uma maior cobertura aos sacerdotes, mas também extensível a outros credos, o que se mantém até hoje. E o misterioso “Livro de Mérito” é uma remanescência dos tempos da nobiliarquia. Ao invés de dar o título de barão ou marquês para determinado conspícuo, insere-se o nome do indigitado em tal livro, que, em rapidíssima consulta, percebi que só serve para dar prisão especial e fazer afagos no ego.

E concluímos, com isso, que tais alíneas foram inseridas claramente por questões historicamente elitistas, porque na época da proclamação desta lei eram formadas por indivíduos das castas mais altas da população. Não há outra justificativa para alguém receber tal privilégio, bem como ser mantida em vigor uma lei que está em flagrante oposição a um dispositivo pétreo constitucional.

É possível perceber como o dicto simpliciter depende de interpretação? Em uma única lei podemos encontrar exceções injustificáveis, justificáveis e discutíveis, dependendo do ângulo com o qual enxerguemos a situação. Vejam como a Constituição estabelece a regra e o CPP a exceção. Para alguns juristas, este desacordo faz com que a disposição do Código seja nula; para outros, a exceção é válida. Pois é. A questão da falácia também tem sua face de entendimento e opinião.

Mas a coisa pode se complicar muito. Questões como pena de morte, aborto e eutanásia vão de encontro à afirmativa de que a vida é um valor absoluto, um direito inalienável ou uma dádiva divina. E provam como a falácia do acidente muitas vezes depende menos de lógica e mais de convicção de quem a profere. Quando campeia por sendas polêmicas, é difícil atribuir a uma afirmação um valor de verdade. E daí uma rede intrincada de argumentos contrapostos se estabelece, sem chegar a conclusão alguma. Por isso, o dicto simpliciter, como falácia, nem sempre tem configuração confortável.

Mas, para o gáudio daqueles que se sentem incomodados diante de uma aporia, vou colocar aqui um exemplo canônico de falácia do acidente, vindo direto da antiguidade clássica. Eis um trecho da República, de Platão:

Céfalo – (...) Palavras maravilhosas. Devido a isto, tenho as riquezas em grande apreço, não para todos, mas somente para aqueles homens moderados e cautelosos. Jamais enganar alguém ou mentir, ainda que inadvertidamente, nem ser devedor, quer de sacrifícios aos deuses, quer de dinheiro a uma pessoa, e depois falecer sem nada recear. Para isso, a riqueza é de grande serventia. Existem várias outras vantagens. Porém, mais do que tudo, ó Sócrates, é por causa desta finalidade que eu considero a riqueza utilíssima para o homem judicioso.

Sócrates — As tuas são palavras maravilhosas, ó Céfalo. Mas essa virtude de justiça resume-se em proferir a verdade e em restituir o que se tomou de alguém, ou podemos dizer que às vezes é correto e outras vezes incorreto fazer tais coisas? Vê este exemplo: se alguém, em perfeito juízo, entregasse armas a um amigo, e depois, havendo se tomado insano, as exigisse de volta, todos julgariam que o amigo não lhe as deveria restituir, nem mesmo concordariam em dizer toda a verdade a um homem enlouquecido.

Céfalo — Estou de acordo.

Sócrates — Como vês, justiça não significa ser sincero e devolver o que se tomou”.

Temos aqui o debate entre Sócrates, Céfalo e Polemarco, que tentam chegar à conclusão do que seja justiça. É justo restituir a alguém tudo o que lhe foi tomado em empréstimo? Se respondermos que sim, incondicionalmente, cairemos fatalmente na falácia do acidente. Imagine uma metralhadora na mão de um psicótico, dono do mortífero aparelho. Desta forma, podemos determinar a verdade daquela famosa assertiva de que não há regra sem exceção, a não ser que queiramos desprezar o risco de levar chumbo. A rigidez de pensamento pode até parecer uma necessidade lógica, mas é uma atitude que dá de cara com o bom senso.

Recomendação de leitura:

Sabe aqueles textos que às vezes desprezamos, mas que são alguns dos pilares daquilo que pretendemos entender? É exatamente este o caso da República de Platão. Parece extemporâneo, arcaico, chato, mas não se estuda Filosofia sem conhecer as obras onde floresceram temas como o idealismo, a figura central do homem, a dialética, os temas mais caros ao conhecimento da época. Vale a pena ler, nem que seja só pela alegoria da caverna.

PLATÃO. A República. São Paulo: Martin Claret, 2000.

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