Vocês conhecem o Parque da Água Branca? Ele
nasceu como uma antiga escola de práticas agrícolas, o que, convenhamos,
tornou-se totalmente anacrônico em uma cidade onde só florescem prédios e
violência, mas que foi transformado em um interessante atrativo, porque há
algumas características que o distanciam de um parque convencional. Por
exemplo: não há amplos gramados e quadras, mas um enorme picadeiro onde é
praticada equitação. A quantidade relativamente pequena de árvores é compensada
por pérgolas e bambuzais, além de uma infinidade de galinhas, patos, marrecos,
gansos e até mesmo alguns pavões. Seus espaços recebem clara intervenção
humana, e muitas feiras são realizadas em seus galpões, incluindo uma de
produtos orgânicos, na qual me encontro defronte, neste exato momento, enquanto
aguardo em um misto de contemplação e angústia ao término das compras de minha
patroa e de minha patroinha.
Por falar nela, devo dizer que se chama Deborah,
que significa “abelha” em hebraico. Não quis homenagear nossas simpáticas
himenópteras nem a juíza cujas aventuras foram narradas na Bíblia, apenas
gostei do nome. Mas há uma coincidência contingencial: enquanto aguardo a
Deborah, estou rodeado de abelhas, atraídas pela barraca de doces mascavos aqui
ao meu lado. Olhem só essa humilde, certificada e mal fotografada jataizinha...
... que batalha incansavelmente por algumas
poucas e deliciosas partículas de pólen. Diante disso, resolvi falar sobre
elas, ou melhor, usá-las como ponte para falar sobre outra temática.
Imaginem uma pujante, vanguardista, altaneira,
vigorosa, venerável, álacre, denodada, auspiciosa, sobranceira, proeminente, altiva,
egrégia, insígne, colenda, notável colmeia. Esta é habitada por expressivo
enxame de laboriosas abelhas, com os mesmos qualificativos e predicados já
mencionados. Vista de uma perspectiva externa, a colmeia é o máximo do sonho
positivista de ordem e progresso (do amor nem tanto, não há tempo para isso em
ambiente tão célere). Uma peça arquitetônica de perfeição modelar, um
verdadeiro ideal que habita na forma aristotélica que a define não como um
amontoado de cera, mas como legítima obra de engenharia natural. Todos os
sistemas parecem funcionar a contento, porque a abundância era evidente, dando
mostras de que todo aquele universo era tremendamente bem governado.
No entanto, ao deslocar o olhar para as abelhas como
indivíduos, percebia-se algo inusitado: imperava entre elas a inconstância, a
inquietação e a insaciedade. Todo o trabalho destes milhares de seres era
insuficiente para abastecer de benesses uma pequena cúpula formada por abelhas
privilegiadas.
Havia lá uma inaparente divisão social ao observador
externo. Essa divisão era muito bem marcada, mas todas as classes viviam com um
mesmo objetivo: a ascensão social. Para as abelhas mais ricas, a meta era
alcançar um conforto cada vez maior, enquanto para as camadas de baixo a
esperança consistia em galgar a escada para a camada rica, e, aí sim, almejar o
mesmo conforto e inoperância. Só que a penúria destas classes mais baixas era
mantida a ferro e a fogo pelas camadas superiores, cientes de que o bolo
monetário mais dividido traria um pouco mais de felicidade para as mais pobres
e muito menos regalias para seus membros. Desta forma, as abelhas proletárias
se viam condenadas a conviver com as parcas disponibilidades que o suor de seu
rosto conseguia obter, enquanto as nababescas irmãs afortunadas viviam no ócio
e no luxo.
Havia ainda aquelas que viviam em uma espécie de submundo,
se alimentando de toda espécie de miséria para obter ganho e status. Viviam de
atividades subversivas e transgressivas da ordem emanada pelo governo da
colmeia: aproveitavam de jovens e viúvas, usavam das viciadas em jogos,
iniciavam muitas abelhas em atividades sujas e exploravam seu trabalho até
ultrapassar os limites da dignidade apícola. É bem verdade que, desta forma,
traziam o benefício de ofertar trabalho àquelas que foram expurgadas pelo
sistema trabalhista daquele local, dando-lhes algum tipo de “ocupação”, mas o
faziam apenas porque os líderes da colmeia faziam vistas grossas (e às vezes
até mesmo usufruíam) às tais atividades.
Em uma categoria correlata, havia aquelas abelhas que viviam
da ilusão do povo, como as abelhas-sacerdotes, que através da fé cega de certo
séquito obtinham rendas e ócio suficiente para poderem ser inúteis à vontade.
Sua tarefa básica era inculcar culpa nas fiéis para que a vida delas se
tornasse um constante expurgo de pseudo-pecados, que eram basicamente compostos
de reparações devidas a seus deuses através da prestação de serviços aos lídimos
representantes, ora, as próprias abelhas-sacerdotes. Desta forma, ao redor da
instituição religiosa, formava-se um autêntico feudo sustentado pela dor.
Todas as abelhas que possuíam algum nível que as retirassem
da base da pirâmide social agiam de forma a obter maior proveito próprio. As
abelhas-advogadas, por exemplo, cuidavam não de obter justiça para suas
clientes, mas de estender as causas ao máximo das economias disponíveis; as
abelhas-médicas não procuravam curar as pacientes, mas tão-somente prolongar as
doenças até os limites de suas forças, receitando remédios inócuos; e, mesmo
quando os remédios eram receitados com seriedade, as abelhas-boticárias
tratavam de encher suas pílulas com farinha, seus xaropes com açúcar e seus
elixires com aguardente ordinária - princípio ativo, que é bom, muito pouco; as
abelhas-soldado, ao invés de buscar a defesa da lei e da ordem no interior da
colmeia, preferiam viver de surrupiar e extorquir justamente aquelas que
deveriam defender, a coletividade; haviam abelhas-soldado sérias, é bem
verdade. Mas estas invariavelmente se viam mutiladas pelo combate e pela defesa
do território, e eram sepultadas sem grandes honras ou aposentadas com baixo
ganho. Mas os postos de comando eram ocupados por aquelas mesmas abelhas que
mencionei anteriormente, que nunca souberam o que era uma frente de batalha e a
quem era granjeada imensa láurea, com medalhas e comendas, dentre outras
honrarias.
Apesar disso, o crime era punido com exemplar rigor pelas
abelhas-magistradas. Quer dizer, os crimes cometidos pela prole, a quem eram
imputadas as principais causas das mazelas. Uma abelha-operária que ousasse
subtrair uma pequena porção de alimento por incapacidade de obtê-la através de
seus meios legais era levada à forca. Isso para defender a propriedade da nata
(em uma colmeia, poderíamos chamar de geleia real? – argh!), que deve ser
defendida com eficácia pelo Estado, com o fim de evitar a desordem. Já os
crimes cometidos pelas abelhas de escol... Bem, não se pode ser perfeito em tudo.
E, no final das contas, é preciso levar em conta o status psicológico do
acusado, suas atenuantes, seus atos falhos... Tudo isso é digno de perdão, não
é mesmo?
Mas é preciso observar tudo por um outro lado. Mesmo com
todos estes desajustes individuais, a sociedade da colmeia formava uma máquina
que operava muitíssimo bem. Se é verdade que os comandantes viviam em um luxo
quase sórdido, também é verdade que esse mesmo luxo fornecia trabalho para
muitas abelhas. As abelhas-artesãs tinham na elite verdadeiros mecenas que
financiavam suas obras, e estas se tornavam cada vez mais criativas, tentando
superar a obra umas das outras. Os aposentos cada vez mais chiques empregavam
abelhas-marceneiras, abelhas-tapeceiras, abelhas-costureiras. O serviço das
madames fazia com que as abelhas-mordomo, abelhas-camareiras,
abelhas-cozinheiras e outras tivessem seu sustento. As abelhas-sacerdote
reuniam um sem-número de abelhas-auxiliares para manter o serviço dos templos. Os
emaranhados de leis a partir das quais as abelhas-magistradas julgavam e as
abelhas-advogadas litigavam traziam trabalho para as abelhas-escribas,
abelhas-carregadoras-de-processos, abelhas-editoras, abelhas-revisoras e muitas
mais. Assim, mesmo as abelhas mais humildes ainda podiam se regozijar de possuir
um meio de vida, ainda que muito simples.
Desta forma, todos estes vícios privados constituíam
virtudes públicas, porque faziam girar as engrenagens desta máquina social.
Lidando com a vaidade das abelhas, o desejo do luxo e do conforto gerava uma indústria
que se retroalimentava, gerando mais vícios e mais ocupações, e, claro, mais
riquezas!
Mas eis que algo de estranho acontece. Em uma espécie de insight, um pequeno grupo de abelhas se
tornou consciente de que toda a riqueza da colmeia era constituída pela maldade
e pela iniquidade, e essa ideia passou a ser cada vez mais difundida, a ponto
de uma abelha-comerciante, conhecidíssima como solerte praticante desta
mesmíssima maldade e iniquidade, velhaquíssima usuária da malandragem de
falseamento de pesos e medidas, e dos juros exorbitantes disfarçados de benesse
ao comprador, proferiu a seguinte imprecação:
- “Que os céus nos mandem somente a probidade!”
A reação inicial do séquito celeste constituiu-se em uma
imensa e retumbante gargalhada, mas Júpiter, o maior deles, aborreceu-se com a
desfaçatez do apelo e resolveu atendê-lo, eliminando todo o sentimento de roubo
e fraude daquela comunidade.
Deste momento em diante, houve uma transformação no espírito
da colmeia, com as consequentes manifestações externas. Imediatamente, os
produtos viciados foram retirados do mercado e os preços sofreram uma baixa
nunca vista. Os credores passaram a remover as usuras de seus direitos, e os
devedores começaram a quitar suas dívidas. Os tribunais passaram a se esvaziar,
já que as abelhas buscavam acordos antes de realizar qualquer demanda. O
reflexo imediato foi o esvaziamento do papel das abelhas-advogadas, que ficaram
sem serviço. A desnecessidade das prisões suprimiu na necessidade de muitos
funcionários, como oficiais de justiça, carrascos, carcereiros. Estes não
achavam justo aproveitar de carreiras estáveis para garantir seus ganhos, e
preferiam ficar desempregados.
Despojadas da vaidade, as abelhas-médicas passaram a se
preocupar efetivamente com o seu ofício e, naturalmente, com seus pacientes,
que passaram a receber cuidados necessários a qualquer momento do dia. O mesmo
se aplicou às abelhas-sacerdotes, que passaram a cuidar efetivamente da
religião, vivendo em simplicidade austera, atendendo os fiéis dia e noite,
dispensando a agora desnecessária ajuda de suas abelhas-ministros.
As abelhas estavam despidas de seus vícios anteriores. O
luxo e ostentação passaram a ser mal vistos, eram frívolas ligações ao mundo
material. A suntuosidade dos palácios passou a ser indesejada, e estes foram
abandonados, assim como todo o pessoal necessário para mantê-lo. Toda a arte
foi abandonada, e a que ainda existia estava deteriorada, ao relento.
A consequência direta disso tudo foi um desemprego sem
precedentes, o que levou a um imenso êxodo daquela colmeia, e mesmo as abelhas
que insistiram em ficar viviam na miséria. A prostituição, o puxa-saquismo, as
malandragens em geral estavam extintas naquela nova moral. Quem não se adaptou,
resolveu partir; quem permaneceu, não lançou mais mão desses recursos. As
fábricas de artigos supérfluos, ante a nova austeridade, a nova modéstia e a
falta de vontade de aparecer, precisaram fechar suas portas, que ficaram
enferrujadas, seus pátios sujos, suas máquinas - outrora produtivas - totalmente empoeiradas. O comércio só vendia
materiais essenciais à sobrevida, mas mesmo esse era afetado: as porções de
consumo se tornaram tão diminutas que pouquíssima coisa era disponível para
comprar e vender.
E o resultado não poderia ser outro: desprovida de suas
principais fontes de circulação e emprego, a colmeia assumiu um aspecto que era
a exata contradição de sua condição anterior: um local feio, miserável, sujo e
decadente. As ruínas de sua outrora grandiloquente civilização restavam apenas
como um monumento e um registro histórico do torvelinho de desgraça que se
abateu sobre este povo. Sua honestidade era o último refúgio para dar razão à
sua atual existência.
Essa historinha não é de minha autoria, mas é uma livre
leitura de uma fábula de Bernard de Mandeville, holandês de origem francesa,
radicado em Londres tão logo concluiu seus estudos em Medicina. Sua obra mais
famosa é exatamente essa “Fábula das abelhas”, que sofreu muitas reedições e
acréscimos. Nesta fábula, o sentido e a moral que o filósofo quer atingir é que
há sempre algo de bom nos mecanismos que consideramos injustos, e isso deriva
da natureza humana. Ao observar a sociedade ao seu redor, Mandeville percebeu o
quanto a vaidade dos homens se imiscui em seu modus vivendi, a ponto de se tornar o eixo central de todo o
mecanismo social. O homem não tem como se livrar disso porque esses defeitos
são fruto de impulsos naturais e de seu congênito egoísmo – toda a sociedade é
moldada de forma a prever e a encapsular no seu interior essas características.
A análise é aguda. A sociedade é refém de seus defeitos, e toda tentativa de realizar uma humanização das suas relações pode resultar em desastre. Parece uma crítica ao marxismo, que preconiza uma sociedade mais igualitária, mas não é esse o foco, até mesmo porque Marx e Engels nasceriam e trariam suas ideias muitos anos depois. No entanto, Mandeville é um defensor da divisão do trabalho, porque entende que o homem já não tem mais contato com uma pureza originária. Este estado de coisas é irreversível, a não ser que todas as estruturas sociais sofram um desmonte, com as consequências danosas que procura expor.
Evidentemente, o pensamento de Mandeville pode ser objeto de
exacerbadas críticas, principalmente por não levar em conta que o
desenvolvimento humano não tem a obrigatoriedade de se dirigir ao vício e que
causas nobres são possíveis e desejáveis, mesmo sob o signo do lucro e do
conforto. Mas não deixa de ser interessante observar o quanto sua crítica pode
ser dirigida aos dias atuais. Pensemos, por exemplo, no que aconteceria se o
crime fosse extirpado de nosso pobre mundo. Toda uma macroestrutura existe para
dar combate a ele. E isso não se dá só por órgãos governamentais, mas por
muitos e muitos agentes privados, entre empresas e pessoas físicas. Um país sem
crime faria supor a desnecessidade de policiais militares, policiais civis,
guardas municipais e que-tais; as empresas de escolta poderiam ser desmontadas,
os vigilantes perderiam seus empregos; fabricantes de alarmes para carros e
prédios teriam que procurar outra atividade, assim como os produtores de arames
farpados e cercas de segurança; as empresas que fabricam chaves e cadeados,
assim como grades e portões seriam relegadas à inutilidade; também as empresas
de seguro passariam por forte abalo, já que o ramo mais crítico e lucrativo
estaria encerrado; os noticiários seriam bastante diminuídos, os Datenas e
Resendes da vida teriam que procurar outros temas para suas bravatas – que tal
receitas de bolo? Interfones e porteiros eletrônicos seriam os novos
companheiros das maria-fumaças e dos relógios de areia nos museus; idem com
câmeras de segurança e outros dispositivos para detectar presenças indesejadas.
Tem também a extinção da indústria bélica e suas correlatas; os prontos
socorros poderiam se prepara para receber bem menos casos; psicólogos que lidam
com os traumas da violência teriam esse tópico a menos para lidar; a indústria
de vidro blindado e a blindagem de veículos iriam mandar mais alguns
desempregados para o bolo geral. Isso tudo entre outras atividades que já nem
lembro mais, e da própria atividade criminal, que movimento uma grana
impossível de medir.
Para se ter uma ideia da brincadeira, apenas em empresas
legalizadas, o faturamento do setor de segurança, em 2005, foi de 12 bilhões de
moedas. R$ 12.000.000.000,00!!! Quem nos informa isso é a Fenavist (Federação
Nacional das Empresas de Segurança e Transporte de Valores – quem quiser
acessar o site, o endereço é http://www.fenavist.com.br),
que congrega o setor a nível nacional. Temos de convir: O crime é um grande
negócio, e isso deveria ser encarado com mais seriedade. O que esses números
querem dizer para nós? Qual é o impacto deles em nossas vidas? A que rumos
vamos levando nossa sociedade e de que maneira vamos amarrando-nos sem poder
nos desvencilhar, talvez para sempre?
E desta forma podemos compreender um pouco mais sobre como
nossas pequenas abelhinhas ajudam a explicar a infelicidade de se reconhecer
que os nossos vícios particulares acabam por se transformar em grandes virtudes
públicas, necessárias ao funcionamento social nos moldes com os quais lidamos
hoje, em um ambiente liberal e capitalista. Essa é principal advertência de
Mandeville para os nossos dias.
Recomendação de leitura:
MANDEVILLE,
Bernard. The Fable of the bees or Private
Vices, Public Benefits. Oxford: Claredon Press, 1966.
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