Olá!
Ninguém nunca disse que é fácil viver. Pior ainda é tomar
algumas atitudes que acabam por te grudar um selo na testa. Digo isso porque
tenho sentido reflexos na vida desde que promovi minha “saída do armário”*, o
que sintetizei através do meu texto
comemorativo de 300 postagens. Não se trata exatamente de hostilidade, mas
uma certa indisposição com muitas das coisas que eu falo, tipo o que acontece
quando alguém quer reconduzir uma ovelha alvinegra ao redil verde**: o
Palmeiras tem mais títulos, se você sabe disso porque pulou o muro? É pregar
para convertido, saibam, mas o debate é menos na sua casa nova, e mais no
apartamento velho. Deu para entender?
É melhor deixar mais claro. O problema é mais ou menos o seguinte:
se um cristão que conhece a história de Jesus não se dispõe mais a acreditar
nele, tornando-se um apóstata, por que volta e meia menciona a religião que
nasceu a partir dele? Por que escreve textos sobre filósofos da Religião***? Por
que não larga da gente de uma vez?
Ora, claro que as coisas não são assim. E preciso criar um
pouco de vontade para explicar por que. Vamos nessa!
É claro que não ficamos pensando incessantemente como são as
profundezas das coisas. Imagine, por exemplo, se você vai ficar raciocinando
nos movimentos circulares e na pressão interna dos gomos de uma laranja quando
você quer fazer um suco. Você simplesmente vai lá e espreme a fruta. Você sabe
que esse processo resulta em líquido e punto,
finito. Esse é um saber prático que não depende de nenhuma ciência
incrustada no seu telencéfalo extremamente desenvolvido, que pode estar
exatamente filosofando sobre a vida e a morte no momento do espremer o cítrico.
É isso aí. Existem muitas que sabemos COMO fazer, o que não
equivale a dizer que sabemos O QUE as coisas são. É o que se chama de techné, a palavra grega que significa a
habilidade que temos para construir coisas e interferir no ambiente, e que dá
origem para tantos termos do nosso quotidiano, como tecnologia, mnemotécnica e
tantos outros. Só que o uso da técnica não está vinculado diretamente às razões
pelas quais fazemos esse uso. Aqui, temos uma distinção a fazer. São usos diferentes os que damos para a
inteligência e a sabedoria. A primeira está amarrada com entender o
funcionamento das coisas, e o porquê de serem assim e não assado. Já a segunda
tem mais a ver com momentos certos de fazer uso das coisas que sabemos. No
nosso caso específico, importa-nos a inteligência.
Só que até agora não estabeleci muito bem o que é uma coisa
e o que é outra. Crença e conhecimento não são a mesma coisa, mas guardam uma
relação de dependência uma com a outra. Portanto, podemos dizer que, para que
se conheça, é preciso que primeiro se creia.
Vejamos um exemplo. Eu estou aqui na casa da minha filha sem
saber ao certo como ela foi construída. É uma daquelas construções antigas,
feita em tijolinhos maciços, e sem laje. Ao contrário, temos uma forração de
PVC, fazendo as vezes de estuque. Vários reparos são necessários para melhorar
sua habitabilidade, e um deles consiste em remover algumas das ripas para mexer
na fiação que chega ao banheiro, nos fundos. Como é costumeiro acontecer, as
divisões dos cômodos inexistem do forro para cima, o que torna tudo sob o
telhado um vão único. Entretanto, na divisa da sala para a cozinha, a parede
sobe até o telhado, o que divide o vão sob o teto em duas partes. Eu deduzo que
tal mistério ocorre porque foi feito um prolongamento da casa, para torná-la
maior. O que era o seu término, virou a divisão entre a saleta e a cozinha, que
acabou por se tornar os novos fundos.
Bem, eu digo que sei tudo isso por um processo de dedução, mas
o fato é que isso não é conhecimento, mas opinião. Eu ACHO que as coisas são
desse jeito, usando minha própria experiência, mas não posso corroborá-las
porque não tenho outros elementos. Não tenho perícia técnica, não assisti à
construção, não tenho fotos, não tenho vídeos, não tenho planta original, não
tenho nem ao menos o depoimento do dono da casa ou dos vizinhos. Ou seja, isso
tudo é uma opinião, ou como gostavam de dizer os gregos, doxa. A doxa não é saber, é uma crença.
Agora digamos que eu queira tirar a história a limpo. Vou
até o cartório de registro de imóveis da comarca de Taubaté e leio os assentos
gravados na matrícula que deram para a casinha em questão. Lá, eu leio que a
casa originalmente tinha um tamanho X e que foi expandido posteriormente para X+Y,
sendo Y o valor correspondente à adição de um cômodo. Pronto, minha opinião se
comprovou verdadeira, e agora eu não mais creio, agora eu SEI.
Isso mostra duas coisas: que a opinião não significa
necessariamente um erro, e que ela sozinha não tem embasamento para refletir
uma realidade. Mas por que podemos dizer que minha crença transformou-se em
conhecimento?
O melhor que é possível fazer é pegar os conceitos clássicos
da Epistemologia e dar um passeio com eles. É com o velho Sócrates que olhamos
para aquilo que pensamos que sabemos e colocamo-lo no âmbito crítico. Nos diálogos
platônicos Menon e Teeteto, vemos o velho padroeiro falando sobre o que é uma
mera crença e como ela pode ganhar o selinho de qualidade de conhecimento.
A epistéme é um
sinônimo grego para um tipo de conhecimento seguro, ou seja, aquele que não é
ofuscado pela aparência, mas que busca o que os fatos e fenômenos são na
realidade. Quando nós pensamos em crença, primariamente temos na cabeça quase
que o oposto disso: as coisas são o que nós acreditamos que seja, e não o que
são de fato. Mas a questão é a seguinte: não há como ter conhecimento sem que
se tenha crença. A epistéme não é só uma modalidade de conhecer, mas um
processo, que inclui um marco zero: acreditar naquilo que achamos ser
verdadeiro. Imagine que é exposto a você um teorema que explique o formato da Terra,
ou a eficácia de uma vacina. Se você não se dispõe a acreditar nas formulações
e nas evidências que lhe são apresentadas, não adianta. O ciclo que forma o
conhecimento não se fecha.
Acontece que a crença é uma condição necessária, mas não
suficiente para chegar ao conhecimento. Isso é muito simples de se perceber.
Não adianta acreditar em um conto da carochinha para que isso seja verdade,
embora seja possível que o façamos tão piamente que para que qualquer lugar que
olhemos tenhamos a sensação de confirmação de nossa crença. O nome disso é
tratado pela Psicologia com o nome de wishful
thinking, e já tratei do assunto neste
texto. Talvez você que me lê tenha acreditado em Papai Noel ou coelhinho da
Páscoa quando era pequeno, e isso não os tornou verdadeiros.
Eu não coloquei meus filhos para acreditar em nenhum dos
dois quando eram pequenos, não porque tivesse algum tipo de posição filosófica
contrária, mas porque achava que a transição entre a ilusão e a verdade nua e
crua seria mais complicada em um relacionamento que se pretendia basear na
sinceridade (cheguei a falar um pouco sobre isso há
um bom tempo atrás). Quando chegava a época da Páscoa, por exemplo, eu
escondia dois capitalistíssimos ovos de modesto tamanho pela casa, e
colocava-os para procurar, rindo às escâncaras com seus palpites furados. Não
dizia que era o coelhinho que os havia trazido, mas que eu mesmo os tinha
comprado com meus parcos estipêndios. Ora, podia muito bem ser verdade, mas
também eu poderia estar falando que a compra foi feita por mim só para parecer
o bonitão, e os ovos tivessem sido, na real, comprados pela avó ou pela
madrinha.
Vejam, portanto, que transitar da crença para o conhecimento
não é algo exatamente simples. Eu posso acreditar em algo que seja verdadeiro,
mas pelos motivos errados. Por exemplo, eu sei que a diabetes é excesso de
glicose no organismo, e isso é verdadeiro, porque há quilos e quilos de estudos
que comprovam a afirmação. Só que o senso comum pensa ser essa doença uma
consequência do abuso no consumo de sacarose. Só que ela se dá por um problema
de metabolismo, e não por conta das bombas de chocolate da padaria. Ou seja,
quando digo que a diabetes é uma superabundância de açúcar, minha opinião é
verdadeira, só que é verdadeira “no chute”. Tem um elemento faltando nela: a
justificação.
Justificar, neste âmbito, nada mais é do que explicar os
motivos pelos quais as coisas são como são ou deixam de ser. Não basta que eu
saiba que algo é verdadeiro, é preciso também saber o porquê, para que a crença
verdadeira se consolide e se torne segura. Esse é, por exemplo, o caminho da
Ciência. Tá lá no céu uma raio de luz singrando-o de fora a fora na noite. Eu
sei que isso acontece de vez em quando, e também sei que quanto mais escuro
estiver meu ponto de visagem, melhor conseguirei observá-lo, mas enquanto eu
não souber do que se trata o fenômeno, não poderei alegar ter fechado o ciclo
do conhecimento: eu, sujeito, apreendo um objeto de meu universo observável, e
tiro conclusões que deverão ser averiguadas. Começo crendo, termino sabendo. O
conhecimento é crença verdadeira
justificada, como dizia o parteiro de ideias. Uma tese conhecida como
teoria tripartite do conhecimento, e que é representada mui comumente com o
gráfico abaixo:
O conhecimento está precisamente na intersecção entre a
crença e a verdade. Não é conhecimento aquilo que cremos, mas não é verdade;
assim como também não é conhecimento aquilo que é verdade, mas não cremos. Para
que o conhecimento seja efetivo, é necessário que ele transite de uma doxa para
a epistéme através do logos, porque não há conhecimento inefável, inexprimível,
indescritível. Isso também não é conhecimento, correto?
Doxa, logos, epistéme... Que monte de grego, meu pai… onde
entra esse tal de logos na história toda? É que o meio
pelo qual conseguimos traduzir um conhecimento é a palavra. Toda forma de
saber precisa passar primeiro pela articulação mental de um sujeito, e isso não
é possível sem que se transite pelo logos. A razão se processa pelo logos.
Pois bem, então. Bem estabelecidas as diferenças
necessárias, passo a explicar a questão inicial. Muito embora uma pessoa possa
não crer em uma divindade, ela sabe da existência das narrativas sobre a mesma.
Eu, por exemplo, sei que existe um livro chamado Bíblia, que contém as
histórias e os feitos de várias personagens, dentre as quais um homem a quem
são atribuídos poderes divinos chamado Jesus. Também sei que, a partir de sua
vida e ensinamentos, foi estabelecida a base para a religiosidade ocidental
praticada até hoje, e que a crítica histórica é, na sua maioria, favorável à
existência de um Jesus histórico, ainda que sua existência possa não ter
correspondência com aquilo que é relatado nos Evangelhos. Em resumo, ainda que
haja parcialidade nos relatos evangélicos, há outros elementos externos a eles
que tendem a corroborar a existência de um profeta no meio do movimento messiânico
judaico das épocas da dominação romana que o celebrizou por uma abordagem
diferente com relação aos demais, que esperavam por um senhor da guerra. Tenho
conhecimento de tudo isso, independentemente da minha crença (ou falta dela),
acrescido das vitaminas e sais minerais que são minha vivência eclesial e meus
estudos acadêmicos.
Sendo assim, não há absolutamente nada de errado em se falar
sobre as religiões que não praticamos e sobre as teologias que não concordamos,
porque é perfeitamente possível conhecê-las. A quem me contesta por esse
motivo, devo explicar que é uma contestação tola. Já não falei sobre o budismo
(um,
dois,
três
e quatro)
e a umbanda (neste
texto)? Há algo de errado nisso? Falo dos filósofos cristãos porque eles
têm ideias muito boas, muito desenvolvidas e muito bem descritas. Eu não posso
excluí-los dos meus estudos e dos meus textos pelo simples fato de não crer no
mesmo que eles. Por isso, continuarei a falar sobre religião quando for
pertinente. Até mesmo porque trato delas com o respeito que é devido aos seus
praticantes. Bons ventos a todos!
Recomendação de leitura:
Por que nunca citei um livro de Sócrates no meu blog? É
simples: porque ele não existe. É pela boca de Platão que Sócrates fala, e suas
teses sobre conhecimento estão mais claramente colocadas nos dois livros
mencionados. Já havia mencionado o Teeteto neste
texto, e fica a recomendação para o Menon.
PLATÃO. Mênon. Rio
de Janeiro: Loyola, 2001.
* Continuo hétero. Minha saída do armário diz respeito à
questão religiosa. E antes que alguém me diga que era desnecessário fazer esse
esclarecimento, informo que vivemos no Brasil.
** Substituam pela dupla de times de suas preferências.
*** E é verdade mesmo. Já escrevi sobre Santo
Agostinho, São
Tomás de Aquino, Boécio,
sobre o Eclesiastes duas vezes (um
e dois),
Constantino,
Nicolau
de Cusa e mais alguns outros perdidos por aí.
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