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quarta-feira, 12 de fevereiro de 2020

O cesto da gávea de onde observo o mundo - 9ª mirada: Salesópolis e a metafísica no delicado nascimento do Rio Tietê

Olá!


Nunca ouvi dizer que uma dança da chuva tenha tido efeito reverso. Então não adiantou nada sair se sacudindo com a patroa nas ladeiras de Santa Branca. A sexta-feira amanheceu tão chuvosa quanto tinha sido a noite anterior. Sim, eu sei. Danças são para produzir aguaceiro, e não para estiar. Como eu não acredito em nada disso, deve ser o motivo universal da falta de fé e, sendo assim, o negócio é pegar barro mesmo. Faz parte e não há de perturbar. Há outro calçado na mala.

Este dia estava pleno e absoluto, porque, apesar de perto da Terra da Garoa, sempre há descarga de mala, desembaraço de hotelaria e um certo balouçar indeciso até pegar o rebolado da viagem, o que come importantes horas no cômputo líquido. Com isso, logo após o café bem cedo, apontei meu nariz um pouco mais ao sul, para conhecer a pequena cidade de Salesópolis, o berço do Tietê.


O antigo nome da cidade era São José do Paraitinga, e foi modificado para homenagear o presidente Campos Sales, uma honraria da qual sou comumente contrário. Seu padroeiro é São José, e sua matriz tem o habitual estilo do colonial tardio, com traços neoclássicos.


Toda a igreja é cercada de referências ao santo em questão. Pode parecer estranho hoje em dia, mas São José não era um dos santos mais cultuados no começo da igreja, talvez por seu papel pouco destacado nas páginas bíblicas. Hoje em dia, é muito recordado como padroeiro dos trabalhadores, e do lado de fora podemos ver uma representação da sagrada família com nosso caro em plena labuta.


Não ficamos muito tempo na área urbana, no entanto. No caminho para as nascentes do Tietê, há um restaurante conhecido como Senzala, que vai muito além da propositura gastronômica. Diz-se que é uma área onde uma antiga senzala se quedou abandonada após a abolição da escravatura.


Estando recoberta de mato, foi localizada por um comerciante que tinha uma filha adotiva. Tomou posse do lugar, que não possuía proprietário formalizado, e lá a transformou em sua habitação. 


Atualmente, a família da menina adotiva já está em sua quarta geração, procurando preservar a casa em seus aspectos essenciais, como as paredes de pau a pique e o chão de terra ou de tijolos.


Quem nos narra a história é o atual proprietário do lugar, o João, que mostra com orgulho os diversos móveis, objetos e utensílios ali existentes, como o maquinário manual para produzir farinha de mandioca.


Seguindo adiante na estrada, já bem embrenhado na parte rural, fica localizado o Parque Nascentes do Tietê. O nome não é um romanceamento como se gosta de fazer com os condomínios fechados das beiras de estrada, mas um espelho da realidade: é aqui que nasce o tão judiado rio.


Já quero agradecer ao administrador Daniel, que nos deu valiosas orientações sobre o parque. Para chegar à nascente propriamente dita, há quatro alternativas de caminho, sendo um direto, dois por trilhas curtas e um por trilha mais longa, de cerca de dois quilômetros. Foi por essa que eu fui.


Estava tudo bastante molhado e cheio de formigas, mas foi bom notar como a vegetação, apesar de espessa, é jovem. Não há grandes árvores com grossos troncos, porque a redondeza era destinada a pasto até não muito tempo atrás. Por aqui, o Tietê ainda é um pequeno regato.


O ponto exato de onde surge o rio faz compreender como o equilíbrio natural é delicado. Não fosse a placa demarcatória, dificilmente se saberia que ali nasce um rio que corta o estado de São Paulo praticamente inteiro, com sua inconsueta direção que se afasta do mar.


Há três pontos de onde a água brota. O primeiro é uma rocha fendida por onde escorre um fino filete d'água...


... o segundo é de uma fenda mais rasa, onde foi colocada uma calha de taquara para que a água fique mais visível...


... e o terceiro é um olho d'água, onde o líquido sobe pela areia do fundo do pequeno leito, formando um minúsculo torvelinho.


Como chovia, tudo isso ficava um pouco mais complicado de fotografar. Prova da boa qualidade da água que lá surge é a presença de muitas aranhas d'água e dos pequenos guarus, peixinhos bem pequenos e muito comuns na região. Coloquei uma sinalização na foto para ficar mais visível (aranha em vermelho, guarus em preto). Também tinha bastantes girinos no local.


Daí por diante o curso do rio vai se avolumando aos poucos, ganhando consistência na medida em que outras pequenas minas vão afluindo para ele. A água nesta região é perfeitamente limpa e plenamente potável.


No próprio parque há um memorial que dá informações da cidade de Salesópolis e da criação do parque, com um bom número de painéis explicativos e uma maquete que demonstra o perfil hidrográfico da região.


O mais interessante e chocante são os comparativos entre a coloração das águas do rio Tietê durante seu curso. Na foto, água colhida da nascente e na cidade de São Paulo. Chega a ser desesperador. Menos mal que, de lá para frente, a imundície se disperse, até voltar a ficar limpa pela região central do estado.


Uma pausa para se secar e almoçar, partindo para nova empreita. Desta vez, pegamos a Estrada dos Freires para ir até o Museu da Energia de Salesópolis. Gerenciado pela coordenadora Simone Villegas, e, no dia, auxiliada pela guia Carol, é um espaço muito bonito, todo florido, cheio de bananeiras e goiabeiras, além da tropa de cinco cachorros que elegeram o local como moradia.


É surpreendente, mas a poucos quilômetros daquela pequena nascentezinha de três pontos, o rio Tietê já pega porte suficiente para permitir a construção de uma usina hidrelétrica, ainda que não muito grande.


A usina em si tinha capacidade para abastecer de energia elétrica pequenas cidades da região. É preciso considerar que em 1913, ano de sua fundação, a redondeza era naturalmente muito menos habitada que hoje.


O maquinário é o mesmo desde a inauguração. A usina parou de produzir energia na década de 80, mas está em fase de testes para voltar a operar em tempo constante. Tivemos a sorte de pegar a usina em pleno funcionamento.


Esta tubulação é destinada a trazer a água da represa que fica lá no alto. Para quem não sabe, uma usina hidrelétrica funciona utilizando o efeito da gravidade, com a força da água movendo as pás das turbinas, que, por sua vez, é transformada em energia elétrica pelos geradores vistos na foto anterior.


No passado, a operação da usina demandava um bocado de operários, que, dado o isolamento do empreendimento, habitava por lá mesmo. Algumas das antigas casas ainda estão lá, com o seu estilo bem típico.


Seu uso hoje é outro. Em seu interior e em seu entorno, há uma série de artefatos que demonstram o funcionamento da eletricidade, com a possibilidade de interação dos visitantes, como os geradores a pedal e as limalhas magnetizadas.


Em outra das casinhas, há o assim chamado Espaço Água, que conta o histórico da usina e da cidade de Salesópolis, incluindo informações sobre a mata e a fauna nativa.


Um dos operadores atuais, chamado Elvis, é um entusiasta da observação de aves, e promove, por iniciativa própria, algumas atividades neste sentido. É uma zona onde se encontram quase trezentas espécies, inclusive uma ave em sério risco de extinção, o bicudinho-do-brejo paulista, que virou uma espécie de símbolo do lugar.


Para subir até a represa, é preciso encarar uma escada de 250 degraus. Já encarei até maiores, mas esta foi, de longe, onde eu mais me cansei, pela extrema irregularidade nas dimensões dos degraus.


O topo da escadaria, entretanto, permite uma vista muito bonita do vale, e dá uma grande visão geral do complexo do parque, que tem, como se pode esperar, um grande desnível com relação à base.


Esta é a represa formada pela barragem, em contrastante mansidão com o fluxo frenético da queda d’água.


E este é o escoadouro que faz vazar a água acumulada. É controlada por um sistema de comportas que ora retém água, ora a faz descambar morro abaixo.


Vejam como as coisas se dão em um equilíbrio delicado, que nasce como um filete, mas que toma uma dimensão enorme, que atravessa grandes porções de território, se torna imundo, mas depois se revigora, em um ciclo de renovação e recriação que tenta, a força, se manter. A vida resiste, mesmo nas coisas brutas.

Em mais de um texto (aqui e aqui) me reportei a uma espécie de espiritualidade que escapa da religião, algo como uma integração ao universo que sentimos ao nos defrontar com a imensidão ou a nos perceber como parte da engrenagem cósmica. Há quem perceba nisso uma espécie de equilíbrio natural que tende a trazer as coisas aos seus lugares, há quem veja isso como a obra de um deus criador, que rege todas as coisas com tal poder que nos diminui a condição de moscas. E há quem conjugue as duas coisas. Esse quem é Baruch de Espinoza, de quem falaremos a partir de agora.

Já espanei de leve o assunto aqui, mas entendi que fazia sentido aproveitar o ensejo e aprofundar o estudo. Forçando o trocadilho, Espinoza teve a vida muito espinhosa. Sendo judeu, foi expulso da sinagoga (chérem). Estando em país cristão, a Holanda, foi excomungado. Tudo isso por sua concepção sui generis com relação a Deus. E o começo é a ideia de substância que nosso holandês de pais portugueses tinha. Desde os tempos aristotélicos, a Metafísica olhava para a forma e a matéria que compunham os seres e as chamava de ousía, a base de todos os seres e que ancora cada uma das coisas a uma realidade que lhe é subjacente, que lhes tornam o que elas são. Aristóteles entendia que cada objeto no cosmos tinha sua própria substância, mas Espinoza entendia que essa substância era única e comum a todos os seres, sendo que as diferenças entre os objetos estão apenas no plano do aspecto.

Mas o que seria essa substância que permeia todo o universo e está presente em todas as coisas? Para Espinoza tanto pode ser chamada de Deus ou de natureza. Deus é natureza, e natureza é Deus. É o conceito de causa sui, a substância que é causa de si mesmo e que está em tudo, absolutamente tudo no universo.

Como podemos reconhecer a natureza como causa de si mesma? De uma maneira extremamente simplificada, podemos pensar no seguinte: a cada vez vemos brotar uma planta, surgir um bicho, desaguar um rio. É da natureza que provém a natureza. Mesmo quando chupamos a mais artificial de todas as balas, é de algum elemento natural que lhe foram extraídos os componentes. Equivalendo natureza e Deus, como em Espinoza, podemos afirmar que é a natureza que dá existência à própria natureza, que é a natureza que dá a essência à própria natureza e é a natureza que dá potência à própria natureza. Substitua o nome natureza por Deus e teremos a mesma lógica.

A concepção de Deus em Espinoza, portanto, é muito distinta daquela imaginada por teístas. Deus, ainda que colocado em um trono, é movido pelas mesmas paixões que o homem. Mesmo que os monoteísmos representem, de certa forma, uma evolução da visão quase animista do politeísmo pagão, permanece a visão de Deus como um homem acima dos demais, destacado do mundo assim como um rei se destaca da sociedade. Apenas utilizando como exemplo, é possível ver como o Deus cristão é ciumento (Ex 20, 5), vingativo (Dt 32,35), enternecido (Os 11,8), paciente (1Cor 13, 4), muitas vezes tendo atitudes opostas entre si quando tratando de um mesmo assunto. Enfim, uma divindade humanizada, porém colocada à parte, transcendentemente. Não é difícil de entender isso quando se olha a própria Bíblia. Mas Espinoza também vê Deus nos seres desprovidos de alma, já que ele é um monista de substância. Essa tal de alma não há, enquanto corpo e pensamento são também da mesma substância e parte da mesma natureza e do mesmo Deus.

Eu sou corpo, assim como minha mente é corpo, e as mentes e corpos dos outros fazem parte da mesma natureza que nos une e da qual somos copartícipes. Eu não sou uma substância particular, mas uma individualização que ocorre por conta dos movimentos e do repouso que me são peculiares. Dessa forma, temos o afeto no pensar de Espinoza, que nos modifica e renova, e isso também ocorre quando sou tocado, no corpo e na mente, por toda a delicadeza da vida que se origina e renova. O afeto é movido pela potência de agir, que Espinoza dava o nome de conatus, e que cresce ou diminui na medida em que um corpo consegue ou não manter suas proporções de movimento e repouso. Sim, é como se fosse uma vontade de viver. E essa vontade se espelha também nas coisas, no Rio Tietê que resiste à sua morte ao passar pela metrópole e que deságua na divisa com o Mato Grosso do Sul já totalmente renascido.

Deus não está apartado do mundo. Ele é o próprio mundo, expresso na natureza. Ele não vive na transcendência, como se estivesse nos céus, mas é imanente, está aqui conosco porque nós mesmos somos parte dele. Não somos como Deus, somos Deus. E assim também é tudo o que é de bom e de ruim, tudo o que é de leve e de pesado, tudo o que é de claro e de escuro, sem tirar nem pôr. Daqui, temos o seguinte: quando se refere a Deus, Espinoza é um panteísta; quando o equivale à natureza, torna-se um ateu. É mais ou menos essa uma dupla designação que se atribui a ele.

É claro que uma visão dessas não iria agradar nenhum dos próceres religiosos, ainda mais em uma época que eles gozavam de tanto poder. Um Deus sem personalidade, sem vontade própria, sem intelecto, e, principalmente, sem o bastão do castigo aos que erram, sem um livro de regras na mão, e cujos atributos são simplesmente a eterna necessidade absoluta e a impessoalidade, que tanto se aplica ao bem quanto ao mal... É, não podia dar certo. Espinoza viveu no início do século XVII, momento em que os judeus eram expulsos a torto e a direito dos países cristãos, e apresentar um deus com esse formato fazia com que nem pela origem, nem pelo ideário, Espinoza tivesse vida confortável, terminando seus dias como polidor de lentes.

Essa concepção metafísica de Espinoza, no entanto, representa uma novidade importante para nós, nestes tempos em que a vida da natureza se encontra em uma encruzilhada, onde não sabemos onde a necessidade de desenvolvimento nos levará. Se pensarmos na natureza como um todo que nos doa nossa própria existência, e ainda que a chamemos de Deus, teremos a oportunidade de rever algumas condutas. Será que é justo afrontar com toneladas de lixo e de egoísmo nossa própria divindade?

Bons ventos a todos...

Recomendação de leitura:

É um livro complexo, como complexo é todo o pensamento espinozano. É um daqueles caras que nos coloca em apuros na faculdade, mas, com um pouco de boa vontade, vale a pena conhecer.

ESPINOZA, Baruch. Ética. Belo Horizonte: Autêntica, 2009.

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