No próximo passo do nosso itinerário, vamos sair do meandro
da Teoria do Conhecimento para penetrar nas sendas nebulosas da área filosófica
que é mais discutida nos dias de hoje: a Ética.
Logo de início, é preciso estabelecer semelhanças e
divergências entre Ética e Moral. Localizei duas correntes mais ou menos
equivalentes em tamanho: aqueles que consideram os dois termos sinônimos e
aqueles que os distinguem. No primeiro caso, temos a questão etimológica, já
que os termos ethos (grego) e mores (latino) significam a mesma coisa:
costumes ou hábitos de um grupo humano. Usar um ou outro, neste caso, teria
diferença apenas no “sabor” da palavra. Quando usamos léxicos como comum e ordinário, ou mediano e medíocre, temos pares de sinônimos, mas
os segundos ganham conotação negativa, apesar de não a terem, etimologicamente
falando. É como se ordinário e medíocre indicassem coisas reles, vis, sem nada
de especial, e, portanto, desprezíveis, enquanto comum e mediano fossem mais
neutros, sem embutir nenhum juízo. Nesse sentido, Moral já carrega consigo uma
ideia de normatividade, como se indicasse em si o que é certo e errado, e Ética
tem um viés mais imparcial, de análise mesmo, com menos valores atribuídos e
pré-julgamentos.
Outras correntes fazem uma distinção mais clara entre ambos,
dando-lhes diferentes sentidos. A Moral, para estes pensadores, são os modos de
conduta de uma determinada comunidade permeados por sua cultura, o que dá valor
de certo ou errado para cada uma de suas ações, baseados em tradição e
habitualidade. Já a Ética procura compreender as causas e os motivos pelos
quais essas mesmas ações são cometidas, apoiados, portanto, na racionalidade.
Em um exemplo, vou buscar mais uma historinha da minha vida.
Nunca passei propriamente fome, mas, como todos, passei por
momentos de perrengue bravo. Bem no comecinho da década de 80, uma crise daquelas
deixou a indústria muito combalida, o que refletiu em amplo desemprego. Em uma
família de operários, os reflexos eram óbvios: dos nove moradores da casa,
apenas um tinha emprego, o meu pai. Havia ainda as costuras da minha mãe e os
bordados da minha madrinha, mas elas passavam mais tempo cuidando do meu avô
doente terminal e da minha tia nonagenária do que pegando encomendas. Meu
padrinho e meu primo mais velho corriam atrás de emprego e de bicos, com pouco
sucesso. Eu e minha prima éramos crianças, mas, já sendo mais taludinhos, íamos
tentar alguns níqueis por aí, com ela crochetando toalhinhas e eu carregando
pacotes no mercado e na feira. Isso hoje é impensável, mas muito comum à época.
O dilema que eu quero propor é o seguinte: com um torneiro mecânico para dar de
comer a nove, não é de se estranhar que os pratos estivessem mais vazios –
muito ovo e pouca carne. Aliás, carne nenhuma. A pouca que havia era destinada
ao meu pai, para sustentá-lo melhor. Do ponto de vista moral, podemos ver a
decisão como acerto ou erro. É justo o patriarca receber a melhor quota, para
ter energia na manutenção do emprego? Se sim, esse é o lado positivo, o bem. A
privação para o restante é ruim, mas é justa. Esse é o olhar moral sobre a
causa em tela, e busca detectar as melhores atitudes possíveis. Já no contexto
ético, o foco não está propriamente no valor que as ações recebem, mas na
estrutura em que se desenrolam. Quais são os pontos em que escolhas devem ser
feitas, que critérios adotamos para sopesar custos e benefícios, se os ganhos e
perdas devem ser mais individuais ou coletivos, qual o nível de liberdade que
uma situação de aperto nos proporciona; no nosso caso, observamos que diante da
necessidade torna-se imprescindível a tomada de um rumo, seja ele qual for; estas
são as perguntas éticas. É aquilo que falei sobre neutralidade: a Moral já
carrega consigo um “sim” e um “não”, um “certo” e um “errado”, um “bom” e um
“mau”, ou seja, um valor fixo, e é mais dirigido e cultural. Já a Ética se
importa menos com o valor e mais com a estrutura, sendo mais imparcial e
filosófica. Do ponto de vista axiológico*, portanto, a Moral quantifica e
hierarquiza o valor, enquanto a Ética detecta um ponto onde é aplicado o valor.
Tendo a aderir a essa segunda corrente, que, no frigir dos
ovos, entendo que explicita o quanto o termo “ética” é hoje banalizado. Os
códigos de ética não têm nada de ético, por exemplo. São normas de conduta,
dispositivos coercitivos que tem seu propósito válido, o de manter ordem em uma
instituição, ou dar padrão a procedimentos profissionais, mas não são éticos,
porque privam daquilo que de mais ético existe: a escolha.
Sim, a Ética baseia-se na compreensão das escolhas. O
motorzinho que toca nossas opções é sempre a busca da felicidade, a tal da eudaimonia da qual Aristóteles tanto
falava, o fim último do ser humano. Se pensarmos bem, todos nós queremos isso:
ser felizes. Os gregos do período socrático vinculavam diretamente a felicidade
ao bem, ou seja, qualquer ação má ou prejudicial trazia no máximo a ilusão de
felicidade. Pensemos em um roubo. Ao contentamento inicial propiciado pela
posse desvigiada da res furtiva,
sucederá o temor pela descoberta do ilícito, a preocupação com a vingança ou
com a punição, a desconfiança de que também ele pode ser roubado, o
arrependimento pelo mal realizado. Isso vale para tudo o que de mal se faz,
mesmo que uma pequena maledicência. Sempre haverá um peso a carregar, do que o
aderente ao bem está livre. Dessa forma, a eudaimonia está sempre ancorada à areté, a virtude. Porque, na essência,
felicidade não se faz sem paz de espírito. É o que move Sócrates em seu diálogo
com Críton, ao assumir a morte como bem. Sua fuga representaria a assunção do
mal e o afastamento da virtude, mesmo que com uma condenação injusta, porque
desvirtuaria aquilo que foi estabelecido como bom pela sociedade de sua época.
Só que ser feliz não é simples, e, especialmente na
filosofia helênica**, temos uma grande discussão ética de como viver da melhor
forma possível tendo a felicidade como objeto inalcançável. O estoicismo
de Zenon prega a resiliência à dor, o famoso “ligar o foda-se” como medida para
sanear a distância do prazer; o epicurismo visa encontrar contentamento nas
pequenas coisas, ter prazer em cada ato simples como se fosse um grande acontecimento;
o cinismo de Diógenes prega um virar as costas à cultura e uma
reaproximação à natureza, bastando as funções vitais ao homem para ter o que
precisa, coincidindo necessidade e desejo; e o ceticismo de Pirro resolve o
problema suspendendo seu juízo sobre o que é possível conhecer, incluindo as
fórmulas que explicam o que significa ser feliz. Entendam que tudo isso não se
faz por roteamento automático. Todas são escolhas ativas, modos de proceder
derivados da opção do indivíduo. A Filosofia helênica é majoritária e
essencialmente ética.
Tenho dúvidas com relação a um termo como “antiético”, por
todo o exposto acima. De fato, se é válida a diferenciação entre Ética e Moral,
não faz muito sentido dar oposição a uma disciplina neutra. Quando chamamos
algo de antiético, na verdade queremos dizer que esse algo é imoral. Boa ou má,
o cidadão fez uma escolha, o que é característico das disposições éticas. Se
atribuirmos valor ao ato, saímos do campo ético e vamos para a Moral. Mas por
que a questão das escolhas é tão vital na Ética?
A resposta a essa questão está em um diferenciador do ser
humano como distinto dos demais animais. É através das escolhas que o homem
exerce a sua liberdade, embora esse não seja um ponto pacífico. Isso porque é
essencial que se decida a aporia do livre-arbítrio, a possibilidade de
autodeterminação dos caminhos que alguém possa seguir. Somos verdadeiramente
responsáveis por nossas escolhas?
Certas escolas filosóficas, como o Determinismo, pensam
que não. Afirmam que o homem é condicionado pelo ambiente em que vive, por sua
formação, até por sua genética, de tal modo que sua posição perante qualquer
bifurcação independe de uma posição pessoal: ainda que não perceba, tudo já
está devidamente formatado em seu subconsciente. Outra vertente que retira a
responsabilidade pelas escolhas é o Fatalismo. São as doutrinas que decantam um
destino já escrito e irrevogável, guiado por um certo ordenamento universal de
pleno equilíbrio e imperceptível pelos indivíduos. Como nas correntes deterministas,
também aqui as escolhas são ilusórias, apenas uma consequência sem intervenção
do próprio ser optante. Nestes casos, a liberdade está tolhida e há pouco a se
falar em responsabilidade do ponto de vista filosófico, o que reduz muito o
valor das questões éticas.
Já as correntes filosóficas que abraçam o livre-arbítrio têm
muito mais sensibilidade com relação à Ética, porque aqui temos as escolhas
tomadas conscientemente, e há medida entre causa e consequência. Em tese, a
maioria das religiões é aderente ao livre-arbítrio, porque é preciso que faça
sentido a atitude do fiel perante o ordenamento divino. Só que é óbvio que essa
liberdade, na maioria de suas concepções, é um artefato meramente ideológico.
De fato, há uma incongruência entre onisciência divina e possibilidade de
escolha humana. Se uma divindade conhece tudo, inclusive instâncias futuras,
então o destino está traçado, e o caboclo-súdito está fadado àquilo que lhe é
determinado; suas decisões são de araque, e temos um Fatalismo mal-disfarçado. O
que temos, neste caso, é uma predestinação, e ponto final. E há ainda o
problema da coerção: a divindade que exige crença sob pena de um castigo eterno
não fornece livre-arbítrio para sua criatura, a não ser que esta tenha comido
cocô quente e saído no sereno. Quem escolheria livremente um inferno, ou um
limbo, ou uma redução à animalidade? Mas há correntes de liberdade que, ainda
que reconhecendo uma impossibilidade plena de inexistirem elementos que
manipulem as decisões, colocam naquele que faz opções a responsabilidade pelas
mesmas. É o que fazem os existencialistas, por exemplo. Para eles, a
liberdade não é só um atributo humano, mas uma sucumbência que tem o peso de
uma condenação. As escolhas são livres, menos justamente a de fazer escolhas,
naquilo que conhecemos como paradoxo da liberdade. Frente à dor, à injustiça, à
miséria humana, opta-se por nada fazer, e deixa-se tudo à deriva. Essa não é,
por si só, uma escolha, ainda que adotada por livre vontade? Dessa forma, a
liberdade é mais um peso do que uma benesse, uma usina geradora de angústia.
Outras escolas de livre escolha importantíssimas são a Deontologia Kantiana e o Utilitarismo de Jeremy Bentham. Na primeira, não há
sentido ético em atos morais exercidos sem liberdade, e somente tem valor ético
a escolha que é feita por dever (significado do termo grego deon). Decisões que atendam vontades
fogem desse campo, porque o indivíduo não tem a pressão de produzir o
imperativo categórico, ou seja, decidir como se sua ação pudesse ser adotada
como uma lei universal. Melhor dizendo: a cada vez em que eu estiver diante de
uma situação que me obrigue a tomar uma decisão inevitável, deverei pensar como
se eu estivesse estabelecendo normas para serem seguidas por toda a humanidade.
Uma ação que não objetive o cumprimento de um dever, ainda que tenha caráter altruísta,
é escapadiça à ética kantiana, justamente por não estar embutida em caráter
deontológico. Os critérios para ações beneficentes, apesar de bons, não se
fecham em leis se não há a intenção de se cumprir uma obrigação, porque só
estas guardam uma relação com leis. É como se eu pensasse na Física – solto uma
pedra e ela cai, seja no Brasil, no Japão ou no continente perdido de Atlântida.
A pedra é obrigada a cair, é assim que as forças gravitacionais agem sobre
elas, e este é o uso que a razão pura deve fazer das ações morais.
Já o Utilitarismo entende que a vontade livre deve ter um
objetivo bem marcado. Como toda ação humana redunda em uma dicotomia entre
prazer e sofrimento, é preciso que as escolhas se pautem pela perseguição ao
primeiro. Se pensarmos de maneira egoísta, traremos para o campo do individual
a mensuração dessas escolhas, mas o Utilitarismo pensa de modo mais coletivo, e
esse prazer, traduzido em felicidade, precisa ser propiciado racionalmente para
a maior quantidade possível de pessoas. É uma retomada, de certa forma, da felicidade objetiva aristotélica, que possibilita a comunidades inteiras expressar
elementos concretos de prazer, mas que possui uma varinha mágica para acontecer:
a ação ética precisa ser adotada, essencialmente, não pelo que ela tem de bom,
de justo, de certo, mas pelo que ela tem de útil. É com esse foco que uma
decisão aparentemente ruim pode derivar para um resultado bom, ao trazer
utilidade para muitos, e não unicamente para o indivíduo que a toma. Sem
liberdade, estes resultados são ocos de conteúdo ético.
Então é isso. Como eu disse lá no começo, a Ética é um dos
temas mais controversos e mais explorados na Filosofia hodierna, principalmente
por ser um tema muito colado à cultura, que tem por característica uma intensa
variação no decorrer dos tempos, e, mais ainda, estar associada a valores, que
não são confortavelmente adaptados de um espaço para outro, de um tempo para
outro, de um modo de pensar para outro. Por isso, ao contrário do que ocorre
com outras áreas filosóficas, é tema que nunca sai de moda, e sempre é
polêmico.
Recomendação de Leitura:
Normalmente, eu indicaria Ética a Nicômaco, de Aristóteles, como bom livro para saber mais
sobre Ética. Mas, como já o fiz anteriormente, vou mencionar o diálogo
platônico que mencionei neste texto. Recomendo também que os meus diletos
leitores explorem os links que montei neste texto, pois há mais recomendações
em cada um deles. Boa leitura.
PLATÃO. Críton. In:
Diálogos. São Paulo: Cultrix, 1972.
* Axiologia é uma tentativa de se estabelecer o estudo de
valores humanos, que nasce da Economia e que se espraia para outras áreas das
Ciências Humanas. É muito discutível se existe a necessidade de se apartar da
Ética algo que é inerente a ela mesma. Afinal de contas, conceitos de bem e de
justiça, por exemplo, estão na medula desta última. Entendo que o
estabelecimento de um campo a parte somente traria confusão. Vamos ver como os
seus defensores podem nos convencer do contrário. Mas o termo “axiológico” é
plenamente válido quando queremos nos reportar à questão de como os valores
devem ser interpretados.
** O Helenismo é uma fase histórica da máxima expansão
grega, obtida com o império de Alexandre Magno. Muito embora carregasse forte
fundamento dos pensadores clássicos, a filosofia desta época se caracterizou
pelas novas informações obtidas pelas conquistas gregas, ajuntando influências
de pensadores do universo árabe, norte-africano, persa e até mesmo indo-chinês,
aprofundando o traço ético de suas bases.
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