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quarta-feira, 25 de novembro de 2015

Cartas náuticas para marinheiros de terra firme - 10º relato: Pedreira entre porcelanas e destemor da morte

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Muito bem, o roteiro está se encaminhando para o seu final. Eu e a patroa fizemos nossos pacotes logo cedo, com muitas garrafas e badulaques no porta-malas e fomos embora de Monte Alegre do Sul, após o café da manhã incluso no preço. Saímos logo cedo porque pretendíamos ainda dar pneu de comer ao asfalto no dia derradeiro por mais duas cidades antes de aportar em nosso lar, um pouco contrariados pela proximidade do fim da jornada, mas movidos pelas saudades crescentes de filhos, afilhados, amigos e bichos de estimação.

A primeira delas foi Pedreira, bastante conhecida pela produção e comércio de porcelanas. Assim como eu, quase todo mundo acha que o nome da cidade deriva da quantidade de pedras espalhadas por seus montes, e que, de alguma forma, poderiam vir a ajudar na produção de sua mercadoria de destaque. Nada a ver. O nome nasceu da quantidade de “Pedros” envolvidos na fundação do singelo lugarejo, tornando-o insólito. Obtive essa informação no museu da cidade, do qual falarei daqui a pouquinho.


É uma cidade que não foge do modelo das demais pertencentes ao Circuito das Águas, embora seu mote principal seja um pouco diferente, menos aquático e mais artesanal. Artesanal? Mais ou menos. O processo acabou se tornando mais fabril com o correr dos tempos. Mas os prédios antigos estão lá, como a Prefeitura, por exemplo:


A tradicional igrejona matriz é dedicada a Sant’ana, padroeira local, e fica localizada na praça de mesmo nome. Passei por lá em dia de evento – acho que estava sendo celebrada uma primeira-comunhão, e estava apinhada.


Na mesma praça, há uma concha acústica toda estilizada, e parece a mim que o coreto quase que onipresente em todas estas cidades do interior ficou guardado apenas no museu da memória de seus habitantes mais antigos. Mas a peça é interessante.


Se há uma atividade preponderante, nada mais óbvio que haver uma certa concentração de estabelecimentos para divulgar e comercializar o fruto de seus labores. São inúmeras lojas de porcelana e cerâmica, onde são oferecidos os mais variados artigos, desde aparelhos de jantar, abajures, vasos e moringas, arte utilitária portanto, até bibelôs diversos, feitos só para enfeitar. Algumas lojas são bastante simples, e vendem produtos prontos ou crus, enquanto outras são mais sofisticadas. Entrei em uma particularmente interessante, que possui uma espécie de varanda montada sobre palafitas em sua parte do fundo, um espaço zen, afastado do burburinho das compras e que é erigido sobre o rio Jaguari, que corta a cidade. Tentei entrar em contato com a loja para poder postar algumas fotos, mas não consegui. Vou, portanto, apenas dar amostra desse espaço.


O rio em questão é um tanto barrento, mas, segundo os lojistas, é bastante limpo. Notei mesmo que ele não tem um fluxo muito calmo, o que deve revolver o material de seu fundo. As aves pousadas nas pedras (sei lá quais) meio que corroboram sua potabilidade.


Pedreira, nos últimos tempos, também tem se dedicado com afinco na movelaria leve, com itens feitos em MDF (sigla de Medium Density Fiberboard – Placa de Fibra de Média Densidade). Trata-se da mistura de madeira moída e cozida com resinas, que posteriormente são moldadas por prensagem, resultando em um material bastante leve, o que pode ser útil para mobiliário onde não é necessária alta resistência. Em uma das lojas, os artesãos bolaram uma réplica da torre Eiffel:


Mas não se pode deixar de visitar o Museu Histórico e da Porcelana de Pedreira. Aproveitando um sobrado histórico, o lugar é uma fonte completa para quem quiser conhecer os quês e porquês que constituíram o município e o fizeram se tornar o que ele é.


Há muito material para ser estudado, portanto, serei bem breve. Há muitos dados sobre a fundação, as promulgações de leis, os símbolos municipais, e assim por diante. No piso térreo, está situado o equipamento histórico. Mostra itens que exemplificam a cidade em seu contexto urbano...


... e na sua formação rural:


Na parte de cima, a cereja do bolo. Um roteiro completo que explica passo a passo a manufatura de porcelana, exibindo materiais, maquinário, fotografias e peças parciais, desde a extração da matéria-prima até os requintes de finalização do produto:


Não há somente peças artísticas. Há também aplicações industriais e muito uso da cerâmica em isolamento elétrico e térmico, como nos isoladores de rede abaixo:


Mas é óbvio que pensar em porcelana é pensar em arte e em habilidade manual. Há vários armários com portas de vidro que permitem ao visitante observar como as peças são utilizadas para enfeitar e servir. O mané que tirou a foto (eu) esqueceu que espelhos refletem, e é possível divisar quase todo o meu privilegiado abdômen.


Algumas peças sacras foram ambientadas em cômodos acompanhados de móveis, para dar uma ideia de como são utilizados com função ornamental. De fato, dão vivacidade ao ambiente, seja por colori-lo, seja por refletir luz ou dar volume aos diferentes itens do ambiente.


Notem que na foto anterior temos um anjo da guarda. Também são muito comuns as imagens de Sant’ana, pelo simples motivo de, como já disse, tratar-se da padroeira local. Temos abaixo uma amostra estilizada de Sant’ana educando Santa Maria.


Em outro móvel, mais uma Madona, desta vez refletindo o estilo renascentista, em uma abordagem que eu vejo com muita raridade: bastante ousada.


Para fechar, também em Pedreira encaramos um Festival da Coxinha, promovido pelo bar Pedrock’s, misto de boteco de beira de estrada e moto clube, nome este que brinca com o nome da cidade e com a lendária terra dos Flintstones (Bedrock).


No tal festival, há coxinhas para todos os gostos: carne, queijo, camarão, palmito, bacalhau, etc., além, é evidente, das de frango. Todas boas, em tamanho e sabor. Nos vidros da porta de entrada, uma coletânea das escuderias que por lá passaram, vindas de todas as partes do estado.


Não pude deixar de comentar com o dono do lugar sobre a escuderia de alguns colegas de trabalho, de quem pediu o escudo. Já o obtive, e levarei a Pedreira assim que possível. Trata-se dos Pintinhos do Asfalto. Como são meus amigos, não tecerei nenhum comentário, limitando-me a submeter sua arte à apreciação dos meus leitores:


E, para variar, pus-me a refletir. Moto-clubes podem ser vinculados a um monte de significados que transcendem o simples fato de se juntar aos amigos para beber em companhia montados em seus equipamentos de duas rodas (motorizados, por certo). Podemos pensar na liberdade das estradas, na independência e transgressão com relação à sociedade convencional, na exploração bandeirante de locais desconhecidos, na sanha de conquista desses novos territórios, na lógica gregária das antigas tribos, no domínio da tecnologia em que o homem domina a máquina como fazia com os cavalos, no amor storgé que nos dá sensação de pertença, na exacerbação da masculinidade que substitui o membro ereto pela moto mais potente e via discorrendo. Dá para perceber que é bem possível escrever um livro muito circunstanciado sobre o tema, mas quero me limitar, neste momento, a algo mais simples. Sabemos que motocicletas possuem limitações com relação a outros automotores, como capacidade de bagagem restrita (inclusive estepes), menor proteção contra intempéries, proteção insignificante contra acidentes. Por outro lado, há uma maior dificuldade de detecção pelos temíveis radares, há uma gama muito maior de plasticidade dos movimentos, permitindo ao condutor incauto se espremer por fendas inimagináveis, e desafiar as regras da Física e da legislação é mais alcançável. À guisa de Euclides da Cunha, informo que não só o sertanejo, mas também o motociclista é, antes de tudo, um forte. E, como tal, sente prazer em se expor a riscos. Por que?

Primeiramente, devo dizer que essa dinâmica do risco não é só do agrado dos membros dos moto-clubes. Os seres humanos, em geral, têm certa propensão a se expor a riscos, alguns controlados, como as montanhas russas dos parques de diversão (argh!); outros, terceirizados, como os filmes de terror. Mas, muitas vezes, esses riscos são absolutamente reais, como nos esportes radicais e nos de velocidade.

Já procurei falar sobre a lógica da substituição da guerra, em um texto onde apliquei a dialética hegeliana aos célebres e melancólicos 7 X 1. Mas ela não pode ser atribuída sem malabarismos a qualquer esporte, especialmente naqueles individuais. Ora, direis: não existe hoje esporte exclusivamente individual. Bem, exclusivamente não, mas essencialmente sim. Há sempre equipes de preparação, técnicos, médicos, roupeiros e muitos outros. Mas o âmago de esportes como tênis, atletismo e natação (exceto revezamentos) está no esportista isolado, no indivíduo atleta. Não há substituição nem sentido de equipe. Aqui, o sentido de reprodução do campo de batalha do modo como coloquei fica prejudicado.

A presença do fator risco, exacerbado em esportes de velocidade, pode ser explicado por dois outros fatores: um atávico-psicológico e outro fisiológico. De fato, o homem, assim como todos os animais, precisa conhecer bem suas capacidades para conseguir se manter sobrevivendo em ambiente perenemente hostil. É preciso saber calcular, por exemplo, o tempo necessário para cruzar um trecho aberto entre dois abrigos, a altura máxima de um salto, a força para suportar o próprio peso e outros planejamentos mais. A cada vez que o faz, o humano testa seu limite e parametriza até onde pode chegar, formando sua caixa de ferramentas para sobreviver. Superar esses parâmetros significa a possibilidade de dar melhor manutenção à espécie. Pode parecer estranho a nós, seres contemporâneos, mas isso já foi tão significativo para nossos mecanismos evolutivos que ficou gravado em nosso substrato mental. A superação do limite, em seu extremo, é um desafio à morte, o que naturalmente é prazeroso.

O segundo fator, conexo ao primeiro, é que a situação de perigo libera em nosso organismo quantidades industriais do hormônio da atenção e da explosão muscular: a adrenalina. Várias pesquisas já puderam detectar que as descargas de adrenalina produzem efeitos que tornam todo o organismo preparado para o ataque ou para defesa – situações de alerta máximo, e que isso propicia sensação de prazer multiplicada aos limites do corpo. A adrenalina, desta forma, funciona como uma autêntica substância dopante, e, por isso mesmo, capaz de viciar.

Este é o motivo pelo qual tanta gente gosta de filmes de ação ou de terror: a adrenalina é liberada aos borbotões, por efeito psicológico. Esportes de risco iminente, como são o automobilismo, o motociclismo, a motonáutica, as escaladas, o paraquedismo, entre outros, mantém o nível deste hormônio alto por muito tempo, elevando o prazer vinculado ao perigo.

Eis aí mais dois motivos pelos quais o esporte não é bom apenas fisicamente, mas filosoficamente também.

Recomendação de filme:

Vamos de clássico do cinema da contracultura, o road movie Sem Destino, muito conhecido pelo nome original Easy Rider, que tem uma puta trilha sonora; um autêntico grito pela liberdade e uma radical visão social esquecida até então pelo cinema ianque.

HOPPER, Dennis. Sem Destino (=Easy Rider). Filme. EUA: 1969, cor, 94 min.

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