(Será que nós só podemos tratar de assuntos nos quais somos especialistas? Somos obrigados a conhecer as minúcias de cada coisa das quais queremos falar?)
Olá!
Poucas vezes eu falei sobre meu trabalho neste espaço, em
mais de 300 textos. O motivo é óbvio: eu não ligo para ele. Não chega a ser um
desgosto completo, daqueles de pavimentar depressão, mas tem aquele monte de
coisa – não é criativo, carrega muita pressão, envolve muita paciência. Não é
aquela coisa aprazível, que gostamos de ficar contando aos netos que não tenho
ou na mesa do jantar, que tenho. Enfim, eu trabalho com informática, mais
especificamente na área de levantamento de requisitos.
Esse é o meu ganha-pão, e por isso eu o aturo. Minha porção
professor, eu a exerço de maneira bissexta hoje em dia, mas já trabalhei em
escolas públicas e privadas, além de preparar e ministrar cursos e até mesmo
treinamentos. É o que eu gosto de fazer de verdade, e projeto retomar a
atividade com afinco quando eu me aposentar. E se.
Ora (direis), se te comprazes com a atividade docente, e
é-lhe pesado carregar o fardo do exercício incômodo, por que não mudas de
emprego? – questionar-me-á meu habitual interlocutor imaginário. Porque já é
preciso ganhar o pão, e este é mais caro aos professores do que aos informatas.
Fui para a faculdade de Filosofia já velho, e nunca a tive como atividade
principal, como já discorri neste
texto. Não é tempo de chorar, e lido bem com a coisa, não fiquem aflitos.
Acontece que há fatores ingratos neste ofício que me
sustenta. O propósito primário é levantar as necessidades de um cliente,
analisá-las à luz dos recursos e dos dados disponíveis e melhorar a vida
da freguesia. O grifo se dá porque nosso natural conservadorismo faz com que as
especificações de requisitos sejam documentos do ódio, que visam modificar a
vida dos cidadãos ao ponto de dizerem que se tratam de burros que nunca
souberam trabalhar. Não é nada disso, naturalmente.
Acompanhem meu raciocínio. Digamos que uma rotina qualquer
inclui uma conferência dos documentos produzidos por certa equipe. Esta
conferência existe porque há possibilidade de falha humana, por óbvio. Quando
desenhamos um sistema, uma das etapas é averiguar a fiabilidade das
informações, através de processos de cruzamento de dados, de batimento, de
fórmulas matemáticas e via discorrendo.
Estando todos conformes, a análise propõe a eliminação de tal conferência, o
que é uma garantia de rebuliço. “Não é você que vai assinar”, dirá um usuário
mais exaltado. “É para isso que serve uma etapa criteriosa de homologação”,
costumamos responder. Ou seja, não deixa de ser uma maneira marota de você se
esquivar de futuros problemas, mas também não dá para ter coração de mãe e
costas de pai. Cada um que assuma sua responsabilidade.
Mas há um ponto invariável em que sempre chega um
levantamento. Como o documento final será sempre uma peça contra a qual serão
lançados olhares tortos de reprovação, alguém sempre arremessa o argumento
peremptório: “Esses caras acham tudo fácil porque não conhecem nada do serviço
e não comem do pão que nosso diabo amassou”.
Dupla mentira. Uma das fases de qualquer levantamento é
sentar do lado dos diferentes membros de uma equipe justamente para aprender
seu processo de trabalho e enchê-los de perguntas intermináveis, para saber
passinho por passinho o que é feito para obter o resultado final. Há documentos
para espelhar isso e que são validados com os futuros usuários. Desta forma,
aprendemos bastante sobre o trabalho realizado. E a segunda é que essa
afirmação carrega um ar de desautorização, como se fôssemos obrigados a ser
formados na área em que se busca desenvolver um sistema.
Ledo engano, triste ilusão. Eu não preciso saber engenharia
para desenvolver sistemas de engenharia. Não preciso saber de recursos humanos
para desenvolver sistemas de recursos humanos. Não preciso saber contabilidade
(eu sei) para desenvolver sistemas de contabilidade. Eu preciso conhecer os
processos de trabalho e especificar requisitos que façam com que a sua
informatização devolva algum benefício para os usuários. Por “algum benefício”,
nem sempre quero dizer menos trabalho. Esta é uma das vantagens possíveis, mas
do resultado das análises podem ocorrer tarefas que aumentem o controle, a
precisão das informações, a disponibilidade de serviços, etc e que acabem por
demandar mais trabalho. Por isso, o argumento de que precisamos manjar
indistintamente de uma área para desenvolver sobre ela é falacioso. É a falácia
da resposta do cortesão. Nome
curioso, que vamos esmiuçar a partir de agora.
A resposta do cortesão é uma espécie de magister dixit às avessas. A alegação é que o interlocutor não possui conhecimento suficiente para sustentar determinado argumento e, portanto, não está autorizado a falar sobre o assunto. O insólito nome foi criado em razão de uma historinha meio comprida, que vou tentar resumir abaixo.
Acho que todos aqui ao menos ouviram falar sobre o conto do
dinamarquês Hans Christian Andersen chamado A
Roupa Nova do Imperador. Esse fabulista, assim como Esopo e irmãos Grimm,
ficou conhecido por recolher histórias populares e dar a elas um colorido
literário, transformando-as em opúsculos universais. Neste caso específico,
trata-se da lenda de um império cujo líder era extremamente vaidoso, e suas
demonstrações de opulência eram mais expressivas que seu governo em si. Dois
vigaristas resolveram tirar proveito da situação e ofereceram ao monarca uma
roupa sem igual, que seria admirada por todos, especialmente porque somente os
mais sábios teriam conhecimento suficiente para conseguir enxergar seu tecido e
suas sofisticadas tramas, que misturariam seda, prata e ouro. Essa
característica daria ao rei não só a oportunidade de vestir uma roupa
magnífica, mas de saber com precisão quais seriam os funcionários do palácio
verdadeiramente capacitados para suas funções. Mas o custo era caríssimo.
O rei não titubeou. Mandou entregar aos pseudocostureiros
todo o dinheiro necessário para a confecção da peça, que foi devidamente
embolsado pelos ladravazes. Ambos se puseram em seus teares para iniciar o
"trabalho", que demoraria um bom tempo para ficar pronto. De tempos
em tempos, o rei mandava um emissário do palácio para verificar o andamento da
costura, mas invariavelmente ninguém conseguia enxergar nada. Temendo ser
julgados néscios, todos diziam que a obra ia às mil maravilhas, embora nada
fosse visível. Até mesmo o próprio rei, tomado de curiosidade, foi averiguar o
trabalho dos patifes, com o mesmo resultado: nada ver e alegar maravilhamento.
Afinal, essa era a aposta dos dois - como um rei tão vaidoso iria admitir sua
incapacidade?
Terminada a peça, algum palaciano teve a ideia de que a
roupa nova do imperador deveria ser mostrada a todo povo em um desfile, o que
foi feito. À vista de todo o povo, o rei desfilava em praça pública e, embora
todo povo visse que estava peladão, ninguém tinha coragem de afrontá-lo ou
admitir a própria estultícia. Até que uma criança, uma das meninas mais
simples, gritou a plenos pulmões: "o rei está nu! O rei está nu!!!"
Apesar do crescente murmúrio do povo, o rei prosseguiu o seu desfile
impassível, porque achava que o mesmo tinha que prosseguir.
É daquelas histórias feitas para crianças, mas dirigidas a
adultos, como aquelas que mencionei neste
post. Aqui, temos a medida da vaidade humana, que turva até mesmo as
impressões mais reais, e também uma boa dica sobre subserviência, quando
preferimos absorver a impressão do maioral a ter as nossas próprias. Mas vamos
entender o que tudo isso tem a ver com o tema em tela, que é a origem da falácia.
Na primeira década do século XXI, um grupo de pensadores
ateus começou a se destacar no ambiente intelectual com uma crítica muito
contundente ao papel das religiões na vida das diferentes sociedades. Os
principais eram chamados de "quatro cavaleiros do não apocalipse" ou
"quatro cavaleiros do ateísmo": Richard Dawkins, Daniel Dennett, Sam
Harris e Christopher Hitchens. O primeiro (de quem já falei aqui,
aqui
e aqui)
era o mais popular e virulento de todos, o que fez com que ele tomasse muita
pedrada de toda a comunidade religiosa. A principal alegação era de que ele não
tinha como desenvolver argumentos consistentes, tendo em vista a ausência de
conhecimentos sofisticados em Teologia. Por isso, não possui autoridade alguma
para versar as críticas que faz.
Tomando a defesa de Dawkins, o biólogo e divulgador
científico Paul Zachary Myers traçou uma analogia. Em linhas gerais, ele
ironicamente afirmou que a contraposição com base no argumento da falta de
autoridade assemelha-se a um cortesão que afirma que a criança que bradou a
nudez do rei não tem conhecimentos suficientes em alta costura para argumentar
sobre a ausência de roupas do dignitário.
Onde está o cerne da crítica? Dawkins afirma a inexistência
de deus, assim como a menina afirma a inexistência da roupa. Não há necessidade
de conhecimento daquilo que não existe, ora essa. Para os ateus, todo e
qualquer estudo teológico, por mais aprofundado e requintado que seja, é um
estudo sobre nada. Por isso, definir que não há autoridade sobre o assunto é
uma afirmação falaciosa. É uma forma velada de argumentum
ad hominem, inclusive, porque trata o lado oposto como incapaz de produzir
uma crítica.
Colocando agora em um contexto menos histórico e mais
quotidiano, podemos notar que a resposta do cortesão funciona como qualquer
outro tipo de apelo: dispersa do foco principal e introduz material irrelevante
na conversa. Isso acontece porque discutir as especialidades de quem profere
uma proposição tira da mira o argumento em si, que seria quem, de fato, deveria
ser atacado. A ausência de especialização formal não é motivo suficiente, de per si, para que uma pessoa não possa
ser ouvida.
Menciono como exemplo o canal Space Today, conduzido por
Sérgio Sacani. De formação, ele é geofísico, e trabalha diretamente com a
indústria petrolífera. Entretanto, sendo um apaixonado por astronomia, dedica
todo seu tempo livre ao estudo da cosmologia, da astronáutica, da astrofísica e
traz novidades constantes sobre esse universo de conhecimento. Sua pesquisa é
irrepreensível, combinando fontes confiáveis e conhecimento acumulado em anos,
o que lhe dá um gabarito em nível dos melhores mestres. Levando em conta ainda
sua capacidade de comunicação e traquejo na divulgação científica, podemos
considerar que temos um canal ideal para quem curte a área. Ora (direis de
novo), mas ele não é astrônomo. Neste caso, o primeiro a ser feito é comprovar
que ele fala abobrinhas, e depois podemos desautorizá-lo. Não faz sentido algum
desmerecer um argumento unicamente pelo fato de não ter sido proferido pelo
doutor Fulano.
Mas há modos de afirmar legitimamente que uma posição não especializada
está errada por carecer de autoridade. Posso citar como exemplo o remexer de
teses antigas, que já se encontram superadas nos dias de hoje pela falta de
atualização do argumentador. Qualquer pessoa que, como eu, tenha estudado os
primeiros anos no século passado ainda deve ter razoavelmente fresco na cabeça
que Plutão era o nono planeta do sistema solar. Ora, não é mais. A academia
sopesou todas as características que levam um corpo celeste a ser considerado um
planeta e ponderou que há uma não abrangida pelo astro em questão. Segundo a
União Astronômica Internacional, é um planeta o corpo celeste que:
- Gira em torno de uma
estrela;
- Possui equilíbrio hidrostático,
o que lhe dá formato arredondado;
- Tem sua órbita livre, não
sendo influenciado diretamente pela gravidade dos demais planetas.
É nesse último critério que Plutão fura com o conceito.
Junto dele, há uma miríade de objetos celestes que chegam a ter quase seu
tamanho. Além disso, sua órbita é tão excêntrica que, de tempos em tempos,
chega a invadir o perímetro da órbita de Netuno, seu gigantesco vizinho mais
próximo, o que leva alguns cientistas a especular que o ora rebaixado tenha
sido uma lua escapadiça deste último. Por isso, foi rebaixado para a categoria
de planeta-anão a partir de 2006. Em casos como estes, recomendar que uma
pessoa se atualize não é uma resposta do cortesão.
Com isso, podemos concluir que é melhor pensar um pouco
antes de dizer que uma pessoa não afirma coisas corretas sobre uma área na qual
ele não tem vivência. Ou que analistas de requisitos só querem incomodar a vida
dos outros porque não sabem o que estes sofrem. Bons ventos a todos!
Recomendações:
Vamos lá porque serão um bocado. Comecemos por uma coletânea
de contos de Hans Christian Andersen, onde podemos encontrar a famosa fábula
mencionada neste humilde cantinho.
ANDERSEN, Hans C. A Roupa
Nova do Imperador. In: Os 77 Melhores Contos de Hans Christian Andersen. Rio
de Janeiro: Nova Fronteira, 2019.
Depois, indico o canal do YouTube Space Today, do mencionado
Sergio Sacani:
https://www.youtube.com/c/SpaceTodayTV/about
Por último, segue o endereço atual do blog Pharyngula, de P.
Z. Myers, ainda ativo nesta brava internet:
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