(Existem padrões mentais que podem ser comparados a tatuagens? Existem, e nós os chamamos de imprinting)
Olá!
E a patroa criou coragem, fazendo a tatuagem que tanto
queria. Ela vinha namorando as agulhadas já há um bom tempo, mas a coisa
parecia que não ia desatar nunca. Para incentivá-la, arranquei um escorpião do
bolso e a presenteei, no seu aniversário do ano passado. Após pesquisa e fila,
fomos parar em um estúdio de Taubaté, pequeno e bem organizado. Um pouco de
incômodo no começo, para duas horas depois ter as duas flores lilases pareadas,
uma mais para o ombro, outra mais para as costas.
Nossa juventude foi em um tempo em que tatuagens eram MUITO mal vistas, basicamente feitas por surfistas ou bandidos, o que, na época, nem eram considerados tão distantes assim. Explico. Surfistas eram caras que, no estereótipo, não se davam a estudo e trabalho, além de gostarem de "consumos alternativos" (vejam os materiais do grupo Sobrinhos do Ataíde, impagáveis, especialmente no personagem Peterson Foca). Como resultado da baixa dedicação laboral, eram considerados párias sociais como os fora-da-lei. Estúdios de tatuagem como vemos hoje, cheios de cervejas e ares condicionados, basicamente não existiam, e a arte era exercida em valhacoutos realmente medonhos. Mas os desenhos eram muito diferentes dos de hoje, mais rústicos e com aquela coloração esverdeada típica. Agora, as peles parecem telas de pintura.
Eu, já nos meus quinze anos, era louco para fazer uma
tatuagem. Mas acontece que, salvo raríssimas e honorabilíssimas exceções,
empresas simplesmente não contratavam tatuados, pelos motivos já expostos
acima. Duas eram as alternativas, então: fazer uma tatuagem escondida (e não a
revelar) ou trabalhar por conta. Como a primeira não faz sentido e a segunda
era bem difícil para quem vem do proletariado, o jeito foi por a viola no saco
e deixar o projeto tatuagem para quando ela fosse mais aceita socialmente.
E esse tempo chegou, não é incrível? O medo da patroa não
era com a dor das agulhadas. Isso ela cansou de tirar de letra, com aplicações
de enzima no couro cabeludo e de glicose nas capilares das pernas, em episódio
que já contei aqui.
A questão maior era mesmo de aceitação social, porque ela própria tinha essa
visão ruim que acabei de mencionar, e só um longo período fez com que sua ideia
primeiramente mudasse, para depois ter vontade de ter uma tatuagem e, por fim,
resolvesse encarar as reações de terceiros.
Agora, pensando de forma um pouco mais abstrata, tento
raciocinar se há alguma forma de tatuagem mental. Afinal de contas, toda forma
de disposição social (incluindo preconceitos) é deveras arraigada, e só um
tempo muito longo e uma oposição muito insistente pode fazer com que seja
passado um laser nos consensos deliberados. O pensamento pode ser tão marcado
quanto as agulhadas de uma tatuagem. Mais até, porque as tatuagens não são transmitidas
entre as gerações. Os juízos preconcebidos, esses sim.
Mas não é exatamente isso que eu quero dizer. Eu lembro que
nas aulas de Psicologia da Educação, especialmente nos capítulos de mecanismos
da cognição, falava-se de fenômenos mentais em que se dava uma gravação
permanente de conteúdos no cérebro, desde a mais tenra infância. É óbvio que é
possível pensar no medo irracional que temos de insetos do tipo barata, ou de
ratos, ou de lagartixas. Esse tipo de coisa é incutido em nossas mentes por nossas
mães (e pais) e lá ficam gravados pelo resto da vida, mesmo que tomemos plena
consciência de que o risco até ocorre na forma de doenças, mas não é nisso que
pensamos quando encaramos a cascuda. Temos um medo na sua forma pura, um medo
tão desvinculado da realidade que chega a perder o próprio objeto. Por que,
hein?
Bom… embora o medo não seja como o conteúdo de um livro, é
algo que se aprende. E é muito útil na nossa vida. Nascemos com certos medos
porque eles nos ajudam a sobreviver. Só que, se eles precisam ser aprendidos, é
preciso que este processo seja rápido. Uma criança normalmente não distingue
muito bem o que pode ser perigoso para ela, e coloca toda sorte de porcaria na
boca, por onde ela faz alguns reconhecimentos, mas também quebra a cara. Quando
ele pega uma barata e vai levá-la à boca, sua mãe (se não chegar a desmaiar)
terá uma reação contundente, que vai assustar o bebê e ensiná-lo, independente
da forma, de que há algo errado nesse seu ato ou no objeto a que se dedica.
Para todo o sempre, esse “modelo” de reação persistirá.
Poderíamos pensar, sendo assim, que o processo de
aprendizado mais primitivo vem dessa reação a reações, mas há coisas que são
ainda mais instintivas do que esse modelo de interação. Não dizemos que os
filhos reconhecem suas mães só de olhar? Parece poético, mas tem sua dose de
realidade.
Como compreender esse processo? Se você for daqueles
criacionistas arraigados, terá que olhar apenas para a espécie abençoada e será
um pouco mais difícil de entender esse fenômeno. No entanto, se você achar a
evolução convincente, poderá olhar para outras espécies e tirar algumas
informações a partir do comportamento delas. E é o que o zoólogo e psicólogo
Konrad Lorenz fez.
Este austríaco criou uma variação da Biologia chamada de etologia,
partindo do princípio que seria necessário estudar os padrões de comportamentos
para explicar como se dá a cognição de certas ações. Ele observou em aves que
certos comportamentos absorvidos ainda nos primeiros momentos de vida são
gravados de tal forma na mente dos filhotes que são carregados pelo resto de
suas vidas. Parece existir algum espaço mental que precisa ser preenchido de
imediato, tão logo vejam a luz. Logo que eclodem de seus ovos, os patinhos
procuram qualquer coisa maior do que eles e que se mova por perto. Na imensa
maioria das vezes, essa coisa será sua mãe, e o código instintivo diz que é
seguro estar próximo a ela. Com isso, a lacuna estará preenchida e eles viverão
da melhor forma possível. Todavia, é plenamente possível acontecer um erro
nesse processo, porque o código mental dos patinhos diz assim: "siga a
primeira coisa que você ver se movimentando". Essa coisa pode não ser sua
mãe, mas outra ave, uma pessoa, ou até mesmo um objeto experimental inanimado,
como testou Lorenz. Os bichinhos que usou em experiências andavam atrás dele
como se fosse sua mãe, com aquele gingado típico dos patos. E ele deu a esse
fenômeno o nome de imprinting, ou estampagem, em português. É uma
alegoria para o processo de “carimbo” que um papel recebe para não mais ser
apagado, ao menos sem deixar uma série de esfolamentos (o que não deixa de ser
um testemunho de que por ali passou uma impressão permanente).
O imprinting seria, então, um fenômeno adquirido
instintivamente, que será carregado pelo restante da vida do indivíduo. Quem
cria canários está acostumado com o imprinting sem nem mesmo se dar conta do
termo técnico. O que faz com que os filhotes comecem a cantar é a imitação dos
pais, já que as mães somente e ocasionalmente piam. Se um canarinho não for exposto
a cantos, ele não aprenderá a cantar, ficando limitado a piados parecidos com
os das meninas. Mais ainda: embora haja um espectro razoável de melodias,
somente àquelas que o filhote for exposto farão parte de seu repertório. Os
criadores têm um truque para fazer com que isso aconteça, que é colocar um
“esquentador” para puxar o canto dos meninos, outro canário que já tem as
faculdades de canto desenvolvidas. Ou seja, se quisermos que o novo cantor
tenha um repertório mais amplo, deveremos colocá-lo, desde bem jovem, a várias
fontes canoras. É um fenômeno que eu presenciei em casa. Eu tinha um canário
salsa reprodutor que teve seus filhos de primeira ninhada, e repassou a eles
seu canto campainha, aquele de vibratos muito rápidos, como se fosse um
guitarrista de heavy metal. Ganhei um belguinha amarelinho, amarelinho, que
tinha um canto muito mais modulado, com uma gradação bem mais suave, à moda dos
músicos de jazz. A segunda leva de canarinhos sabia misturar muito bem os
trinados ligeiros do pai com a costura melódica do “tio”. Ou seja, tendo dois
canários adultos cantando, não adianta fazer guerra: um não aprende com o
outro. Entretanto, os filhotes, independentemente da filiação, aprendem cantos
mistos. Passada uma determinada idade, o canto não muda mais, e essa padronagem
permanecerá pelo restante de sua vida artística. Não é um belo exemplo de
imprinting?
Percebam, portanto, meus queridos, que o imprinting tem uma
importante porção instintiva, mas que não pode prescindir do ambiente. Ou seja,
imprinting e instinto são coisas distintas. A parte do instinto está na
predisposição a preencher uma informação necessária aos elos mentais de uma
criatura, mas que não tem como existir sem a parte ambiental, de onde vem a
informação que o instinto tanto espera. O organismo do ser espera que a
modelagem seja mantida por toda a existência do indivíduo e, de certa forma, é isso
mesmo o que acontece. É óbvio que alguns comportamentos são sazonais, e, com
isso, abandonados após algum tempo utilitário. O patinho não perseguirá a falsa
mãe para sempre, mas certamente influenciará na maneira como ele atuará como
adulto, apresentando-se como mãe (se for fêmea).
O ser humano entra na mesma lógica, ainda que sua capacidade
de raciocínio permita com que certas estampagens possam ser remodeladas. O
instinto também em nós existe, bastando pensar na defesa inútil que faríamos
com as mãos se percebêssemos um piano
caindo sobre nossa cabeça. Também em nós o instinto é uma reação imediata a
uma situação que exige resposta rápida. E também em nós essa é uma janela para
a gravação de impressões. Mas não é só. Temos cunhagens sempre que nos é
apresentado conteúdo novo e desconhecido. A lacuna que se abre para o
imprinting é exatamente esse vazio em que se faz necessário um preenchimento. O
primeiro conteúdo que lá entrar ficará fixado, mesmo que venha a ser
reelaborado futuramente.
Um dos comportamentos mais fáceis de se observar de
estampagem no ser humano vem do exemplinho da boca que mencionei logo agora.
Essa tendência a levar tudo para a boca vem pelo imprinting causado pelo ato de
mamar. Um recém-nascido, quando vai mamar pela primeira vez, não sabe que seu
sofrimento pode ser amenizado pela ingestão de alimento. Quem sabe disso é sua
mãe, e a chave do instinto somente entra no ato da sucção. Isso grava no bebê
um fato novo: colocar um seio na boca causa a satisfação do arrefecimento de um
incômodo; no caso, a fome. E tudo vai para a boca após isso como consequência
do imprinting.
Isso perdura pela vida inteira. Pense em qualquer coisa que
lhe foi provada errada. Vou dar um exemplo meu. Sempre achei que uma boa dose
de maizena ajudava a dar cabo dos desarranjos intestinais tão frequentes anos
atrás. Provado e mais provado que isso não funciona, ainda hoje quando tenho espasmos
fico tentado a tomar uma boa dose da adstringente solução, mesmo sabendo que
nada faz a não ser dar uma bombardeada na quantidade de amido. Está lá gravado
na minha cabeça, e a simples menção de um desconforto faz um restore
dele para minha memória de trabalho. É inevitável.
Isso tudo está no substrato da espécie. Eu fiz aquela infame
comparação entre um ser pronto e acabado e a aceitação à ideia de evolução
porque não há como compreender estes fenômenos fora dos mecanismos evolutivos,
a não ser que sejamos irrealisticamente concessivos com um pensamento
sobrenatural. Já havia notado Lorenz que as homologias são indisputáveis, tanto
no plano físico, como já observava desde Darwin, quanto no equipamento
psíquico, que é tão hereditário quanto uma pinta ou um cabelo avermelhado. Se
temos alguns comportamentos que se assemelham aos de macacos, de mamíferos ou
de vertebrados, é porque lá atrás, há milhares e milhares de anos, tivemos
ancestrais comuns. E nesses ancestrais já existiam mecanismos cognitivos que se
baseavam no imprinting.
Essa é a nossa tatuagem mental. O imprinting é uma peça
vital nos nossos processos de aprendizagem, porque uma cognição bem feita tende
a se alastrar pelo tempo, e é muito mais difícil de ser rearranjada quando
absorvida impropriamente. É algo que nossas escolas deveriam levar em conta na
exposição de seus conteúdos, porque tudo o que vem depois não será tão simples
de demover. Bons ventos a todos!
Recomendação de leitura:
Bom livro para compreender as ideias de Lorenz e saber mais
sobre etologia:
LORENZ, Konrad. Os Fundamentos da Etologia. São Paulo:
UNESP, 1995.
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