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segunda-feira, 19 de setembro de 2022

Tá, só não saquei bem o que é esse tal de (37 - Urbanismo)

(Urbanismo é o tema da vez. Às vezes parece frio, mas não dá para viver unicamente em espaços que se alastram ao sabor do vento)

Olá!

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Quando eu era eu-menino, ainda em tempo que se podia mandar um cidadão de oito ou nove anos comprar verdura no chacareiro, minha mãe mandava-me fazer exatamente isso: “vá na chácara do Seo João e traz um pé de alface”. Não era longe. Bastava descer a ladeira onde eu morava até o fim das casas, onde aparecia um córrego e, do outro lado, as plantações do precitado agricultor. Para chegar lá, eu atravessava por uma pinguela ou brincava de Tarzan na corda que estava amarrada na imensa árvore na margem do riozinho. Isso tudo onde hoje é a Avenida Professor Luiz Ignacio de Anhaia Melo, conhecidíssima em São Paulo pela quantidade industrial de agências de carros usados. Sim, São Paulo – Capital, Terra da Garoa, Metrópole da Solidão, Capital da Vertigem e outros epônimos.

São Paulo é repleta de rios subterrâneos, alguns embaixo de logradouros muito famosos. Sob a Avenida Prestes Maia, temos o Rio Anhangabaú, o mesmo que dá origem ao famoso vale, de tantos shows e assaltos; na 9 de Julho, tem o Córrego Saracura, que inclusive empresta seu mascote para a Vai-Vai; na 23, o Itororó, com seu Palacete finalmente reformado. Tem o Rio da Água Espraiada embaixo da Avenida Roberto Marinho, o Córrego da Traição que fica no subsolo da Bandeirantes, o Riacho do Tatuapé que está oculto pela Salim Maluf e a tal Anhaia Melo tem sob si o Córrego da Mooca, o curso que eu transpunha para angariar hortaliças. Para quem observa os dois ambientes em um intervalo de 50 anos, não há praticamente nenhum referencial que consiga fazer reconhecê-los como sendo o mesmo. Eu não vou aqui fazer nenhum juízo de valor sobre nostalgia de lugares que nos eram caros, nem de prejuízos causados pela impermeabilização das grandes cidades, mas vou focar no processo de transformação do meio urbano e na área do conhecimento voltada para esse tema, o Urbanismo. É dele que eu falarei hoje.


Hoje é consenso científico de que nós, humanos, descendemos de algum ancestral comum com os demais macacos, e que este já guardava características que foram transmitidas a nós e aos demais primatas. Uma delas é a tendência a se conviver em grupos, o que traz evidentes vantagens para os indivíduos em si e para a coletividade como um todo. É uma espécie de ganha-perde onde todos conseguem uma espécie de equilíbrio entre as vantagens auferidas e os tributos pagos. As relações humanas são bastante complexas, mas a lógica subjacente é simples: diante de um dente-de-sabre, meu destino como indivíduo é certo – virar almoço. Já em um bando de cinco ou seis, passa a ser uma hipótese, e não mais uma certeza. Dessa forma, eu abro mão da exclusividade do alimento que eu obtenho em troca da proteção coletiva para comer com uma mínima paz. Melhor dividir o alimento do que ser o alimento.

Mas essa é uma origem muito remota. O que foi o real nascedouro do conceito de cidade foi o domínio da agricultura. Enquanto os grupos eram predominantemente coletores ou caçadores, eram sujeitos aos humores do hábitat. Quem tem uma mangueira no quintal sabe que ela só dá fruta no fim do ano. Se essa for a base da sua alimentação, haverá problemas nos outros meses. Ou seja, nos momentos em que não havia o que comer, nada mais se poderia fazer a não ser migrar para outras paragens.

Entretanto, alguém, em algum lugar do Crescente Fértil* (e pipocando em vários outros lugares), descobriu que era possível usar sementes e mudas para fazer com que as mesmas plantas se multiplicassem mais e mais. Também foi descoberto que diferentes culturas podiam ser alternadas em períodos do ano, e que era possível domesticar alguns animais que serviam de alimento. Pode parecer algo meio prosaico, mas essa foi uma das maiores revoluções ocorridas no gênero humano. O homem deixa de ser um nômade, um cachorro sem dono, um largado no mundo, para se sedentarizar, ficar fixo em um só lugar, já com as intempéries devidamente dominadas.

Só que as vantagens de ser gregário não deixaram de existir. O mundo continuou sendo um lugar perigoso para se viver sozinho, e várias pessoas se juntavam ao redor das plantações e das criações, em regime de coletivismo, fundando algo parecido com aldeamentos. Lá, dividiam suas tarefas de acordo com suas capacidades e trabalhavam em cooperação. Aqueles que tinham a função de vigiar a comunidade ficavam nos extremos e nos pontos mais altos, enquanto aqueles que cuidavam das crianças ficavam mais internalizados, e assim por diante. Esses são os germes das cidades.

Evidentemente, o desenvolvimento das cidades se deu em passos miúdos, progredindo à mesma medida que as sociedades que lhe compunham foram ganhando complexidade em sua estrutura. Etimologicamente, a palavra cidade vem do latim civitas, mas é importante entender porque quando queremos pensar em estrutura física falamos em urbe, e não em polis, termo tão caro à filosofia.

Os três termos têm um significado bastante próximo, mas as sutis diferenças entre si contém toda a explicação para seus diversos usos. A polis grega se origina da reunião das famílias em torno de objetivos comuns, calçado especialmente em interesses políticos e religiosos. A polis carrega consigo um significado de pertença, de reunião de indivíduos unidos por costumes e consensos, dando a ela um aspecto que beira o metafísico: a polis é algo a mais que a soma de seus cidadãos, carregada de simbolismos.

Já a urbs romana é concreta. É a materialização de um determinado território que precisa ter boas condições de abrigar uma população, com vias de acesso, habitação, fortificações, praças públicas, prédios governamentais. Em suma, aqui, o principal ponto de interesse é a maneira com a qual os pontos físicos são dispostos para que as pessoas possam exercer seu convívio. O conceito urbano abarca o meio como uma cidade funciona da melhor maneira possível. Pensada como meio urbano, as casas são casas, não são lares, como seria na polis. Ou seja, elas importam pelo seu sentido concreto, sem os simbolismos.

As cidades vão se desenvolvendo de forma natural, de acordo com o objetivo com o qual nasce. Normalmente, elas pressupõem uma estabilidade de habitantes, e isso se demonstra por uma proximidade razoável com as vias que levam a ela. Por exemplo, é comum que se busque uma proximidade às águas, sem, no entanto, que se torne arriscado estar submetido às inundações. Isso é diferente nas cidades eminentemente mercantis, onde os núcleos urbanos ficam próximos dos cursos de tráfego. Isso é bem fácil de ver em cidades de tropeiros, que pagam o risco da proximidade de rios e vales em nome da estrada por onde correm as juntas, como é o caso de São Luiz do Paraitinga. É bem verdade que esses lugares mais desfavorecidos passam a ser ocupados pelos pobres, excluídos dos pontos melhores, e com isso muitos dos problemas a serem resolvidos nas cidades vão se multiplicando.

Mais modernamente, surge o conceito de cidade planejada, aquela que escapa do conceito natural e já tem em seu nascedouro um propósito mais específico. Quando isso acontece, é plenamente possível verificar como os desenhos urbanos estão menos ligados aos contornos naturais e os tecidos urbanos são mais uniformes, muitas vezes dividindo a mancha urbana em setores específicos.

O urbanismo pressupõe, como pudemos ver até agora, a existência das cidades, e uma oposição bastante comum é distinguir o meio urbano da zona rural. Embora haja tecnologia de ponta cada vez mais presente no campo, é bastante razoável definir que os arranjos necessários nesse meio de fato não têm muito a ver com o que se pratica em uma cidade. Por essa razão, quando falamos em urbanismo, estamos precipuamente pensando naquilo que se desenrola nas áreas mais adensadas, onde há uma continuidade construtiva e uma justaposição habitacional. O conceito de atraso dos ambientes rurais já ficou para trás há muito tempo.

O urbanismo, já agora em um mundo que tem sua população preponderantemente nas cidades, nasce com o objetivo de tornar a vida urbana mais bem adaptada às grandes concentrações, grosso modo. Como grande desafio, tem o propósito de minorar as questões típicas do desenvolvimento desordenado sem tornar as cidades espaços da exclusão e do automatismo. Ele não se confunde com a arquitetura, embora seja subsidiário dela. É preciso lembrar que a arquitetura é uma arte, cujo principal escopo é estético: sua visão está voltada mais para a forma do que para a praticidade, embora não a exclua. O urbanismo, por outra mão, tem um objetivo eminentemente prático, mesmo que sem necessariamente deixar de ser belo. Para o urbanista, fatores como as velocidades praticadas nas vias, o tempo que se leva para ir de casa ao trabalho, a facilidade de se chegar a um hospital ou a quantidade de escolas espalhadas pela área urbana são a grande matéria-prima.

Não só a arquitetura é um aspecto primordial para o urbanismo. É necessário revirar os aspectos geográficos de uma localidade para compreender o que é aquele espaço e como ele pode ser ocupado da maneira mais racional possível. Em um mapa, colocado em cima da mesa de um escritório, é muito fácil fazer rabiscos e garatujas geniais, mas inócuos (quando não prejudiciais). A ocupação urbana desordenada já deu suas caras por aí, e para acomodar a cidade é imprescindível conhecê-la em seus aspectos físicos: onde se eleva, onde alaga, onde venta, onde é úmida, onde o solo é rígido, onde todas as características físicas e geográficas podem fazer com que se vença ou perca o jogo. Já pensou construir uma ponte com altura abaixo do padrão dos caminhões? Já aconteceu, viu?

Pode-se perceber que a preocupação do urbanista é em fazer a cidade funcionar, mas isso pode ter muitas nuances. Como eu explanei no texto anterior a este, houveram urbanistas que se opuseram a um planejamento que somente considerasse a funcionalidade das cidades, e não que as mesmas fossem habitáculos de histórias e relações sociais. Esses urbanistas, retomando os conceitos de polis e urbs, entendiam que a cidade é uma fusão de visões, sob pena de não cumprirem seu papel. Uma cidade não é só um lugar onde as pessoas vivem como organismos, mas como cidadãos, e isso empresta à cidade uma vida para ela também. A solução dos problemas urbanos não passa somente pelo seu funcionamento como um relógio, mas no atendimento das expectativas das pessoas, que a fazem sentir prazer em andar pelas ruas.

Pois é isso. O menininho de cabelinho enrolado que voltava com um maço de alface embaixo do braço não tem mais isso em São Paulo para fazer, porque era preciso que a cidade crescesse e pudesse se expandir, e hoje as saudades não são suficientes para que a cidade novamente se modifique, e ela apenas vai continuar a se modificar, para melhor ou para pior, mas para provar que a urbe caminha como a própria vida. Bons ventos a todos!

Recomendação de canal:

Eu sigo o canal abaixo porque muitas vezes ele percebe coisas que nem passam pela minha cabeça e, nesse sentido, tem toda uma carga filosófica por trás dele, mesmo que não se concorde com tudo. 

São Paulo nas Alturas - Raul Juste Loures

https://www.youtube.com/c/SaoPauloNasAlturas

* Crescente fértil é uma região do atual oriente médio compreendida entre o rio Nilo e o golfo pérsico que era altamente irrigada, e consequentemente conseguia manter a fertilidade em região desértica. Tem esse nome por conta de seu formato abaulado, que lembra uma lua crescente.

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