Marcadores

quinta-feira, 14 de maio de 2020

Inferências diversas como matéria-prima para a metodologia científica, ou tempos de saber melhor como funciona a Ciência

Olá!

#FiqueEmCasa

Eu tenho reiteradas vezes neste espaço mencionado como é frequente a maneira como as Ciências vêm sendo colocadas contra a parede nesses loucos tempos em que vivemos. Tem sido até cansativo falar mais de uma vez sobre os mesmos temas, mas eu falo com a liberdade de quem tem a consciência leve de já ter escrito não só sobre os seus prós, mas também sobre os seus contras, inclusive sobre uma certa arrogância da comunidade científica. Então não posso negar que, a parte toda a dor, sofrimento e desconforto que o coronavírus tem causado para nossa gente, tenho lá no fundo uma satisfaçãozinha em ver tanto maluco na expectativa de que essa mesma Ciência lhes traga uma resposta e, de preferência, uma cura. No entanto, ainda permanece uma ignorância sem limites (que vemos inclusive em altos escalões), e o pessoal esgota estoques de medicamentos que não tem nenhuma comprovação de eficácia contra a marota doença, como é o caso da cloroquina, deixando pacientes de lupus e malária descobertos em seus tratamentos, e para quem o fármaco é comprovadamente eficaz.  Além disso, a explosão de compras de álcool gel e máscaras dá uma boa mostra do nosso egoísmo, sem contar alguns governos poderosos que resolveram brincar de piratas de respiradores, passando por cima não somente de acordos comerciais, mas de um mínimo de alteridade. Como todas essas coisas ainda estão acontecendo, e certamente ficarão marcadas em nossas mentes, quero crer que as pessoas passarão a olhar com um pouco mais de confiança para a Ciência, e vou por em prática uma vontade antiga, mas que eu estava desanimado em fazer. Em um serviço de utilidade pública, vou tentar didaticamente explicar o que é o método científico.

Ora, direis, essa não é tarefa de cientistas? Que pode um pobre professor de Filosofia querer explicar melhor do que um praticante do ofício? Não, cara-pálida. Um cientista não está preocupado com o desenvolvimento de um método, mas em segui-lo. A tarefa de discernir qual é a segurança que se espera para o conhecimento da verdade possível é, sim, tarefa da Filosofia, mais especificamente da Filosofia da Ciência, como discorri neste texto. Portanto, a tarefa é cabível e importante de fazer. Ainda que meu alcance seja muito pequeno, entendo que faz parte de meu mister e de meu sacerdócio. Se uma só cabeça se puser a pensar por conta de meus escritos, me dou por contente.

No entanto, a faina não é tão simples assim, e eu preciso, a guisa de introdução, falar sobre a questão das inferências, porque essa é a base de todo o pensamento lógico, o carpete no qual a miss científica deve desfilar. Vou dedicar este post a esse assunto, para depois, no próximo, e já bem fundamentado, partir para o método em si. Vamos lá!


Por mais que quase nunca estejamos concentrados neste tipo de coisa, nosso pensamento tem uma espécie de esqueleto, que faz com que nossas reações diante do mundo sigam mais ou menos uma mesma lógica. Pensa só: você vê carne e cerveja na geladeira. Do estranhamento inicial, você puxa elementos que possam justificar aquela infrequente presença em dias de tanta carestia. Olha para o calendário e averigua alguma data especial, tenta lembrar-se de um aniversário, ou de um fato memorável... No final das contas, o mistério é resolvido pela patroa: com essas reprises de final de copa do mundo, ela quis dar uma recriada no clima e comprou o almoço de então – o tal churrasco e cerveja. Então temos a percepção de um fenômeno e os diversos mecanismos mentais que tentam decifrar a charada. Fazemos isso o tempo todo e, claro, não ficamos raciocinando sobre o raciocínio.

Quando lançamos perguntas ao universo, acontece a mesma coisa, com o acompanhamento da nossa velha sanha por conhecimento. O problema está na definição deste último, que tem uma familiaridade quase que incômoda com a verdade demonstrável. Afinal de contas, creio que ninguém gosta de suspeitar se o estranho aditivo contido naquele misterioso vidrinho do armário é tempero ou veneno. Por isso é bom conhecer – uma questão de sobrevivência, e não mera curiosidade.

Acontece que, de acordo com o nível de precisão que queremos para nossas respostas, aumenta proporcionalmente o rigor com o qual precisamos construir nossos raciocínios. Se a coisa chega ao ponto de se buscar respostas científicas, mais se precisará ser metódico com os pensamentos. A Ciência sempre está preocupada em localizar a verdade, o conhecimento certo e seguro. E como se mede a verdade? Através das inferências.

Inferência é um nome que se dá para as operações mentais em que se pode atribuir um valor de verdade a uma proposição, que, por sua vez, como sua própria etimologia nos denuncia, é uma proposta, uma sugestão, algo que se apresenta para dar uma resposta, mas que é passível de receber um valor crítico de “sim” ou “não”. Quando se faz uma proposição, faz-se uma submissão a um juízo, e é justamente colocando-a em uma inferência que o fazemos.

Estou no filosofês, e vou usar nosso exemplinho acima para traduzir em português. Quando eu vejo os acepipes e não sei sua origem e destino, começo a fazer especulações: é aniversário? É festa? É almoço especial? Cada uma delas é uma proposição, ou seja, eu proponho uma resposta para a dúvida, que, no final das contas, vem no término de uma cadeia de constatações e raciocínios obtidos a partir da realidade: a carne e a cerveja encontradas na geladeira. As proposições completas seriam mais ou menos assim:


Neste esqueminha, temos as observações iniciais e quatro hipóteses levantadas, sendo que conseguimos comprovação da última. Cada quadradinho representa uma proposição, que pode ser verdadeira ou falsa.  Não são só as respostas finais que devem receber juízo de valor, mas cada um dos passos. Por exemplo, é necessário que de fato tenham sido vistas as guloseimas na geladeira, porque poderia ter sido uma ilusão de ótica, ou poderiam não ser para o bico do contribuinte; também é preciso que a churrascada efetivamente represente um motivo de festa para aquela família. Gaúchos comem churrasco no dia-a-dia, como é o caso do feijão preto dos cariocas, do cuscuz dos baianos, do açaí dos paraenses. É preciso que tudo isso faça sentido antes de se chegar no ponto das hipóteses, cada uma delas também mensuráveis e capazes de ganhar um valor de verdade. Então uma inferência é isso: uma espécie de passo a passo mental, onde a validade de cada um deles leva o raciocínio adiante.

Claro que a Ciência não se vale de carnes e cervejas em dias de futebol para preencher seus cânones, mas, conforme a minha proposta, fiz uma simplificação bem grosseira sobre os mesmos raciocínios que utilizamos todas as vezes em que queremos obter conhecimento seguro. Mas a coisa não é tão simples assim, obviamente. Há diferenças na maneira como o raciocínio lógico tem suas formas, e, de acordo com o foco no qual este raciocínio se dirige, teremos uma forma diferente. Em metodologia científica, utilizam-se três destas formas de raciocínios lógicos: a dedução, a indução e a abdução. Isoladamente, não são capazes de produzir todo o encadeamento lógico necessário para que a metodologia científica se consolide, mas, uma vez articuladas entre si, cada uma com seu respectivo papel, fazem com que a mágica (mágica não, em Ciência não há mágica) coisa aconteça. Vamos a elas.

1 – Dedução

No campo argumentativo, temos uma dedução quando, a partir da colocação de premissas, chegamos a uma determinada conclusão, o que chamamos de consequência lógica. Mas o que são essas tais de premissas? Com origem no latim, essa palavra vem de praemissa, que significa “colocar antes”. Isso nos indica que uma premissa é um dado, uma informação ou uma proposição que permite o desenvolvimento de uma lógica conclusiva. As premissas são ideias que movimentam um raciocínio na busca de um desfecho, e na forma dedutiva elas são a matéria-prima da conclusão que lhes seguem.

Vamos ao nosso exemplo anterior. É possível montar o raciocínio da seguinte forma:

Só fazemos churrasco em casa quando há uma data especial

Há material para churrasco na geladeira

Logo, temos uma data especial

O pulo do gato da dedução consiste em garantir que a veracidade das premissas sempre assegura a verdade da conclusão. Como corolário, temos que uma premissa falsa torna a conclusão necessariamente falsa. Sempre que isso acontecer, temos um argumento válido, ainda que não seja verdadeiro. Note que o grande propósito da dedução está, por conseguinte, em sua mecânica – que sempre assegura lógica na conclusão.

Sem dúvidas, o modelo mais clássico de dedução vem dos silogismos aristotélicos, que encadeiam uma premissa maior, mais geral, a uma premissa menor, mais particular, que são amarradas por um termo médio que não aparece na conclusão. No exemplo, esse termo médio é “churrasco”, por aparecer nas duas premissas e não aparecer na conclusão, mas não existe só esse modelo de dedução, que podem costurar várias premissas para desfechar a conclusão. O importante é que seja sempre mantida sua validade. Se, por exemplo, o argumento fosse mudado para...

Só fazemos churrasco em casa quando há uma data especial

NÃO há material para churrasco na geladeira

Logo, temos uma data especial

... então teríamos um problema lógico, que costuma ser chamado de non sequitur (“não segue que”, em latim). Por que? Porque, sendo verdadeiras as premissas, a conclusão é falsa. Desta forma, esse é um caso de argumento inválido.

Como vimos até agora, a dedução tem o propósito de possuir uma estrutura lógica válida, o que não quer dizer que ele é verdadeiro. Afinal de contas, qualquer das premissas que for falsa (ou ambas) fará com que a conclusão seja falsa, e aí não teremos grandes resultados à nossa frente. Por isso, a dedução realmente boa tem como característica não só sua validade, mas também sua solidez, que ocorre quando temos diante de nós premissas verdadeiras produzindo conclusão verdadeira.

A dedução, apesar de ser tão bonitinha, não passa imune de problemas. O principal deles é que a conclusão já está implícita nas premissas, ou seja, nada mais é do que a definição analítica de uma informação que nós já temos, no final das contas. Isso acontece porque, embora não seja uma regra 100% válida, uma dedução parte de uma afirmação mais abrangente, por vezes universal, e passa por uma afirmação mais restrita, ou seja, mais particular. Seguindo esse fluxo, a conclusão nada mais é do que uma proposição que já estava contida implicitamente nas proposições anteriores. O resultado é que não temos nenhuma informação nova, a não ser a análise de um fenômeno que já estava desvendado. Isso nem sempre é um problema, porque muitas vezes, em Ciências, o que queremos mesmo é desvendar mistérios. Mas a propositura de uma dedução para descobrir novas aplicações nem sempre é a mais indicada. E há ainda o problema de que as premissas em uma dedução são tomadas como axiomas – verdades consensuais. Se um desses postulados cair, cai toda a solidez dedutiva, já que uma premissa falsa torna a conclusão igualmente falsa.

2 – Indução

Pois bem. Se a dedução é boa para dar firmeza às nossas conclusões, porém não nos fornece nada além do que já podemos capturar a partir das premissas, é preciso que exista uma forma de sistematização dos conhecimentos aquisitivos. E como esse tipo de coisa acontece em nossa vida natural? Através da observação contínua e da repetição dos fenômenos, e de uma forma de raciocínio que os sintetize. Vejam bem. Digamos que você seja chegado em bater uma bolinha, mas esteja precisando aperfeiçoar seu chute a gol. Para fazer isso, vai até o campinho treinar várias vezes. Você percebe que várias modalidades de tiro ao gol são eficientes, mas a melhor delas é quando você chuta com o lado externo do pé, a famosa trivela, de maneira a perceber uma curva que se produz quando o golpe é proferido certeiramente. Todas as vezes em que o chute é aplicado condizentemente, a bola descreve uma trajetória que deflete para o lado oposto ao giro do corpo. Em miúdos: a bola faz uma curva em direção à meta, e um chute que aparentemente iria pela linha de fundo morre no fundo das redes. Chuta-se uma e o fenômeno acontece; duas, também, e três, e quatro, e cinco... Forma-se assim uma linha de tendência, que nos INDUZ a crer que todas as vezes em que uma trivela for bem pega na orelha da bola, teremos essa mesma descrição da curva. De um jeito meio brejeiro, descrevi como funciona a indução.

Percebam que o fundamento da indução não está em um encadeamento puramente lógico, como ocorre na dedução, mas na observação e na experimentação. Cada fenômeno é observado de forma a constituir uma espécie de catálogo de novas informações, de modo a formar um arcabouço que dê suporte à conclusão atingida. A indução é, pois, uma ferramenta empírica.

Notaram como na indução o mais importante está na definição de uma regra, e não no desenho do argumento em si? Se por um lado isso permite a aquisição de conhecimento novo, por outro carrega consigo a falta de firmeza que a dedução tem. Voltando ao nosso exemplo, imaginemos que, uma vez bem treinado, o nosso herói-atacante vá por em prática suas novas habilidades, e tendo uma falta em distância compatível, vá arriscar uma de suas trivelas. Afinal de contas, a curva descrita tanto faz a bola contornar a barreira quanto sair do alcance do aflito guarda-metas. Acontece que, embora o disparo saia como manda o manual, a pelota vai em uma jocosa linha reta, indo parar na zona morta, próximo à bandeirinha do corner. Ora, ora, ora... o que pode ter havido?

Essa é a desgraça e a vantagem da indução. Ela nunca consegue elaborar argumentos definitivos. Quando juntamos mais e mais evidências, temos uma probabilidade cada vez maior de que a conclusão esteja correta, mas nunca temos a certeza absoluta. Deste modo, a trivela de nosso embasbacado atacante funciona bem até que um ventinho ordinário compense o efeito do giro da bola para fazer com que a mesma caminhe vergonhosamente reta, desfazendo a tese em segundos. É por isso que não se fala em argumento indutivo válido, mas forte. Porém, por outro lado, como a conclusão indutiva nunca é derradeira, sempre podemos receber informações novas, e aprofundar o conhecimento que tínhamos anteriormente, o que dificilmente conseguimos com o raciocínio dedutivo. Aprendemos, no exemplo, que o vento influencia na trajetória da bola, assim como outras observações farão concluir que o mesmo ocorre com diferentes pressões internas, com o número de gomos, com a consistência do terreno, com a chuva, e così via. Por isso, a indução não é monotônica como a dedução, além de ser ampliativa, no sentido de possibilitar o aprimoramento do conhecimento.

A indução é menos preocupada com a forma, e mais com os percentuais de acerto de suas previsões. A cada novo resultado que corrobora a ideia inicial, mais forte fica o argumento defendido, até que seja esperado caminhar para uma generalização. Um espectro pequeno de itens investigados faz uma indução fraca, que vai ampliando seu grau de força na medida em que ganha novas corroborações. Mas ela é sempre escrava de sua limitação de alcance, como acontece com as pesquisas eleitorais (um levantamento aponta uma tendência; a pesquisa definitiva vem das urnas), já que não consegue estabelecer uma universalidade, pelo simples fato de não conseguir vislumbrar todas as possibilidades de um determinado fenômeno. Quando um deles desmente a hipótese a que se chega, é preciso refazê-la, ou até mesmo descartá-la. Quando eu falar sobre a metodologia científica em si, vai ficar mais fácil de entender, mas a indução nunca traz um resultado definitivo.

3 – Abdução

Vamos criar uma outra estorinha para dar pano de fundo ao que falaremos agora. Você acorda com uma dor de cabeça daquelas de soltar a tampa do crânio para que o cérebro pule fora. Ao tentar se levantar, tem a impressão de que deu com a cabeça em um trilho de ferro. Voltando a se recostar, fica se perguntando o que pode ter acontecido, e faz um inventário de causas possíveis. “Poxa, eu fui no estádio ontem... Será que foi o sanduíche de pernil? Será que foi a gritaria na torcida? Será que eu fiquei muito tenso? Será que eu peguei um vírus na multidão? Será que eu tomei friagem? Será que eu desloquei um osso da cabeça? Será que é um castigo de Deus?”. São sete hipóteses diferentes para justificar o mal que lhe acomete, esquecendo-se de uma oitava, a bebedeira dionisíaca que você tomou na saída da contenda. É notável que todas essas hipóteses têm graus diferentes de probabilidade. Realmente, um bel’ porre é uma explicação muito mais plausível do que um vírus de efeito imediato ou de uma divindade mal humorada que não goste do esporte bretão. Fazer a seleção da melhor hipótese possível a partir de uma relação de causalidade é o que faz a abdução, que, como se pode notar, não tem o mesmo sentido atribuído às capturas de humanos por OVNI’s.

O processo abdutivo tem parentesco tanto com a dedução quanto com a indução. Da primeira, por formar algo como um silogismo na relação de causalidade que busca explicitar; da segunda, por tratar de formar hipóteses através de observações. Mas o que melhor caracteriza a abdução é o seu caráter indireto, ou seja, não se calca na observação direta de uma cadeia de causas e efeitos. É como se percorresse o caminho inverso das outras duas – você precisa buscar as premissas de uma conclusão já obtida. No exemplo da dor de cabeça, essa é a conclusão. As hipóteses colocadas são candidatas a premissas.

A abdução nada mais é o do que o ponto em que nos defrontamos com a maior possibilidade de “criatividade” nas Ciências, à medida que a formulação de hipóteses não tem limites técnicos. Isso somente será colocado na comparação com as demais hipóteses, e a adoção de uma delas será pelo critério de melhor aproximação com o que poderíamos reputar por verdade. Sabemos do seu largo uso pelo simples fato de que muitos dos fenômenos abordados pelas Ciências não são observáveis diretamente. Inúmeras teorias nasceram de abduções e foram se desenvolvendo por observações indiretas. Ninguém estava lá no átomo primordial no momento do Big Bang, nem estava em algum lugar perdido da África no momento em que uma mutação específica fez com que um certo bípede implume ganhasse a capacidade de raciocinar. Por esses motivos, o raciocínio abdutivo faz parte do nosso próprio espírito científico.

Mas como podemos estabelecer critérios de comparação entre as diferentes hipóteses? De uma maneira muito simples, poderíamos afirmar que a melhor explicação é aquela que gera menos perguntas. A hipótese do deus que não gosta de futebol é muito complexa: começa pelo próprio questionamento na existência dessa deidade, passa pela questão de ser a apreciação do esporte um pecado, e porque o é, e termina necessitando de um completo compêndio de Teologia que, no final das contas, pode ser insuficiente para nos convencer. O deslocamento do osso craniano é pouco provável, porque nosso contribuinte estaria em provável coma. As outras hipóteses são mais plausíveis: a tensão e o barulho dariam dor de cabeça mesmo, mas é mais provável que seria imediata; a sanduba poderia até estar deteriorada (o que já gera uma dúvida), mas a borracheira omitida parece a mais plausível de todas: pouca lembrança, efeito postergado, mal estar típico... Nada de questionamentos adicionais.

Mas se quisermos pensar um pouco mais tecnicamente, diríamos que as diferentes hipóteses possuem virtudes explicativas, ou seja, capacidade de propiciar elementos mais coerentes. São muitas as virtudes explicativas de um argumento e não estão sistematizadas em um tratado. Portanto, vou listar apenas algumas, porque a coisa já está ficando muito comprida:

Simplicidade: a principal delas, derivada da famosa navalha de Ockham, que nos enuncia que deve ser levada em conta sempre as explicações mais simples e que movimentem o menor número de variáveis possíveis.

Profundidade: é aquela explicação que dá um número mais rico de detalhes acerca de um determinado fenômeno.

Precisão: é a hipótese que “acerta mais na mosca”, ou seja, deixa poucas arestas a serem desbastadas por outras explicações.

Conservadorismo: nada a ver com posições políticas. Neste caso, é o esclarecimento que mexa menos com a visão geral que temos das demais coisas.

Abrangência: é a explicação que, dentro de um conjunto de fenômenos, consegue elucidar a maior quantidade possível deles.

Aderência ao conhecimento de fundo: trata-se da explanação que faz melhor uso de conhecimentos já consolidados, sem o aproveitamento de soluções ad hoc, por exemplo.

Analogia: capacidade de se aplicar a mesma solução para outros problemas com a mesma natureza.

Experimentabilidade: é a propriedade de permitir a execução de testes, para que se verifique se o argumento não é falho. Liga-se, de certo modo, à falseabilidade dos métodos científicos.

Vemos o quanto a abdução é proveitosa para a especulação e para a criação de hipóteses, mas ela não é livre de problemas. Um deles é a questão do peso das virtudes explicativas. Afinal de contas, cada caso é um caso e os critérios para aferição dessas virtudes é muito difícil de consubstanciar. Qual seria um bom critério de desempate? A abrangência ou a profundidade? É muito subjetivo esse julgamento. Outro problema é que, de todas as explicações possíveis, talvez existam aquelas que não são cotejadas e que seriam melhores do que aquelas imaginadas. É o caso do bonitão do nosso exemplo, que deixou de considerar a bebedeira como possibilidade. Mas, no entanto, é nessa capacidade de se achegar à verdade por aproximação que este modelo de argumento é importante.

Ufa! Gostaram da temática das inferências? Por fim, só para arrematar: os três paradigmas que tratamos aqui tem nomes bem parecidos, e são derivados do latim ducere, que significa “conduzir”. Dessa forma, dedução significa “conduzir para fora”; indução, “conduzir para dentro” e abdução quer dizer “conduzir de fora para dentro”, coisa parecida. Bons ventos a todos!!!

Recomendação de leitura:

Vai para Charles Sanders Pierce, filósofo pragmático e lógico que me ajudou bastante com este post (Não confundir com a indicação que fiz neste texto).

PEIRCE, Charles. Semiótica. São Paulo: Perspectiva, 1993.

Nenhum comentário:

Postar um comentário