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terça-feira, 11 de dezembro de 2018

Em demanda dos trilhos perdidos – Epílogo

Olá!


Em todas as séries de viagens que desenvolvi neste espaço, sempre procurei intitulá-las com metáforas marítimas. Para quem gostou destes trilhos perdidos, convido a lê-las, porque têm basicamente o mesmo formato:


Claro que isso tudo se dá porque o oceano traz uma figuração sobre viagem, mas também nos lembra do mistério do desconhecido, das incertezas da partida, de uma certa melancolia de quem ruma sem saber exatamente por que e para que. Desta vez, no entanto, sem fugir de uma retórica que remeta às jornadas, variei de nomenclatura. Fui buscar uma temática ferroviária, que também tem seu encanto, já que os trilhos e o trem que some no horizonte são ferramentas poéticas que nos lembram de como nossos destinos são inevitáveis. Eu já fui jovem, sonhei como qualquer um e escrevi letras de música, achando que poderia impressionar as pessoas. Como eu digo na música Largo da Misericórdia...

“Ao léu, o trem que nunca vem
Sem ele, nada me arrasta
E, se não me arrasta, não tenho porque crer no destino
Só que eu estou aqui, no largo e ao largo
Esperando o trem chegar
Prá sempre de partida”

... com algo que vai entre o desencanto e o rancor. É claro que eu jogo com contradições, um instrumento lírico para dizer que a vida é um negócio louco e transitório. Não creio no destino, mas estou entregue a ele, coisas assim. Então é legal pensar no trem, que custa a chegar, que nem se sabe se vai chegar, se a estação vai acabar antes que ele chegue, que vem como uma miúda fumaça no horizonte, que passa por cima de qualquer coisa que cair em seus trilhos, que ao descarrilar sempre representa desgraça e que desaparece entre as montanhas, deixando para trás apenas o silêncio.

Apenas o silêncio? Não, deixa também a memória. E isso vai ajudar a explicar a inspiração para o nome da série. Estamos em uma região das Gerais repletas de recordações do universo ferroviário, no mais das vezes constituídas por antigas estações, ou o que restou delas, sem nenhum sinal de seus antigos trilhos. De fato, algumas destas estão bem preservadas e ganharam outra destinação, enquanto outras viraram apenas lembranças, especialmente naqueles que, de uma forma ou de outra, tiveram suas vidas ligadas à atividade. Para estes, os trilhos se perderam. Eu quero achá-los.



Eu mesmo não tenho grandes memórias ligadas às linhas férreas. Na cidade grande, o fundo da paisagem é composto por prédios, e não por trilhos que cortam vales. Pior ainda no metrô, um imenso tatu que cruza o subsolo de um lado para o outro, sem nenhum tipo de romantismo. Tirando a burla dos muros da linha para chegar à casa do falecido tio Chico, todas as minhas ligações com o trem são utilitárias: ir e voltar do serviço. Houve uma época em que eu saía de São Caetano do Sul, onde eu trabalhava, para ir até a Vila Prudente, onde eu estudava. Era possível fazer o percurso de ônibus, mas demorava o triplo do tempo que o trem levava para cumprir as duas estações necessárias. Então eu encarava a máquina de ferro no fundo do vale de sua existência. A década de 80 foi um período em que o trem da Santos-Jundiaí vivia sujo, roto, quebrado, barulhento. O consumo de drogas ainda era muito reprimido, mas os vagões eram uma espécie de zona franca, um território livre para festinhas, e recendiam a bafo de pantera. Eu mesmo costumava acender meu inocente Marlboro, para deixar claro que meu cigarro era de baixos teores. Desse jeito, o máximo que poderia acontecer era ser tocado do vagão. Mas nunca aconteceu.

Ah, sim, lembrei de duas coisas bacanas relacionadas ao trem. Uma delas eu já contei aqui, que era quando meu avô me levava ao campo do Nacional, time cuja origem está intimamente ligada à ferrovia que lhe costeia. Hoje a linha é chamada de Rubi ou Diamante, nunca sei bem. Para nós, era simplesmente a linha da Lapa, e descíamos na estação Água Branca. Dali, eram cinco minutos até a Comendador Souza. A outra é muitíssimo remota e são só nuvenzinhas na minha cabeça. Trata-se da única vez que fui com meus pais para o norte do Paraná de trem. Se eu não me engano, a composição partia da Capital com destino a Ourinhos, na divisa. De lá, era preciso baldear para outro trem, da linha federal. Depois, em Londrina ou Maringá, o restante do trajeto era cumprido de ônibus.

Lembrei de mais uma. Quando eu era criança de uns sete ou oito anos, ganhei de Natal aquele que foi um dos presentes mais caros da minha vida: um Hit Train, antecessor do Ferrorama, caro para os padrões do operariado em geral, mas eu devo ter me comportado bem e meus pais acharam que deveriam gastar um pouco mais naquele ano. Era um brinquedo lindo, composto por um trenzinho que simulava uma máquina elétrica com seus respectivos vagões. O aparelhinho era a pilha, e deslizava por uma série de trilhos plásticos, com alavancas para desvio e reversão do movimento do trem. Eu costumava montá-lo por sobre minhas caixinhas de futebol de botão, para dar a sensação de via elevada. Também fazia as curvas passar pela beirada da mesa, de modo a dar sensação de perigo com o tombamento do trem. Numa dessas, a queda fez com que o compartimento das pilhas saltasse, e eu comecei a compreender que os remendos dos trens originais também eram reprodutíveis no mundo imaginário dos atrevidos petizes. Putz, era um brinquedo muito legal... Deveria tê-lo mantido até hoje.

Contei tudo isso para tentar responder à pergunta que tantos fazem: por que as ferrovias praticamente acabaram no Brasil? E por que elas trazem tantas boas lembranças para quem as vivenciou de perto?



É impressionante, mas é só o Brasil sendo o Brasil. Não tem certos absurdos que parecem acontecer só por aqui? Pois é, este é mais um. Em um país de dimensões continentais, é de se esperar que fossem construídos diversos ramais que, em certo momento, se interligassem. Acontece que as linhas foram construídas autonomamente, sem nenhum tipo de planejamento, e cada uma tinha seus parâmetros próprios de construção. Em alguns casos, as plataformas das estações precisavam ser mais altas, dependendo do modelo de vagões adotados. Isso explica porque há estações com altura tão variável. É óbvio que a região em que estamos tem um certo padrão, porque estamos falando somente da RMV – Rede Mineira de Viação. Mas este não é o grande busílis.



A dor de cabeça maior diz respeito à questão das bitolas. Eu já falei sobre o caso em meu texto sobre Bananal, mas vou retomar rapidamente. Bitola é a largura entre as rodas de um trem, o que determina a distância do paralelismo entre os trilhos de uma linha. Digamos que uma máquina tenha bitola de um metro. Isso significa que os trilhos deverão obrigatoriamente estar separados nesta medida. Não é simples? Ocorre que nossos ímpares administradores costumam se preocupar muito com o universo que orbita seus umbigos e esquecem de por a cabeça para fora da toca, e nunca se planejou uma bitola padrão para as nossas linhas férreas. Já ouviu falar de um cara “bitolado”? Isso indica uma pessoa que pensa sempre da mesma maneira, por mais que se mostre que as coisas são diferentes. Os trens também são bitolados, só andam em trilhos com aquela largurinha específica que cismaram, por um motivo muito prosaico – são engenhos sólidos, construídos para serem como são. Não dá para alargá-los ou encolhê-los ao bel prazer do ínclito governante.



Isso quer dizer que um trem não pode passar de uma linha para outra, ficando escravo dos trilhos adequados ao seu tamanho. Isso fazia a atuação de uma composição ficar restrita ao seu próprio ramal, e, para atingir novos destinos, só com transferências: baldeação para passageiros, transbordo para cargas. Isso aumentava um bocado o tempo das viagens e multiplicava seus custos. Pensem, por exemplo, no pessoal e no espaço necessário para tirar todas as toneladas de grãos de uma composição e colocá-las em outra.




Não foi esse o único fator que levou à substituição no modelo de transporte, no entanto. Uma desgraça nunca vem sozinha e uma coisa puxa a outra. O principal motivo para a construção de ferrovias foi o transporte de produtos agrícolas, notadamente o café, tão dominante na primeira metade do século XX. Só que as coisas vêm e vão, e os cafeicultores experimentaram um grave declínio, refletindo na falta de atualização tecnológica das linhas. Com a chegada de Juscelino Kubitschek ao poder, e com a implantação de uma política desenvolvimentista baseada especialmente na chegada da indústria automobilística ao país, mudou-se a matriz de transportes tupiniquim. Afinal de contas, o princípio geral que norteava o governo era que não bastava crescer, era preciso crescer depressa, os tais “cinquenta anos em cinco”. Substituir ferrovias por estradas de rodagem tinha duas grandes vantagens para esse modelo. Por um lado, era muito mais rápido nivelar e asfaltar um terreno do que enchê-lo de dormentes e trilhos. Por outro, dava-se um incentivo e tanto às recém-chegadas montadoras, que venderam caminhões aos borbotões para substituir os antigos trens. Estava aberto o sepulcro da linha férrea.



Pensou-se a longo prazo? Não, né... Mas na Ilha de Vera Cruz costuma ser assim mesmo. Os trens eram realmente lentos, e uma viagem de longo curso era um suplício. Nesse sentido, os ônibus são ágeis, menos barulhentos e possuem mais flexibilidade, podendo mudar de trajeto ao sabor das circunstâncias. O mesmo se aplica aos caminhões para o transporte de cargas. E para se ter uma malha decente precisaríamos substituir quase tudo, padronizando bitolas, reerguendo estações obsoletas, modernizando o maquinário, atualizando os funcionários... As vantagens não apareceriam da noite para o dia, mas, na ponta do lápis, elas seriam grandes. Um trem carrega muito mais do que os maiores caminhões, com risco ínfimo de acidentes e perda de cargas, além do menor potencial poluente. Além disso, bons equipamentos garantem velocidade muito superior à das poéticas, porém ineficientes marias-fumaça. Peço desculpas aos amantes do velho vapor, mas o seu lugar é o museu. E as velhas estações merecem uma nova destinação, mesmo que não esteja relacionada ao seu antigo uso.



Na verdade, o que é mais digno de notar é como esse tipo de reminiscência nos toca a memória afetiva. Embora não tenhamos o costume da resistência, o fato é que há coisas que nos cutucam o fundo da alma, e deixamos elas ir embora. Resta apenas o que lembramos, e por isso estes artefatos são tão importantes. Só que a tal memória afetiva é marota. Vamos ver isso rapidinho.

Endel Tulving é um psicólogo canadense de origem estoniana que se especializou no estudo da memória. Antes da publicação de sua original abordagem, já se dizia de uma tipificação da memória, sendo uma de curto prazo e outra de longo. Na primeira, estariam os dados que usamos no nosso dia-a-dia e que logo são descartados, assim que perdem sua utilidade. Por exemplo, quando pegamos um jornal, damos uma passada rápida pelas manchetes. Aquelas notícias que não nos chamam a atenção são brevemente esquecidas, e damos atenção àquelas mais importantes. Isso acontece porque não há nenhum proveito em reter as informações descartáveis, mas elas passam pela nossa memória, até mesmo porque são a porta de entrada para a memória de longo prazo, aquela que fica retida em nosso cérebro, e que são recordadas na medida em que se fazem necessárias, e estão intimamente ligadas à aprendizagem.

Para Tulving, essa divisão era insuficiente para explicar adequadamente o fenômeno mnemônico. No longo prazo, parecemos ter uma memória intimamente ligada ao conhecimento, e outra aos acontecimentos. Senão vejamos.



Eu posso pedir para vocês enumerarem quantas classes gramaticais conhecem. A lista começará – substantivo, pronome, verbo, artigo, etc. Pode ser que alguém lembre de todas, pode ser que se lembre de uma ou duas. Pode acontecer ainda que não se lembre de nenhuma, mas, a partir de uma dica, todas as classes venham enfileiradas. É um tipo de memória que é dividido internamente em categorias: diga uma cor, diga uma fruta, diga um nome. Essas memórias, portanto, tem uma carga de significados que permite traduzir conhecimento. Por este motivo, é chamada de memória semântica.

Mas, e se agora eu perguntar QUANDO ou ONDE vocês aprenderam o que são as classes gramaticais? Pode ter sido na escola, em casa, na biblioteca. Pode ter sido com professores, com os pais ou com os livros. O fato é que dificilmente alguém se recordará disso. Com perdão aos professores (ou a quem tiver ensinado), os itens da memória semântica não fazem distinção habitual do meio com o qual são absorvidos. Aprender uma classe gramatical não é um acontecimento, apenas um ato cognitivo.

Mas não lembramos de um monte de fatos que acontecem em nossas vidas? Sim, claro. E isso é função de outro tipo de memória, muito mais pessoal que a semântica. É a parte emotiva de nossas lembranças, onde o contexto geral dos acontecimentos é imprescindível para a sua compreensão. É o que se chama de memória episódica, ligada aos eventos de nossas vidas. E como é feito o resgate dessas informações pela memória?

Parece que possuímos uma espécie de indexador que ajuda a consciência a recuperar a informação armazenada na memória de longo prazo. Mas enquanto o indexador da memória semântica é a categoria temática onde encaixamos o conhecimento, e que funciona por semelhança, na memória episódica o índice é composto pelo tempo. Quando recordamos de um evento qualquer, todo um conjunto de circunstâncias é carregado junto, para que se possa remontar o contexto com o qual ocorreram. Dessa forma, é possível que se desça a um nível de detalhe muito maior na memória episódica do que na semântica. Pense no primeiro beijo: talvez você lembre até a roupa que vestia, o que certamente não ocorrerá se você tentar resgatar o que lhe rodeava quando você aprendeu o que é advérbio. Então o índice “primeiro beijo” vai te levar de volta no tempo, fazendo com que você reviva mentalmente o evento.



É exatamente o que acontece com a memória afetiva do pessoal que viveu sob a sombra das estações ferroviárias e das fumaças das locomotivas, que, nos casos das cidades pequenas, acabam por se tornar mais relevantes. Esses objetos são índices que lhe trazem um conjunto completo de recordações, como a partida de um filho para a cidade grande, um pedido de casamento feito em um de seus vagões, o apito que parecia mais triste no dia em que a avó morreu, ou o simples ruído da descarga do primeiro trem que partia no dia, um pouco mais tarde do galo cantar e que acompanhava o cheirinho de café coado na hora. Dessa forma, a memória afetiva, aquela que nos toca, é consequência da memória episódica.



E por que a memória afetiva é matreira? É que, embora a memória episódica traga uma informação de contexto muito mais detalhada que a semântica, nem todos os seus componentes são resgatados em um mesmo nível. Em outras palavras, as informações não são todas disponibilizadas para a consciência com a mesma vivacidade. Isso significa que a memória afetiva tende a ser distorcida, com ênfase em seus componentes centrais e desvanecimento dos elementos periféricos. Exemplificando, posso pensar que o cheiro do café da minha infância era o melhor do mundo, porque estava acompanhado de um monte de outras coisas que me felicitavam, de eventos positivos. Se eu tomar o café hoje em dia, poderei ter duas reações: decepção em perceber o quanto ele é igual aos outros, ou entrar em um processo de negação, exatamente aquele que diz como as coisas eram boas “naqueles tempos”, e que hoje não valem nada.

Não é verdade. Lembramos com carinho do tempo das marias-fumaça, mas não há sentido em achar que elas eram melhores que os atuais metrôs, mais rápidos, mais seguros, menos poluentes. E mesmo que a usássemos hoje, sentiríamos desconforto em lembrar o quanto eram barulhentas, pesadonas, incômodas. Não que isso seja um mal, mas tudo tem seu tempo certo, e o lugar das memórias e lá mesmo: nas memórias. Por isso, é preciso tomar um pouco de cuidado para não deixar que um saudosismo nos absorva, especialmente quando a nossa vida se encaminha mais para a memória do que para a vivência. Eu, por minha parte, sei de um monte de coisas que não são exatamente como as recordo, e procuro meter o pé na pedra e na lama, vivendo o hoje da melhor maneira possível, porque lembro de tanta coisa que eu sei que não vai voltar, e que, se voltasse, não seria como antes. Bons ventos a todos e até a próxima romaria!!!



Recomendação diversas:

Só em inglês ou nos compêndios de Psicologia. Este aqui está disponível no Google Books:

TULVING, Endel. Elements of Episodic Memory. Gloucestershire: Clarendon, 1983.

Uma belíssima pedida é o site mantido pelo Ralph Mennucci Giesbrecht, que vem pesquisando a tempos sobre as linhas férreas deste Brasilzão de meu Deus, incluindo muita coisa que já desapareceu quase que por completo dos anais de nossa história. Ele tem livros disponíveis para vender, que, assim que o parco orçamento permitir, pretendo comprar. Segue o endereço:


E, claro, todas as cidades deste périplo, todas a distância razoavelmente pouca da Terra da Garoa. Recomendo fortemente para todos aqueles que gostam de um cheiro do mato sem se descolar da história. A quilometragem corresponde ao melhor trajeto de carro possível, na minha humílima opinião.

Maria da Fé – 288 Km
Cristina – 299 Km
Marmelópolis – 255 Km
Delfim Moreira – 234 Km
Piranguinho – 257 Km
Brazópolis – 242 Km
Wenceslau Braz – 249 Km
Itajubá – 262 Km

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