“Parece uma parábola, disse uma voz desconhecida, o olho que se recusa a reconhecer a sua própria ausência” – José Saramago.
“Só existe o que os meus sentidos percebem” – Thomas Hobbes
Olá!
Diabetes é uma doencinha ameaçadora mesmo. Ler sobre suas
consequências, ainda mais se sabendo portador da mesma, é uma experiência
necessária, porém assustadora.
Ler... Andei percebendo que, nos últimos tempos, minha
acuidade visual tem se avinagrado um pouquinho, mesmo estando de óculos. Tenho
controlado razoavelmente bem os níveis de glicose, mas mesmo assim achei
prudente procurar o médico, que respondeu com um significativo “hmmmmmm” ao meu
relato. Na ausência de equipamentos mais sofisticados, deu uma olhadela com
aquela incômoda lanterninha e me mandou procurar um oculista, para dar uma
mapeada na minha retina.
Fiz isso recentemente, e a doutora que me atendeu não viu
nada além de uma discreta dilatação nos vasos sanguíneos. O perigoso mesmo, que
são os prejuízos à retina, parece que não se concretizou. Para elucidar, pediu
um outro exame, mais rigoroso. A princípio, no entanto, nada além do que a
velhice que chega às portas. Quando der o dia, vamos ver o que vai dar.
Puta que pariu... Que medo de ficar cego! Nós, humanos,
somos muito mais dependentes da visão do que qualquer outro sentido, e ficar
sem ela é um limitador tão grande que se torna difícil até mesmo imaginar como
seria viver. Conheço um rapaz chamado Flávio, cego de nascença. Certo dia, um
vento maroto na janela empurrou a cortina no cidadão, que tomou um belo susto.
Uma menina ao lado, inconsequente, perguntou se ele ainda não estava acostumado
com essas coisas. Ele respondeu que, por mais que conviva relativamente bem com
sua condição, é inevitável a ocorrência de pequenos acidentes, e ele acaba por
se machucar muito. Junte-se a isso o incipiente processo de acessibilidade dos
espaços públicos e torna-se fácil compreender galos e caneladas.
Somos animais dependentes da visão. Há um nível de
sofisticação neste sentido que o torna o principal entre os demais. A seleção
natural dá caminhos distintos para nós, que detectamos um amplo espectro
luminoso e temos bastante noção de tridimensionalidade, e outros animais, que
não fazem tão profundo uso. Há o faro apurado dos cães, que enxergam poucas
cores; a audição complexa dos morcegos, cegos que se guiam pelos ecos. Há
animais que fazem uso profuso dos olhos como nós, porém em uma ordem inversa,
como a coruja que vagueia pela noite. Mas a nossa visão é quase que um fator de
identidade, entre tantas características frágeis, como a parca audição, o
ridículo olfato...
Li o “Ensaio sobre a Cegueira”, livro de José Saramago, e
posteriormente assisti ao filme de Fernando Meirelles, movido pela curiosidade
e pelas dúvidas da afilhada Renata. Vou quebrar o meu método de dissertação
neste texto. Geralmente, faço pesquisas em cima dos temas em que trato, mas,
dessa vez, relatarei minhas impressões de modo particular, com o conhecimento
filosófico que tenho. Serei o mais honesto possível, e não procurarei outras
opiniões. Quero fazer este exercício para testar minha capacidade de
interpretação de uma obra tremendamente complexa, com amplo fundo filosófico e
social. Desejem-me sorte e vamos lá.
Em primeiro lugar, devo dizer duas coisas: Saramago é um dos
meus escritores favoritos, o livro é extremamente bom e perturbador –
provavelmente seu escrito mais famoso – mas pasmem. Na minha humilde opinião,
no quesito de causar incômodo, não é sua melhor obra. Neste sentido, O Evangelho Segundo Jesus Cristo é ainda
mais bem escrito e mais capaz de chacoalhar e perturbar convicções. Essa é a
primeira coisa. A segunda é que, entre o livro e o filme, obviamente cada um
retrata o âmago do enredo de maneira diferente. O livro traz dissertações
filosóficas impossíveis de ser manifestadas no filme, e o filme dá uma
agilidade que ajuda muito na ideia global, o que é impossível em livro. E,
apesar de ambos estarem em pé de igualdade, minha clássica migração para a ilha
deserta incluiria o livro. Mas recomendo ambos.
Tem mais uma coisa para observar. Como São Paulo é lúgubre
quando a vemos com outros olhos... Acho que nem deu tanto trabalho ao diretor
para dar aquela cara de terra arrasada aos baixios do Minhocão e às ruas do
centro, já que são degradadas “por natureza”. São lugares em que passo dia após
dia, mas pela lente da câmera parece outro lugar, muito mais atro e temível.
Credo...
Pois bem. O livro não é unívoco, e isso dificulta um pouco
as coisas. Poderíamos interpretar o modo como a humanidade sempre exclui seu
diferente, o quanto o homem ainda tem de animal, como a parte irracional de
nossa psique prepondera em nossa consciência, como somos egoístas e
egocêntricos, como somos frágeis ao ser expostos a condições desfavoráveis,
mesmo que não tão extremas, como solidariedade e alteridade são bibelôs de
estante quando o sapato aperta. E, por isso mesmo, entendo que a obra pode ser
bem definida como a reescrita da teoria do contrato, mais especificamente a de
Hobbes.
Desde já, indico que Saramago não deve ter tido essa
intenção, ao menos diretamente. Mas tanto ele quanto Hobbes parecem
compartilhar da mesma visão de homem, que é mau por natureza. Por isso mesmo, é
inevitável minhas pinceladas sobre o Leviatã, magnum opus do nosso pessimista filósofo (apesar de já ter falado
sobre o moço neste texto). Também puxarei algumas coisas do De Cives (Do Cidadão).
Hobbes fala sobre o modo como a sociedade se forma em um
período histórico no qual a reflexão filosófica começa a apontar com mais
consistência para a Política. E vai buscar na origem e na constituição do ser
humano o modo como as relações sociais se construíram. Como o homem é um animal
a quem se adiciona o raciocínio (e nada mais), há muito do instintivo a permear
as suas ações. Como este raciocínio é próprio a cada um dos indivíduos, tudo
cai no bojo da relatividade. Não há nenhum tipo de valor absoluto, nem mesmo o
bem e o mal. O que existe é vantagem.
Hobbes tem uma tese muitíssimo interessante, e que parece
aproximá-lo da discussão proposta por Saramago. Para o filósofo inglês, toda a
Filosofia deve se basear no corporeísmo e no mecanicismo. Trocando em miúdos: Hobbes
criou a figura da Empusa metafísica. Este ser mitológico seria uma espécie de espírito
maléfico saído da caixa de Pandora (que continha todos os males do mundo), que
a cada um se apresentava de maneira distinta. Para se ver livre da Empusa, ou
da imprecisão metafísica, era necessário fixar vista no que era perfeitamente
cognoscível. O que deve ser estudado e desvendado são os corpos. E temos aqui um problema – não são todos os corpos que são
mensuráveis por réguas humanas. Podemos, por exemplo, conhecer perfeitamente
aquilo que é redutível à Geometria e à Física, dizendo, por exemplo, o peso de
um bloco, a velocidade de um carro, o volume de uma caixa d’água. Isso ocorre
porque as métricas tem correspondência com a realidade e demonstram corpos
tangíveis, mas são criações humanas. Estabelecemos os gramas para detectar o
peso, os metros por segundo para medir a velocidade e os litros para mensurar
os volumes. Ou seja, convencionamos humanamente proporções naturais. Com
relação aos corpos naturais em si, a coisa não é tão simples, porque não
dependem de nossa construção e não estão abarcados plenamente pelo nosso
conhecimento. Para que possamos dizer algo sobre um corpo, é preciso que ele
tenha uma mecânica, ou seja, que se movimente de alguma forma. É a partir daí
que este corpo pode ser medido, ou seja, humanizado. Para que isso seja
possível, Hobbes considera como corpo não somente as pedras, as plantas e os
homens, mas o próprio conceito de Estado, porque é através dele que se pode
medir o movimento de um povo como um todo integrado. Esses movimentos não são somente
seus deslocamentos, mas sua História e suas conexões sociais.
Como o homem percebe os movimentos? Através dos seus
sentidos. E estas sensações estão dirigidas, naturalmente, ao mundo que nos
cerca. Vemos as folhas que caem, tateamos as asperezas, sentimos o amargo das
ervas, e tudo isso são captações de movimentos, porque deslocamos nosso olhar
para ver tais folhas, e se movem tanto os nossos olhos quanto a folha. Pelo
tato sentimos algo áspero porque deslocamos nossa mão até o objeto. E este é
áspero porque esteve em atrito com algo, ou sofreu uma colisão. O amargor é
percebido porque mastigamos a erva, que brotou, cresceu, e foi arrancada por
nossas mãos. Tudo isso é movimento, mesmo o imperceptível deslocar de seiva
internamente na erva.
Isso parece ser bastante coisa, mas há algo mais que é
movimento?
Sim, nossas sensações interiores também são movimentos. Na
medida em que somos os sujeitos que percebemos e sentimos, essas sensações
formam as representações mentais que temos do nosso redor. Essas imagens não são
fruto de gravações mentais estanques, mas se formam associando e acumulando
informações, ou seja, nossas sensações mudam, se movem. E o que faz com que
esse movimento ocorra? Ora, a maneira como percebemos as coisas. Gostamos de
algo, e nossa representação muda. Detestamos, e a representação muda também.
Algo nos causava nojo, agora nos causa prazer, e futuramente nos causará dor.
Vemos um caramujo, e sentimos arrepios. Descobrimos que é escargot, experimentamos e passamos a gostar. Temos uma dor de barriga
e sofremos. Tudo isso são deslocamentos. Tudo são corpos que se movem, ainda
que a nível mental. Mente também é corpo, e também tem sua mecânica.
E aí vem o grande busílis. Tudo isso mostra que somos
privados de liberdade. Há, em todos os movimentos, uma conexão mecânica
necessária, que não poderia ser diferente do que realmente é. O nojo, o
consequente prazer e a consequente dor não são objetos de escolha, são frutos
de movimentos que escapam ao nosso controle. E isso coloca o homem, mesmo com
sua racionalidade, no mesmo campo instintivo dos animais. Não controlamos os
sentimentos que temos diante de um objeto, e, com isso, não controlamos nossos
desejos. Mais ainda: a lógica do desejo funciona de maneira igual, seja em nós,
seja nos bichos.
E então vamos fazer uma pequena retificação. Não é que o
homem seja mau; ele procura o que é melhor para ele. O homem é, na verdade,
egoísta e egocêntrico. O modo como Saramago detecta e insere este fato em sua
obra é genial. Parecendo retornar aos romancistas naturalistas, desenvolve algo
como um romance de tese, para provar o homem como um ser em patamares muito
mais baixos do que ele realmente julga. Mas como retirar o homem de sua
civilidade, de sua estrutura social, e colocá-lo novamente em ambiente
selvagem? Simples: suprimindo o sentido que melhor lhe move – sua visão. E daí
os identificadores passam a ser irrelevantes, por isso todos são apresentados
sem nome. No máximo, para contextualizar, são tratados pelas características em
que foram inseridos na trama: o médico, a mulher de óculos escuros, o rapazinho
estrábico. Tudo isso diz mais sobre cada pessoa do que seu próprio nome ao
serem arremessados ao mundo selvagem. E o ser humano cai perfeitamente na
armadilha do nosso português.
No sanatório, percebemos a condição hobbesiana do homem que
é lobo do homem. Enquanto há poucos internos, a situação é controlável pelo
senso comum, pela opinião razoável. Mas, à medida que aquela estranha sociedade
cresce, aumenta também as discrepâncias. A cegueira branca é uma mistura de
todas as cores. Tudo se torna tão igual que já não resta diferença, e ela é
dupla. Não estamos falando de homens que nasceram em ambiente selvagem, mas a
retirada da visão faz cegar também a memória, e então se torna irrelevante que
as pessoas lá presentes tenham saído dos mais diferentes estratos sociais.
Estão todos como leprosos, a cegueira os igualou. E o movimento que faz com que
eles voltem a diferir entre si é o mau caráter.
Percebam como o consenso se forma. A princípio, um pequeno
grupo se reúne em torno de um líder que procura coligir bom senso, no caso, o
médico. Este não é um consenso espontâneo quando observado individualmente,
mas, enfraquecidos que estão como pessoas, é a melhor vantagem que se pode
obter. Com o crescimento dos internos, outros grupos e outros líderes surgem,
cada um com seu conjunto próprio de ideias, diferentes entre si. E há um deles
que baseia seu poder na violência. Sua persuasão se constrói ao redor do
poderio de opressão, e a moral de apoio mútuo surgida no grupo original é
derrubada. A princípio, há a submissão; mas o rumo que a coisa toma, partindo
para a violência física e simbólica, primeiro com os “tributos”, depois com o
estupro coletivo, desmonta a lógica de consenso pacífico do primeiro núcleo. É assim
que aflora a guerra de todos contra todos. A mesma tática de violência é
adotada pelos bons. É um ambiente que comprova que o ambiente selvagem
animaliza o homem. Com parênteses, porém.
(Hobbes diferencia o estado de natureza entre homens e
animais. No caso dos últimos, o objetivo da violência é a manutenção da espécie
como um todo. Há um substrato que os une. Já para os homens, a preservação é da
própria vida. É o chamado “átomo de egoísmo”).
Os bens são relativos, eu já disse, mas há esse bem maior
que é a própria vida. Sendo tudo relativo, a virtude também o é. Não existindo
uma virtude natural, a sociedade vai se moldando através deste movimento entre
egoísmo e convenções, que se estabelecem para ser possível a sobrevivência. Uma
destas convenções é aquela que consegue manter um pouco de ordem na sociedade,
e já aqui Hobbes e Saramago se desencontram. Para Hobbes, os homens chegam ao
soberano como aquele que provê legalidade. Já Saramago parece nos dizer que não
há um consenso absoluto, nem com o soberano, nem contra ele. Vejam que a
solução do caos do manicômio não é a nomeação de um grande líder, mas a fuga.
Saramago parece apostar na remanescência do caos permanente. Ele não aposta em
um soberano, assemelha-se mais a um anarquista (pelo menos nesta obra). A
ordenação desta sociedade é a continuidade da lógica do poder.
É preciso estômago, tanto para ler o livro quanto para
assistir o filme. Mas é preciso prestar atenção no seguinte: tanto nas cenas de
roubo quanto nas de estupro, o mais dolorido é pensar que reside no homem um
animal que não depende do estado selvagem para se manifestar. Em todos os
lugares, seja em um grande centro ou em um pequeno rincão, sempre haverá alguém
sendo vitimada pela violência. Sempre haverá extorsão, sempre haverá estupros,
e daí sempre brotarão reações. Há roubos e estupros na África Negra, na América
Latina, na Noruega, na Austrália... O contrato social não garante que o homem
se livre de sua porção irracional. Por um motivo muito simples: o homem
realmente não é livre, seja na posição de vítima, seja na posição de opressor.
Algumas efemérides para finalizar: E por que há uma
personagem que não perde a visão em nenhum momento? É difícil dizer,
principalmente pelo fato de que ela não usa essa vantagem, a não ser quando sua
própria sobrevivência está em jogo. Dá a impressão de que a mulher que não
perdeu a visão assemelha-se ao filósofo que sai da caverna, na alegoria de
Platão.
E a visão que volta espontaneamente retrata a continuidade
do ciclo de violência: nada aconteceu, nada mudou. O homem pode voltar a ficar
cego, pode voltar à sua animalidade a qualquer momento. Isso está claro no
penúltimo parágrafo do livro, quando se discutia sobre as causas da cegueira
inaudita: “Penso que não cegamos; penso que estamos cegos. Cegos que veem;
cegos que, vendo, não veem”.
Em suma. Ótimo livro, ótimo filme. E repito. Tentei extrair
uma opinião e embasá-la. Há ainda inúmeras outras maneiras de interpretar esta
obra, mas por ora chega. Já estou com a vista cansada.
Recomendações:
Obviamente, recomendo o livro...
SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
... e o filme.
MEIRELLES, Fernando. Ensaio sobre a cegueira. Filme. Brasil, Japão, Canadá: Fox, 2008. Colorido. 121 min.
Mencionei duas obras de Hobbes. O
Leviatã está referenciado no post que indiquei no texto. Quanto ao De Cives,
segue sua citação.
HOBBES, Thomas. Do Cidadão. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
Agradeço à Rê pela foto da cegueira e à cidade de Queluz por emprestar uma simpática ladeira, devidamente transfigurada para se tornar fúnebre. Quem quiser ver a foto original, está disponível neste link.
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