Já tem quase um
mês que ocorreu o segundo turno das eleições
municipais aqui em São Paulo, e eu teria bastante coisa para
falar sobre este assunto, mas deixarei isso para um momento mais
oportuno. No entanto, algo me chamou deveras atenção
com a divulgação do resultado final: a reação
negativa de uma camada significativa da população nas
redes sociais. São manifestações rancorosas,
desproporcionais, preconceituosas, de ódio mesmo, tendo em
vista a eleição de Fernando Haddad, membro do PT, um
partido declaradamente de esquerda, mas que na prática está
longe de ser socialista.
A principal acusação
desse pessoal tem menos a ver com os recentes julgamentos referentes
ao escândalo do mensalão do que seria possível
supor. Na verdade, o que se diz é que os governos do PT estão
formando uma classe social vagabunda, que se sustenta pelas benesses
dos programas sociais como o Bolsa Família, por exemplo, e que
por isso amealha os votos destes “ignorantes”. Ora, é
preciso ser muito preconceituoso para imaginar que um cidadão
se contente em viver com os aproximados duzentos reais recebidos
assistencialmente do que com um salário que, em tese, tem no
mínimo o triplo deste valor, apenas para não ter que
trabalhar. Esse não é um bom argumento para atacar esse
programa. Aliás, é burro, porque dá ares de
socialismo a um dispositivo que, como veremos adiante, nasceu do
próprio capitalismo. Se algum dos indignados dissesse que
melhor seria utilizar esse dinheiro na execução de
obras de infraestrutura necessárias à expansão
econômica dos bolsões de pobreza, tornando-os
sustentáveis, aí sim teríamos argumentos
válidos. Mas esse tipo de idéia não é tão
fácil de se desenvolver, porque é menos próxima
do senso comum do que, por exemplo, aquela que ataquei no meu texto
“Sobre Lula, SUS e autoritarismo”. É mais fácil
jogar a culpa do meu bolso mais vazio em meu vizinho do que em mim
mesmo. Nunca somos nós que não sabemos votar, é
sempre o outro, esse ser dos infernos.
Bom... O grande
problema é que esta reação, como eu já
disse, é tão cega que não percebe que os
mecanismos econômicos utilizados para manter a situação do país sob
controle (enquanto a Europa se esvai em déficit e os EUA tem
sua economia abalada) não são derivados puros e simples
do ideário dos malvados comunistas comedores de criancinhas e
pobres dinheirinhos, mas do próprio capitalismo. Para isso,
preciso tocar em um tema inédito por estas plagas, que é
o pensamento econômico. Vamos chamar John Maynard Keynes.
Os economistas liberais
clássicos, que preponderaram entre o século XIX e o começo do século XX, sempre preconizaram que a participação
do Estado na economia deveria ser a menor possível, sem sair
de suas atividades típicas, como legislar, julgar e arrecadar.
O próprio mercado teria o condão de se auto-equilibrar,
através de suas leis gerais, para distribuir os recursos
necessários e proporcionar um bem-estar à sociedade,
dentro de uma margem aceitável. A presença do Estado
seria prejudicial porque invadiria uma atribuição que
não é sua, principalmente ao se colocar ele mesmo como
um dos proprietários dos meios de produção.
Qualquer empresa pública, neste sentido, seria um passo rumo à
alternativa do comunismo.
Sob estes ditames, tudo
funcionava às mil maravilhas e parecia que a charada econômica
tinha sido desvendada no primeiro mundo, até chegar o crack da
bolsa de valores de Nova Iorque em 1929, e o castelinho liberal
provar-se feito de areia. Isso porque as empresas começaram a
quebrar aos borbotões, gerando um imenso contingente de
desempregados que, desprovido de dólares, reduziram suas
compras ao mínimo necessário, levando à
bancarrota mais e mais negócios, em um círculo do caos
que tinha tudo para conduzir a vaca estadunidense ao mais grudento
dos brejos.
Keynes, um canadense
radicado nos EUA, deu a solução. Segundo ele, não
é possível que o governo fique de braços
cruzados observando o mercado tentar restabelecer seu equilíbrio
por si só. Ele precisa contribuir. Melhor ainda, ele DEVE
intervir.
A lógica da
circulação do mercado se baseia em um binômio
consumo-investimento. Desta relação, é
estabelecido o nível de ocupação dos
trabalhadores, que, em última instância, constituem a
grande massa de consumidores. Quando, por motivo X ou Y, há
diminuição de um, há reflexo no outro. Assim:
havendo diminuição do investimento, há
diminuição do emprego e a conseqüente diminuição
do consumo. Até aí, temos a regra liberal. Só
que, quando essa diminuição se dá a níveis
muito baixos, torna-se muito difícil e lenta a recuperação
do mercado. E, neste meio tempo, a massa trabalhadora sofre, e muito.
Quando a economia dá
sinais de que está entrando em um parafuso deste tipo, o
governo deve promover aumentos tanto no consumo quanto no
investimento, para fazer a roda do capital girar de maneira bem
lubrificada. Ok, se o governo encampar empresas e participar
diretamente do mercado, teremos uma tendência às
profecias marxistas. Mas Keynes não queria que o governo
fizesse algo semelhante. O que ele desejava é que o poder
público lançasse mão dos mecanismos que lhe são
típicos, e com isso resolvesse as crises sem ameaçar a
propriedade privada dos meios de produção.
Ora, que mecanismos são
esses? O governo tem o poder de controlar uma série de
requisitos que permitem a sua efetiva participação na
ciranda econômica, de modo legítimo (na visão capitalista). O governo, por exemplo, é a entidade
que determina e coleta os impostos, e que estabelece o que se fará
com eles. O governo também controla a taxa de juros, podendo
fazê-la flutuar para cima ou para baixo em conformidade com as
necessidades do mercado. Isso tudo pode modificar os níveis de
investimento ou reativar as margens de consumo, na medida em que pode
readequar a ocupação de pessoal, ou tornar atrativas as
compras, ou remover o incentivo à poupança. A idéia
básica é injetar dinheiro na economia e fazê-lo
circular da melhor maneira possível. Keynes chegou a dizer que
o governo estadunidense teria uma atitude inteligente se ocupasse
desempregados para abrir e posteriormente tapar buracos, sem aparente
propósito. O simples fato de pagar-lhes salários faria
com que estes se tornassem novamente consumidores, com nova
movimentação da economia.
O pessoal da velha
guarda econômica estrilou muito com essas idéias tidas
como radicais, mas tinham a história contra eles. Sorte dos
primeiro-mundistas que Theodore Roosevelt botou fé nas teorias
de Keynes e as encampou, aplicando-as no New Deal, o plano que
recuperou a economia dos EUA, usando e abusando da intervenção
do Estado na economia. Bom, abusando é um pouco de exagero.
Pois muito bem, então.
Vamos pegar esse rápido mostruário e aplicá-lo à
nossa realidade brasileira. O governo pode captar dinheiro de
impostos e injetá-los na economia em forma de investimento.
Isso inclui construção e recuperação de
estradas, geração de energia, modernização
de portos e aeroportos, etc. Isso tudo emprega gente, gera
contratação de empresas e coloca dinheiro no mercado.
Há um programa denominado PAC que faz exatamente isso: pega
dinheiro do Fundo de Garantia e utiliza-o no investimento em
estrutura.
O poder público
pode fazer o inverso: deixa de arrecadar ou diminui a arrecadação
de um determinado imposto. Isso barateia o preço do produto,
deixa de retirar dinheiro da economia e incentiva diretamente o
consumo. Neste momento, há isenção do IPI para a
compra de veículos automotores e de eletrodomésticos,
além de ter sido anunciada pelo governo estadual a redução
do IPVA em 9,9% para 2013.
O governo ainda tem a
atribuição de manipular a taxa básica de juros
da economia. Quando ela é alta, há um incentivo para a
poupança e um desestímulo ao investimento. A proposição
inversa é verdadeira. Portanto, juros baixos representam menor
custo de produção e, naturalmente, preços mais
atraentes, além de crédito mais em conta. Paulatinamente, o Banco Central tem diminuído a
taxa de juros. Hoje, ela é historicamente a mais baixa que já
tivemos.
Há ainda outro
fator. O governo pode injetar dinheiro em programas sociais. O
Bolsa-família que mencionei anteriormente nada mais é
do que a proposta de abre-fecha buracos de Keynes sem o gasto com
materiais. O que se faz é injetar dinheiro na economia local
dos bolsões de pobreza, sem ter que inventar motivos para
isso. Aqui, isso é pejorativamente chamado de
assistencialismo. Nos EUA, foi parte imprescindível de um
programa de recuperação econômica ocorrido em um
momento que guinou a História.
Quem lê tudo o
que eu escrevi até agora acha que eu sou barbudo porque amo o
PT, que devo usar cuecas vermelhas e ter fotos do Che Guevara
devidamente instaladas em um oratório, onde são acesos diuturnamente velas e incensos. Nada disso. Estou
apenas demonstrando que as ferramentas que são utilizadas pelo
atual governo para conduzir a economia nada mais são do que
instrumentos capitalistas, preconizados a quase um século por
um economista que percebeu a importância do governo na
manutenção da saúde econômica do país
sem ter de apelar para doutrinas marxistas. Ninguém precisa
concordar que os programas que mencionei são bons, mas é
preciso fazê-lo de maneira crítica. Para quem acha que o
Nordeste é habitado por uma cambada de sem-vergonhas que se
alimenta de impostos gerados no sul maravilha, seria interessante
assistir ao documentário Garapa, do diretor José
Padilha, o mesmíssimo que foi tachado de ultradireitista por
seu filme Tropa de Elite. O nível de miséria a que se
expõe o brasileiro que mora nestes lugares não é
possível de imaginar aqui em São Paulo, no Rio de
Janeiro, Paraná, Santa Catarina ou Rio Grande do Sul. Aqui há
pobreza, é certo. Mas dificilmente alguém morrerá
de fome.
O que eu sinto muita
falta no universo atual é de inteligência. Falei em um
exemplo de discordância consistente lá começo,
falo de outro agora: o governo brasileiro pode brincar com impostos
porque eles são excessivos. Não basta criar isenções
temporárias; seria muito melhor dar firmeza ao mercado com a
extinção dos impostos. Outra: as bases para utilização
de fundos em programas como o PAC são titubeantes. Afinal,
estes recursos têm uma destinação bastante
específica. Será o governo capaz de responder
adequadamente a uma demanda elevada de saques, se o dinheiro está
investido em obras? Mais uma: uma economia que se baseia no consumo de bens automotivos certamente terá problemas para lidar com as questões ecológicas no futuro, assim como terá que se desdobrar para convencer a população das cidades a deixarem seus carros na garagem, tendo como opção um transporte público de pouca qualidade. ESTAS são dúvidas decentes,
contraposições legítimas, divergências que
dão gosto de debater. Não durmam no barulho do ataque livre e injustificado, a
miséria é apenas e tão somente miséria. Dificilmente um miserável é responsável por sua própria condição, e mais dificilmente ainda encontra subsídios para sair de seu status.
Portanto, meus caros,
tomem cuidado antes de encaixar suas opiniões a uma bazófia
qualquer, ditas por alguém pretensamente conhecedor do assunto
e prenhe até a orelha de maldade. Nunca é ridículo
não saber; ridículo é tentar vender aos outros
uma idéia sem base nos fatos, e mais ridículo ainda é
aceitar essas idéias como verdadeiras.
Recomendações:
A principal obra de Keynes, onde são apontadas as saídas para os ciclos de estagnação do capitalismo é a seguinte:
KEYNES, John M. Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda. São Paulo: Atlas, 1982.
Mencionei o documentário Garapa. É necessário assisti-lo antes de achar que podemos traçar um perfil da pobreza no Nordeste a partir das nossas observações feitas a distância.
PADILHA, José. Garapa. Filme. Brasil, 2009. 110 min.
Recomendações:
A principal obra de Keynes, onde são apontadas as saídas para os ciclos de estagnação do capitalismo é a seguinte:
KEYNES, John M. Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda. São Paulo: Atlas, 1982.
Mencionei o documentário Garapa. É necessário assisti-lo antes de achar que podemos traçar um perfil da pobreza no Nordeste a partir das nossas observações feitas a distância.
PADILHA, José. Garapa. Filme. Brasil, 2009. 110 min.
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