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sábado, 24 de novembro de 2012

Sobre planos econômicos capitalistas com cara de marxismo (e o ódio na rede)

Olá!

Já tem quase um mês que ocorreu o segundo turno das eleições municipais aqui em São Paulo, e eu teria bastante coisa para falar sobre este assunto, mas deixarei isso para um momento mais oportuno. No entanto, algo me chamou deveras atenção com a divulgação do resultado final: a reação negativa de uma camada significativa da população nas redes sociais. São manifestações rancorosas, desproporcionais, preconceituosas, de ódio mesmo, tendo em vista a eleição de Fernando Haddad, membro do PT, um partido declaradamente de esquerda, mas que na prática está longe de ser socialista.

A principal acusação desse pessoal tem menos a ver com os recentes julgamentos referentes ao escândalo do mensalão do que seria possível supor. Na verdade, o que se diz é que os governos do PT estão formando uma classe social vagabunda, que se sustenta pelas benesses dos programas sociais como o Bolsa Família, por exemplo, e que por isso amealha os votos destes “ignorantes”. Ora, é preciso ser muito preconceituoso para imaginar que um cidadão se contente em viver com os aproximados duzentos reais recebidos assistencialmente do que com um salário que, em tese, tem no mínimo o triplo deste valor, apenas para não ter que trabalhar. Esse não é um bom argumento para atacar esse programa. Aliás, é burro, porque dá ares de socialismo a um dispositivo que, como veremos adiante, nasceu do próprio capitalismo. Se algum dos indignados dissesse que melhor seria utilizar esse dinheiro na execução de obras de infraestrutura necessárias à expansão econômica dos bolsões de pobreza, tornando-os sustentáveis, aí sim teríamos argumentos válidos. Mas esse tipo de idéia não é tão fácil de se desenvolver, porque é menos próxima do senso comum do que, por exemplo, aquela que ataquei no meu texto “Sobre Lula, SUS e autoritarismo”. É mais fácil jogar a culpa do meu bolso mais vazio em meu vizinho do que em mim mesmo. Nunca somos nós que não sabemos votar, é sempre o outro, esse ser dos infernos.

Bom... O grande problema é que esta reação, como eu já disse, é tão cega que não percebe que os mecanismos econômicos utilizados para manter a situação do país sob controle (enquanto a Europa se esvai em déficit e os EUA tem sua economia abalada) não são derivados puros e simples do ideário dos malvados comunistas comedores de criancinhas e pobres dinheirinhos, mas do próprio capitalismo. Para isso, preciso tocar em um tema inédito por estas plagas, que é o pensamento econômico. Vamos chamar John Maynard Keynes.


Os economistas liberais clássicos, que preponderaram entre o século XIX e o começo do século XX, sempre preconizaram que a participação do Estado na economia deveria ser a menor possível, sem sair de suas atividades típicas, como legislar, julgar e arrecadar. O próprio mercado teria o condão de se auto-equilibrar, através de suas leis gerais, para distribuir os recursos necessários e proporcionar um bem-estar à sociedade, dentro de uma margem aceitável. A presença do Estado seria prejudicial porque invadiria uma atribuição que não é sua, principalmente ao se colocar ele mesmo como um dos proprietários dos meios de produção. Qualquer empresa pública, neste sentido, seria um passo rumo à alternativa do comunismo.

Sob estes ditames, tudo funcionava às mil maravilhas e parecia que a charada econômica tinha sido desvendada no primeiro mundo, até chegar o crack da bolsa de valores de Nova Iorque em 1929, e o castelinho liberal provar-se feito de areia. Isso porque as empresas começaram a quebrar aos borbotões, gerando um imenso contingente de desempregados que, desprovido de dólares, reduziram suas compras ao mínimo necessário, levando à bancarrota mais e mais negócios, em um círculo do caos que tinha tudo para conduzir a vaca estadunidense ao mais grudento dos brejos.

Keynes, um canadense radicado nos EUA, deu a solução. Segundo ele, não é possível que o governo fique de braços cruzados observando o mercado tentar restabelecer seu equilíbrio por si só. Ele precisa contribuir. Melhor ainda, ele DEVE intervir.

A lógica da circulação do mercado se baseia em um binômio consumo-investimento. Desta relação, é estabelecido o nível de ocupação dos trabalhadores, que, em última instância, constituem a grande massa de consumidores. Quando, por motivo X ou Y, há diminuição de um, há reflexo no outro. Assim: havendo diminuição do investimento, há diminuição do emprego e a conseqüente diminuição do consumo. Até aí, temos a regra liberal. Só que, quando essa diminuição se dá a níveis muito baixos, torna-se muito difícil e lenta a recuperação do mercado. E, neste meio tempo, a massa trabalhadora sofre, e muito.

Quando a economia dá sinais de que está entrando em um parafuso deste tipo, o governo deve promover aumentos tanto no consumo quanto no investimento, para fazer a roda do capital girar de maneira bem lubrificada. Ok, se o governo encampar empresas e participar diretamente do mercado, teremos uma tendência às profecias marxistas. Mas Keynes não queria que o governo fizesse algo semelhante. O que ele desejava é que o poder público lançasse mão dos mecanismos que lhe são típicos, e com isso resolvesse as crises sem ameaçar a propriedade privada dos meios de produção.

Ora, que mecanismos são esses? O governo tem o poder de controlar uma série de requisitos que permitem a sua efetiva participação na ciranda econômica, de modo legítimo (na visão capitalista). O governo, por exemplo, é a entidade que determina e coleta os impostos, e que estabelece o que se fará com eles. O governo também controla a taxa de juros, podendo fazê-la flutuar para cima ou para baixo em conformidade com as necessidades do mercado. Isso tudo pode modificar os níveis de investimento ou reativar as margens de consumo, na medida em que pode readequar a ocupação de pessoal, ou tornar atrativas as compras, ou remover o incentivo à poupança. A idéia básica é injetar dinheiro na economia e fazê-lo circular da melhor maneira possível. Keynes chegou a dizer que o governo estadunidense teria uma atitude inteligente se ocupasse desempregados para abrir e posteriormente tapar buracos, sem aparente propósito. O simples fato de pagar-lhes salários faria com que estes se tornassem novamente consumidores, com nova movimentação da economia.

O pessoal da velha guarda econômica estrilou muito com essas idéias tidas como radicais, mas tinham a história contra eles. Sorte dos primeiro-mundistas que Theodore Roosevelt botou fé nas teorias de Keynes e as encampou, aplicando-as no New Deal, o plano que recuperou a economia dos EUA, usando e abusando da intervenção do Estado na economia. Bom, abusando é um pouco de exagero.

Pois muito bem, então. Vamos pegar esse rápido mostruário e aplicá-lo à nossa realidade brasileira. O governo pode captar dinheiro de impostos e injetá-los na economia em forma de investimento. Isso inclui construção e recuperação de estradas, geração de energia, modernização de portos e aeroportos, etc. Isso tudo emprega gente, gera contratação de empresas e coloca dinheiro no mercado. Há um programa denominado PAC que faz exatamente isso: pega dinheiro do Fundo de Garantia e utiliza-o no investimento em estrutura.

O poder público pode fazer o inverso: deixa de arrecadar ou diminui a arrecadação de um determinado imposto. Isso barateia o preço do produto, deixa de retirar dinheiro da economia e incentiva diretamente o consumo. Neste momento, há isenção do IPI para a compra de veículos automotores e de eletrodomésticos, além de ter sido anunciada pelo governo estadual a redução do IPVA em 9,9% para 2013.

O governo ainda tem a atribuição de manipular a taxa básica de juros da economia. Quando ela é alta, há um incentivo para a poupança e um desestímulo ao investimento. A proposição inversa é verdadeira. Portanto, juros baixos representam menor custo de produção e, naturalmente, preços mais atraentes, além de crédito mais em conta. Paulatinamente, o Banco Central tem diminuído a taxa de juros. Hoje, ela é historicamente a mais baixa que já tivemos.

Há ainda outro fator. O governo pode injetar dinheiro em programas sociais. O Bolsa-família que mencionei anteriormente nada mais é do que a proposta de abre-fecha buracos de Keynes sem o gasto com materiais. O que se faz é injetar dinheiro na economia local dos bolsões de pobreza, sem ter que inventar motivos para isso. Aqui, isso é pejorativamente chamado de assistencialismo. Nos EUA, foi parte imprescindível de um programa de recuperação econômica ocorrido em um momento que guinou a História.

Quem lê tudo o que eu escrevi até agora acha que eu sou barbudo porque amo o PT, que devo usar cuecas vermelhas e ter fotos do Che Guevara devidamente instaladas em um oratório, onde são acesos diuturnamente velas e incensos. Nada disso. Estou apenas demonstrando que as ferramentas que são utilizadas pelo atual governo para conduzir a economia nada mais são do que instrumentos capitalistas, preconizados a quase um século por um economista que percebeu a importância do governo na manutenção da saúde econômica do país sem ter de apelar para doutrinas marxistas. Ninguém precisa concordar que os programas que mencionei são bons, mas é preciso fazê-lo de maneira crítica. Para quem acha que o Nordeste é habitado por uma cambada de sem-vergonhas que se alimenta de impostos gerados no sul maravilha, seria interessante assistir ao documentário Garapa, do diretor José Padilha, o mesmíssimo que foi tachado de ultradireitista por seu filme Tropa de Elite. O nível de miséria a que se expõe o brasileiro que mora nestes lugares não é possível de imaginar aqui em São Paulo, no Rio de Janeiro, Paraná, Santa Catarina ou Rio Grande do Sul. Aqui há pobreza, é certo. Mas dificilmente alguém morrerá de fome.

O que eu sinto muita falta no universo atual é de inteligência. Falei em um exemplo de discordância consistente lá começo, falo de outro agora: o governo brasileiro pode brincar com impostos porque eles são excessivos. Não basta criar isenções temporárias; seria muito melhor dar firmeza ao mercado com a extinção dos impostos. Outra: as bases para utilização de fundos em programas como o PAC são titubeantes. Afinal, estes recursos têm uma destinação bastante específica. Será o governo capaz de responder adequadamente a uma demanda elevada de saques, se o dinheiro está investido em obras? Mais uma: uma economia que se baseia no consumo de bens automotivos certamente terá problemas para lidar com as questões ecológicas no futuro, assim como terá que se desdobrar para convencer a população das cidades a deixarem seus carros na garagem, tendo como opção um transporte público de pouca qualidade. ESTAS são dúvidas decentes, contraposições legítimas, divergências que dão gosto de debater. Não durmam no barulho do ataque livre e injustificado, a miséria é apenas e tão somente miséria. Dificilmente um miserável é responsável por sua própria condição, e mais dificilmente ainda encontra subsídios para sair de seu status.

Portanto, meus caros, tomem cuidado antes de encaixar suas opiniões a uma bazófia qualquer, ditas por alguém pretensamente conhecedor do assunto e prenhe até a orelha de maldade. Nunca é ridículo não saber; ridículo é tentar vender aos outros uma idéia sem base nos fatos, e mais ridículo ainda é aceitar essas idéias como verdadeiras.


Recomendações:

A principal obra de Keynes, onde são apontadas as saídas para os ciclos de estagnação do capitalismo é a seguinte:

KEYNES, John M. Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda. São Paulo: Atlas, 1982.


Mencionei o documentário Garapa. É necessário assisti-lo antes de achar que podemos traçar um perfil da pobreza no Nordeste a partir das nossas observações feitas a distância.

PADILHA, José. Garapa. Filme. Brasil, 2009. 110 min.  

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