No meu último post (vejam aqui), pretendia encerrar o assunto Amy Winehouse e suas derivações. Em um determinado momento, defendi a tese de que o consumo de drogas é movido por um tripé, composto de fuga, hedonismo e curiosidade. Essas três características acabam por se interpenetrar, sendo que, de caso a caso, uma prepondera sobre a outra.
Acontece que meu leitor e amigo Vithor fez uma colocação adicional a essas três motivações. Para ele, exerce uma influência muito forte a questão da adequação ao grupo social de convívio do pretenso usuário. Se o grupo é consumidor, muito provavelmente o pretendente a integrá-lo será admoestado a seguir o ditame comum, ou seja, aderir ao cigarrinho de artista e outros aditivos. Ele tem razão.
Resta então
saber como se dá esse processo. De fato, basta puxar um pouco
pela memória para lembrar que todos os baseados que me
ofereceram até hoje partiram de amigos, pessoas conhecidas e
com as quais existe alguma relação de confiança,
e não de algum completo desconhecido, para quem os muros
relacionais estão solidamente erguidos. Chegar a este submundo
sempre tem uma ponte.
Da sacada de meu
apartamento observo diariamente os “nóias” da nova
Crackolândia. Em sua maioria, são indivíduos
rotos, de neurônios devidamente cozidos, sem noção
clara do que estão fazendo ali, embrulhados em seus cobertores
imundos. Mas não é incomum a presença de pessoas
bem vestidas, meninas arrumadas, até mesmo rapazes de roupa
social, raramente sozinhos, imiscuídos em um ambiente caótico, fétido
e mal organizado.
Mal organizado? Há
controvérsias. Desta mesma sacada, observo que os portadores
das pedras sempre variam, para que ninguém fique marcado como
traficante; vejo que há sempre um olheiro que investiga a ação
da polícia; vejo que eles buscam a droga sempre em um mesmo
local (um prédio abandonado, com várias rotas de fuga);
percebo também o modo como se dispersam diante das ameaças,
sempre mantendo alguém “limpo” para que as abordagens
policiais não resultem em apreensões e detenções.
E desta forma, com a adoção destas táticas
simples, e com a ausência do poder público, cria-se um
nicho social que se perpetua, e que tem suas hierarquias, seus ritos
e modus operandi. Em suma, há uma organização muito maior do que uma pequena olhadela pode fazer supor.
Quem realizou uma
investigação deste tipo, em um impressionante nível
de detalhamento, foi o sociólogo Willian Foote Whyte, a quem
podemos chamar de criador do estudo de caso social. Para redigir seu
livro “Sociedade de Esquina”, Whyte lentamente se aproximou e
passou a conviver com os habitantes da Little Italy, um distrito de
Boston povoado por mafiosos de origem italiana a quem apelidou de
Cornerville. Precisou de muito tempo para realizar suas pesquisas,
principalmente por que precisou ganhar a confiança das
personagens do lugar. Lá, ao contrário do que parecia
ser um ambiente onde imperava a discórdia e a disputa,
encontrou uma sociedade altamente organizada, que só foi
possível de deduzir observando as condutas particulares de
cada um dos seus componentes. Pode perceber o quanto a organização
deste espaço influía na vida de cada um, e o quanto que
cada um contribuía para torná-la cada vez mais forte.
E, no final das contas, o livro demonstra que ainda que a dita
sociedade legalmente constituída não reconheça,
os homens procuram encontrar quem lhe supra suas necessidades
fundamentais, mesmo que à margem da lei, especialmente se esta
joga um contingente populacional significativo em situação
de exclusão.
O principal ponto a que
Whyte consegue voltar seu foco é sobre a ambigüidade de
uma pequena sociedade baseada na cooperação dos seus
componentes com a grande sociedade estadunidense, que baseia seus
princípios no mérito individual. Há uma grande
sensação de pertença nos habitantes de
Cornerville, movidos por dois motivos: a influência exercida
pelos seus líderes, que buscam a fidelidade do corpo de
habitantes para poder exercer seus papéis ilícitos com
maior eficiência, e a sensação de que o Estado e
a sociedade dita civilizada não os querem, não os
toleram, e o único meio que lhes torna possível a vida
é uma organização própria, altamente
endêmica. A observação que faço de minha
sacada acaba por me remeter a uma pequena Cornerville, com suas
regras próprias e seus meios e estruturas concebidos
inconscientemente para que possam subsistir, ainda que de modo
tremendamente precário. Temos uma visão comunitária neste meio, há colaboração mútua; por meios tortos, é verdade, mas há.
Pois muito bem. O que
faz com que um indivíduo se insira neste meio? Vou considerar
os mesmos três fatores que já mencionei anteriormente:
fuga, hedonismo e curiosidade, mas fixar-me-ei no primeiro. É
certo que tal convívio embute em sua lógica uma
adequação aos costumes do grupo, mas para que isso
aconteça, é preciso que haja uma insatisfação
com o ambiente de origem. Muitos aspectos devem ser considerados:
repressão dos desejos, busca de independência e alguns
outros. De toda forma, havia algo na origem que não
correspondia aos anseios gerais, e o ambiente reordenado que é
encontrado vem, de alguma forma, suprir estes anseios, tapar estes
buracos. As plataformas psicológicas podem estar sustentadas
por pinos frouxos, e a percepção de que a troca da
reprimenda familiar pela aparente liberdade propiciada pelo mundo do
vício não traz imbuída em si uma escravização
ainda pior. Ou, o que é pior ainda, tem-se a sensação
de que este é um protesto válido contra tudo o que lhe
foi causado de dor pelas regras de convívio anteriores. Só
que este novo ambiente cobra suas regras próprias, e o caminho
adotado é de uma progressiva adequação à
nova realidade, quase sempre iniciada pela ponte que citei no início
deste texto, ou seja, o amigo que oferece um inocente baseadinho, descortinando um mundo novo.
O voo é cego, mas existe uma meta a ser atingida, que é procurar um modo de escapar de uma realidade que não satisfaz. Neste sentido, a adequação é, sim, uma
modalidade de fuga.
Concluo, portanto, que
se o Vithor tem razão, eu também não deixo de
tê-la, e minha tese permanece válida.
Recomendação de leitura:
Para aqueles que apreciam sociologia, trata-se de um livro imperdível, muito interessante e escrito com "raça". Estabeleceu um novo paradigma para a visão sociológica, ao trazer o cientista ao cenário dos fatos.
WHYTE, William Foote. Sociedade de esquina. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.
Recomendação de leitura:
Para aqueles que apreciam sociologia, trata-se de um livro imperdível, muito interessante e escrito com "raça". Estabeleceu um novo paradigma para a visão sociológica, ao trazer o cientista ao cenário dos fatos.
WHYTE, William Foote. Sociedade de esquina. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.
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