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segunda-feira, 23 de julho de 2012

A sinonímia entre a fuga e a adequação ao grupo

Olá!

No meu último post (vejam aqui), pretendia encerrar o assunto Amy Winehouse e suas derivações. Em um determinado momento, defendi a tese de que o consumo de drogas é movido por um tripé, composto de fuga, hedonismo e curiosidade. Essas três características acabam por se interpenetrar, sendo que, de caso a caso, uma prepondera sobre a outra.

Acontece que meu leitor e amigo Vithor fez uma colocação adicional a essas três motivações. Para ele, exerce uma influência muito forte a questão da adequação ao grupo social de convívio do pretenso usuário. Se o grupo é consumidor, muito provavelmente o pretendente a integrá-lo será admoestado a seguir o ditame comum, ou seja, aderir ao cigarrinho de artista e outros aditivos. Ele tem razão.

Resta então saber como se dá esse processo. De fato, basta puxar um pouco pela memória para lembrar que todos os baseados que me ofereceram até hoje partiram de amigos, pessoas conhecidas e com as quais existe alguma relação de confiança, e não de algum completo desconhecido, para quem os muros relacionais estão solidamente erguidos. Chegar a este submundo sempre tem uma ponte.

Da sacada de meu apartamento observo diariamente os “nóias” da nova Crackolândia. Em sua maioria, são indivíduos rotos, de neurônios devidamente cozidos, sem noção clara do que estão fazendo ali, embrulhados em seus cobertores imundos. Mas não é incomum a presença de pessoas bem vestidas, meninas arrumadas, até mesmo rapazes de roupa social, raramente sozinhos, imiscuídos em um ambiente caótico, fétido e mal organizado.

Mal organizado? Há controvérsias. Desta mesma sacada, observo que os portadores das pedras sempre variam, para que ninguém fique marcado como traficante; vejo que há sempre um olheiro que investiga a ação da polícia; vejo que eles buscam a droga sempre em um mesmo local (um prédio abandonado, com várias rotas de fuga); percebo também o modo como se dispersam diante das ameaças, sempre mantendo alguém “limpo” para que as abordagens policiais não resultem em apreensões e detenções. E desta forma, com a adoção destas táticas simples, e com a ausência do poder público, cria-se um nicho social que se perpetua, e que tem suas hierarquias, seus ritos e modus operandi. Em suma, há uma organização muito maior do que uma pequena olhadela pode fazer supor.


Quem realizou uma investigação deste tipo, em um impressionante nível de detalhamento, foi o sociólogo Willian Foote Whyte, a quem podemos chamar de criador do estudo de caso social. Para redigir seu livro “Sociedade de Esquina”, Whyte lentamente se aproximou e passou a conviver com os habitantes da Little Italy, um distrito de Boston povoado por mafiosos de origem italiana a quem apelidou de Cornerville. Precisou de muito tempo para realizar suas pesquisas, principalmente por que precisou ganhar a confiança das personagens do lugar. Lá, ao contrário do que parecia ser um ambiente onde imperava a discórdia e a disputa, encontrou uma sociedade altamente organizada, que só foi possível de deduzir observando as condutas particulares de cada um dos seus componentes. Pode perceber o quanto a organização deste espaço influía na vida de cada um, e o quanto que cada um contribuía para torná-la cada vez mais forte. E, no final das contas, o livro demonstra que ainda que a dita sociedade legalmente constituída não reconheça, os homens procuram encontrar quem lhe supra suas necessidades fundamentais, mesmo que à margem da lei, especialmente se esta joga um contingente populacional significativo em situação de exclusão.

O principal ponto a que Whyte consegue voltar seu foco é sobre a ambigüidade de uma pequena sociedade baseada na cooperação dos seus componentes com a grande sociedade estadunidense, que baseia seus princípios no mérito individual. Há uma grande sensação de pertença nos habitantes de Cornerville, movidos por dois motivos: a influência exercida pelos seus líderes, que buscam a fidelidade do corpo de habitantes para poder exercer seus papéis ilícitos com maior eficiência, e a sensação de que o Estado e a sociedade dita civilizada não os querem, não os toleram, e o único meio que lhes torna possível a vida é uma organização própria, altamente endêmica. A observação que faço de minha sacada acaba por me remeter a uma pequena Cornerville, com suas regras próprias e seus meios e estruturas concebidos inconscientemente para que possam subsistir, ainda que de modo tremendamente precário. Temos uma visão comunitária neste meio, há colaboração mútua; por meios tortos, é verdade, mas há.

Pois muito bem. O que faz com que um indivíduo se insira neste meio? Vou considerar os mesmos três fatores que já mencionei anteriormente: fuga, hedonismo e curiosidade, mas fixar-me-ei no primeiro. É certo que tal convívio embute em sua lógica uma adequação aos costumes do grupo, mas para que isso aconteça, é preciso que haja uma insatisfação com o ambiente de origem. Muitos aspectos devem ser considerados: repressão dos desejos, busca de independência e alguns outros. De toda forma, havia algo na origem que não correspondia aos anseios gerais, e o ambiente reordenado que é encontrado vem, de alguma forma, suprir estes anseios, tapar estes buracos. As plataformas psicológicas podem estar sustentadas por pinos frouxos, e a percepção de que a troca da reprimenda familiar pela aparente liberdade propiciada pelo mundo do vício não traz imbuída em si uma escravização ainda pior. Ou, o que é pior ainda, tem-se a sensação de que este é um protesto válido contra tudo o que lhe foi causado de dor pelas regras de convívio anteriores. Só que este novo ambiente cobra suas regras próprias, e o caminho adotado é de uma progressiva adequação à nova realidade, quase sempre iniciada pela ponte que citei no início deste texto, ou seja, o amigo que oferece um inocente baseadinho, descortinando um mundo novo. O voo é cego, mas existe uma meta a ser atingida, que é procurar um modo de escapar de uma realidade que não satisfaz. Neste sentido, a adequação é, sim, uma modalidade de fuga.

Concluo, portanto, que se o Vithor tem razão, eu também não deixo de tê-la, e minha tese permanece válida.

Recomendação de leitura:

Para aqueles que apreciam sociologia, trata-se de um livro imperdível, muito interessante e escrito com "raça". Estabeleceu um novo paradigma para a visão sociológica, ao trazer o cientista ao cenário dos fatos.

WHYTE, William Foote. Sociedade de esquina. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.

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