(É bom ter esperança? Ou é mais uma maneira de se imobilizar?)
“Zeus quis que os homens, por mais torturados que fossem pelos outros males, não rejeitassem a vida, mas continuassem a se deixar torturar. Para isso lhes deu a esperança: ela é na verdade o pior dos males, pois prolonga o suplício dos homens”
Nietzsche
Olá!
Entre prós e contras, há os contras e os prós. Embora haja
absolutamente de tudo a vinte passos de distância, o centro de São Paulo é um
lugar sujo, isso está assente e bem consolidado. O meu lugar de fala é o de
quem mora lá, e, com isso, analisa todo aquele universo que lhe afeta
diretamente. O primeiro olhar de qualquer pessoa é o de que os responsáveis
pela lixeira são os mendigos e catadores, mas esse é um ledo engano. Os porcos
somos nós mesmos, auxiliados por um poder público que parece não saber o
significado de zeladoria urbana. São nossos legítimos representantes, e, sendo
assim, nossas mãos que assinam decretos.
Saindo do geral para o miúdo, nós do centro acabamos nos
acostumando a ter um passo de bêbado para fugir da sujeira. Pulo uma casca de
fruta à esquerda e já encolho o pé para evitar um saco de lixo à direita e,
nesse estranho balé, vou evitando ter que lavar o tênis. Mas, da mesma forma
que renomada bailarina, mesmo na prática há passos em falso, e é inevitável
cair em alguma armadilha.
Uma delas foi uma caixa de papelão que estava bem na porta
do balansarte prédio em que habito, numa das tardes desses domingos
pasmacentos. Um treco daqueles bem no meio do caminho da estreita passagem é
algo irritante para alguém que já vive irritado, e mandei ela para longe com um
chute digno de Nelinho. O problema é que a tal caixa foi lá colocada para
encobrir um conteúdo pouco nobre, e, espalhafatoso, cai com o pé do chute em
cheio da massa disforme, que se espalhou por toda a realidade circunstante, eu
incluso. Como era inevitável, a supernova orgânica chegou ao tapete da entrada
e o melecou todo, implantando um cenário caótico. Como ainda tento manter
civilidade, contei até dez e não quis deixar a hecatombe para o pobre seo
Antônio, o porteiro ocasional dessa bodega de condomínio caro e zeladoria
ausente, e lá vim com balde e esfregão para curtir um domingo perfeito. A cada
etapa da limpeza, um impropério berrado em alto e bom som, daqueles de rachar
um carvalho ao meio e aumentar o léxico de carroceiros. Levando em consideração
que é um prédio de senhorinhas católicas conservadoras, virei atração turística
por um dia, da pior maneira possível. “Que moço boca suja!” foi a afirmação
mais elogiosa, por causa do “moço”.
Momentos impulsivos não trazem belos resultados, como se
pode ver. Algumas ações imediatas são necessárias para a própria sobrevivência,
como provam os instintos, mas, em geral, elas vão muito além da necessidade,
porque são desmedidas. Mas o fato é que muita coisa na humanidade já foi
decidida nessa base, a ponto de um dos mais significativos mitos gregos estar
associado a eles: a caixa de Pandora. Essa não é só uma explicação para a
presença do mal no mundo, mas também como a fraqueza de um ser pode influenciar
todo o universo, assim como a inconsequência de um ato impensado encadeia uma
série de consequências imprevisíveis.
Mitos são assim mesmo: formalizam uma determinada maneira de
pensar, geralmente de um pensamento assentado em uma comunidade, que adotam a
voz de um profeta ou outra autoridade para consolidar a narrativa como se fosse
única, daquele povo. Os gregos formaram a base filosófica do pensamento
ocidental, e, por essa razão, há inúmeros mitos que conhecemos e aplicamos
poeticamente. Dentre tantos, a história da jovem Pandora é um dos mais
célebres.
A narrativa mais consolidada de Pandora e sua caixa é a
seguinte: em um momento em que ainda não existia a humanidade, o universo
assistia deuses e titãs se digladiando pelo poder. Como essas lutas incluem
desde sempre não somente a força, mas a trairagem, os titãs Prometeu e Epitemeu
se bandearam para o lado dos deuses, o que desbalanceou o equilíbrio a favor
destes últimos. É dito de Prometeu que ele tinha a capacidade de antever os
acontecimentos com base em sua aguçada inteligência, e prevendo a vitória dos
deuses, convenceu seu irmão a segui-lo. Como prêmio pela ajuda dos dois, Zeus,
o líder dos deuses, não só não os jogou no Tártaro* com os demais titãs
derrotados, como também concedeu a ambos o direito de povoarem a terra. Epimeteu,
aquele que vê depois, utilizou todos os atributos possíveis para criar todos os
animais, restando a Prometeu a criação de características únicas ao homem.
Ocorre que este era um animal dentre os outros, um bruto sem nenhum brilho, já
que Epimeteu não lhe reservou nada de mais insigne. Prometeu foi a Zeus
pleitear o uso do fogo pela humanidade, o que foi prontamente negado, dado ser esta
a ferramenta de sabedoria equalizadora aos deuses. Insatisfeito, Prometeu
roubou o fogo dos deuses e o deu aos homens, que, dessa forma, passaram a ter
sabedoria equivalente, e, dessa forma, imperar sobre as demais criaturas.
Zeus ficou puto não gostou nada da atitude de
Prometeu, e lhe impingiu um castigo eterno: acorrentá-lo em uma pedra do Monte
Cáucaso, aonde uma águia viria diariamente para lhe rasgar o ventre e comer seu
fígado. Sendo um imortal, todos os dias seu corpo era regenerado, o que o
penalizava infinitamente. Mas sobrou também para nós, a criatura do infeliz
titã, e o castigo veio na forma de ardil.
Uma vez livre de Prometeu, Zeus criou uma companheira para
Epimeteu, a primeira de todas as mulheres, e lhe deu o nome de Pandora, que, em
grego, significa algo como “todos os dons”. Ela recebeu a criação de todos os
deuses olímpicos, que, de algum modo, deram a ela características: dentre
outros dons, de Afrodite, recebeu a beleza; de Atena, recebeu as habilidades
artísticas, e recebeu o poder de persuasão de Hermes, bem como a curiosidade de
Hera, o que acabou por ser sua desgraça. Foi entregue em casamento para o titã,
apaixonadíssimo por sua beleza. Zeus deu-lhes um presente de casamento
inusitado: um jarro** a quem foi recomendado a Pandora jamais ser aberto. Conhecer
do espírito humano, Zeus sabia que essa proibição era quase uma ordem para que
Pandora fizesse o oposto. Movida pela curiosidade, a bela mulher descumpriu a
ordem divina (já ouvi essa história em algum lugar) e abriu a tampa do jarro, e
o fenômeno aconteceu: lá dentro, estavam contidos todos os males que acometem a
humanidade: a fome, as doenças, as guerras, a solidão, a fraqueza, as dores
físicas e morais, o sofrimento externo e interior. À abertura do receptáculo,
todos eles fugiram e se espalharam incontidamente, por toda parte para onde
pudessem ir. Quando Pandora se deu conta do que havia feito, tentou fechar
novamente o tampo, mas reteve somente um último item: a esperança. Compreendendo
que não fazia sentido mantê-la no recipiente, achou por bem libertá-la também,
e ela foi se espalhar pelo universo, como todos os demais conteúdos.
Normalmente, a interpretação da libertação da esperança é
vista de forma positiva. Apesar do grande projeto de vingança de Zeus contra a
criação de Prometeu, ele ainda tem alguma piedade, e a esperança seria o
alimento espiritual que faria com que os homens ainda tivessem alguma forma de
encarar o mundo, apesar da dor e do reconhecimento da dor. Não fosse a
esperança libertada, a raça humana não teria grandes motivos para permanecer
viva.
Entretanto, há quem interprete essa esperança que resta no
fundo da caixa de Pandora como um bem entre os males, ou não só um mal entre os
outros, mas também como o pior dos males. É de Nietzsche, dentre outros, que eu
falo.
A ideia é a seguinte: se eu saio de um estado de felicidade
para um mundo assombrado por todas as desgraças possíveis, seria natural pensar
que a opção seria sair desse mundo, mesmo que pela via da morte. Imaginar-se
como sofredor de um mal eterno é precisamente o expediente das quais as
religiões lançam mão para quando querem criar uma atmosfera infernal: a dor
eterna. Se isso não ocorre, o que pode explicar o fenômeno?
Notem, meus amigos, que um mundo sem vida é, também, um
mundo sem dor. É preciso que os seres existam para que a dor também exista, já
que sofrimento é uma inerência da vida. Não se preocupem com o metal que o
ferreiro malha, nem com a pedra que o britador perfura: elas não sentem dor.
Sendo assim, a abertura da caixa de Pandora só é efetiva porque a humanidade
persiste em sua existência. Seria mais ou menos como um vírus que exterminasse
todos os bípedes implumes: ele mesmo se exterminaria junto. Os males, portanto,
só existem se a esperança de dias melhores motiva as pessoas a se manterem
vivas. E, por isso, a esperança é o mal maior, o mal que nos impede de nos
apartar do mal.
A esperança, olhando por um ângulo mais psicológico, é a
concretização do instinto de sobrevivência. Ele é muito difícil de explicar,
mas sua função biológica grita: manter a existência de uma espécie. Tentamos
nos defender mesmo quando é óbvio que não o conseguiremos. Uma pessoa em queda
livre tenta se agarrar desesperadamente a qualquer salvaguarda imaginária, e
isso é uma das inerências da espécie dos caniços pensantes, mesmo que não haja
tempo de pensar. O instinto é isso: uma reação imediata a uma situação que pede
solução urgente, mesmo que não haja nenhuma chance racional de sucesso. Nós
vamos sempre tentar e isso é algo que ajudou o homo sapiens a chegar
onde está, assim como a pulex irritans, o canis lupus e outros
mais que ainda povoam o planetinha azul em cuidados paliativos. Por outro lado,
todas as espécies têm, de uma forma ou de outra, estratégias de reprodução que
visam ampliar a quantidade de indivíduos para mantê-la ou ampliá-la, o que é
uma salvaguarda para os fracassos individuais. Não há consciência de que
reproduzir perpetua a espécie; há apenas os atos individuais em si, que ocorrem
porque são prazerosos.
É difícil determinar por que temos essa sanha de preservação
da espécie? Seleção natural, meus caros. Aqueles indivíduos que, de uma forma
ou de outra, estabeleceram estratégias de prevenção acabaram durando mais do
que os valentões. Nem sempre a força é sinônimo de longevidade, e, no sentido
da perpetuação, melhor ter algum cagaço.
O medo é filho deste instinto de sobrevivência, e, no final
das contas, a sua ferramenta prática. Ele é certamente um dos males liberados
por Pandora no mito, mas, sem ele, seria mais difícil de estarmos aqui. Viram
como o sinal se inverte? Levados ao extremo, os próprios males comprovam ter um
lugar nas cadeias consequencialistas dos fenômenos do universo.
No final das contas, a medida está no ponto onde a vida vale
a pena, onde o balanço entre dores e prazeres pende irresistivelmente para o
primeiro lado, e na insistência que fazemos em ainda ter projetos onde eles não
podem prosperar. É aqui onde a assertiva de Nietzsche parece contraditória.
Quando lembramos que ele é um defensor da vida levada pelo caminho da tragédia
grega, com tudo o que ela carrega em si mesma, fica estranho achar que a
esperança, ou seja, a vida vivida em seu limite, seja um mal. Pior ainda, o mal
dos males. Na verdade, a questão é outra: Nietzsche se posiciona exatamente
contra a ilusão da esperança, o que justamente impede de ver a vida como ela é.
O amor
fati não pode acontecer se ficar refreado por uma esperança que se fixa a
um mundo ideal e infactível. Esse é o grande ponto de Nietzsche contra a
esperança.
A própria palavra esperança explica esse sentido. Ela
denuncia que ficamos à espera, que aguardamos sentados enquanto os navios
passam ao longe, e nisso reside seu mal. É que ficamos muito acostumados às
assertivas religiosas de que a esperança é o tempo de aguardar por um mundo eterno
mais justo, mas isso acaba ocultando o quanto essa atitude é engessante. Quem
espera nunca alcança, deveria ser o ditado popular, porque não se move, não
busca, não combate, e, em resumo, não cai no fluxo da vida e a incorpora à sua
própria existência. Basicamente, essa é a maneira com a qual Nietzsche encara o
mito de Pandora.
Sendo assim, pisar na merda não deixa de ser um mal, e ficar
na esperança de que o tempo vai limpar o corredor de entrada do prédio só vai
fazer com que o fedor aumente. Bons ventos a todos!
Recomendação de leitura:
Como vários outros mitos, o de Pandora está espalhado em
diversos escritos e na tradição oral. A obra abaixo é onde ele é tratado com
uma versão relativamente bem detalhada.
HESÍODO. Os trabalhos e os dias. Curitiba: Segesta, 2012.
* O Tártaro é uma espécie de inferno da cultura grega, um
submundo onde há dor e punições àqueles que ousaram contra os deuses. Semelhante
ao xeol judaico? Muito. Uma mera coincidência? Sei não.
** Ou vaso, ou caixa, dependendo da narrativa. Tem até um
termo usado em Portugal que não cabe bem usar no Brasil, para evitar
mal-entendidos.