(Como é possível um clube de futebol do centro da maior cidade da América Latina desaparecer como que por encanto?)
“É preciso esquecer para viver. A vida é esquecimento; cumpre abrir espaço para o que está por vir”.
Miguel de Unamuno
Olá!
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No prédio em que habito, havia uma senhorinha nonagenária,
falecida faz poucos dias. Minha patroinha é quem tomava conta dela, o que as
faziam relativamente íntimas. O nome dela era Madalena e parecia uma daquelas
vovós fofinhas, que fazem bolinhos de chuva ao primeiro neto que aparece em sua
porta, mesmo que faça sol saarauí. É um histórico ledo engano. Al di là
de sua aparente fofura, tínhamos uma senhora arisca como um canário, e
mal-humorada como um urso. Não à toa, ela foi bedel até os setenta anos, quando,
expulsa pela sua idade regulamentar, foi aposentada compulsoriamente.
Era daquelas catoliconas ferrenhas, que viam pecado em tudo,
e por isso mesmo não se dedicava a mais nada além de rezar seus incontáveis
terços. Era complicado presenteá-la: qualquer livro deveria ter o nihil
obstat da autoridade eclesiástica, qualquer quadro deveria ser de
santidades e qualquer música deveria ser gregoriana. Aliás, por força dos
vencimentos parcos, nunca se interessou por comprar um radinho de pilha sequer.
E passava seus dias em silêncio, cumprindo o dela e exigindo o dos outros, o
que lhe rendeu não poucas brigas, com o que era muito mal vista neste insólito
condomínio. É bem verdade que ensurdeceu de uns cinco anos para cá, o que
diminuiu muito a tertúlia e possibilitou um acréscimo de volume das nossas
vitrolas. Ainda assim, manteve-se em solidão quase absoluta, quebrada pelos
cuidados da patroa e um ou outro encontro de corredor.
Mas o mundo, em seu giro incessante, não cansa de nos trazer
surpresas. Dê um livro para um cachorro. Pode ser sagrado como uma Bíblia,
lírico como Camões, filosófico como Shakespeare, raro como os pergaminhos do
Mar Morto. Sua reação provavelmente será mijar em cima deles, após criteriosa
cafungada. É mais ou menos a mesma coisa que a dona Madalena faria com qualquer
coisa relacionada a futebol, mais uma fonte de pecados originada de
xingamentos, festas desregradas, interesses escusos e sexo, essa coisa criada
unicamente para que se dê encaminhamento firme às hostes satânicas.
Estranhamente, ela conta ter recordação de um clube na praça Clóvis, do qual
não lembrava o nome, mais parecido com uma associação de moços do que
propriamente com um lugar para prática desportiva. Nada muito claro, nem
preciso, mas, conhecendo a figura como eu conheço, compreendo ser um prodígio.
Um dia, a patroa veio me contando essa história, e achei quase impossível que a
dona Madalena conhecesse o Comercial, um clube que eu mesmo só conheço pela
placa da Federação Paulista.
Falei o nome, a consorte foi confirmar. “Comercial, é isso
mesmo! Um antro de desocupados que só queria saber de blá-blá-blá…” e por aí
afora, na voz da não-doce velhinha, lembrando-se das vezes em que cruzava com a
saída dos tais desocupados do clube em questão. É provável que ela conhecesse o
time pelo tanto que a perturbasse, e não por sua galhardia esportiva
propriamente dita. Nem tudo no mundo é surpreendente.
Foi então que o bichinho histórico-filosófico começou a me
causar coceiras. Que coisa estranha a ausência de referências sobre esse time
inconsueto. As buscas na internet causavam fácil confusão com os xarás de
Ribeirão Preto e de Campo Grande, bem mais famosos e ainda existentes.
Pouquíssima coisa se tem sobre o time da praça Clóvis Bevilácqua, local onde
hoje se pode imaginar tudo, menos um futebolzinho sendo jogado, seja pela reles
população (eu incluso), seja pelo fluxo laboral. Vejo os mendigos tenteando o
esporte bretão, e o término é sempre o mesmo, com rudimentos de bolas indo
parar na Rangel, onde é laminada pelos pesados ônibus. As publicações que
relembram o antigo escrete geralmente são mais ligadas a estatísticas de suas
atuações e algumas informações pontuais: sua fundação, a cessação de
participações nos campeonatos, algumas escalações, as cores do seu uniforme. Eu
bem que gosto desses times pequenos, como já falei neste
espaço, muito por conta do amor que meu avô tinha pelas andanças nos campos
menores, mas é impraticável achar a camisa de um fantasma. Como quem não tem
cão caça com papel transfer, tratei eu mesmo de produzir minha camisa do
Comercial do capital, o time fantasma:
Era um time de outros tempos. Não tinha uma sede social onde
se pudessem praticar treinos, fazer exercícios, ensaiar jogadas ou qualquer
coisa semelhante, a não ser fazer pequenas reuniões e desenrolar um carteado.
Ela literalmente capitaneado pelo capitão Oberdan de Nicola, que o comandava
com mão de ferro, como sói acontecer com militares. Até dele é difícil
encontrar referências. Uma pesquisa na internet indica para uma rua na Água
Branca e pouca coisa a mais.
Mas a estrutura era de um time de várzea metido à besta. Não
tinha um estádio, treinava onde dava e possuía somente a sede que eu mencionei
mais acima, em salão alugado. Mesmo para a época em que surgiu, sua organização
era amadora, somente sendo possível por força da influência política do capitão
e pela desistência dos times das ligas amadoras, em um momento em que ainda não
se tinha a primazia absoluta do futebol nas praças esportivas. Por conta de sua
pequenez, era visto como um adversário inofensivo, e conhecido como “o mais
simpático”, uma espécie de time para o qual todos reservavam alguma torcida.
O fato inescapável, entretanto, é que foi um dos fundadores
da Federação Paulista. Faz parte dos onze daquela placa da Barra Funda porque
possui sua importância histórica. Quer dizer… deveria ter. Não se consegue
achar quase nada dele, a não ser a curiosidade de constar na placa de tantas
agremiações famosas no mundo inteiro, ou de outras que ainda são ao menos
encontráveis. O Comercial é uma demonstração de como somos desleixados com a
nossa história, resumida pelo seu derradeiro desaparecimento.
Um belo dia, o proprietário do prédio onde ficava a última
salinha que abrigava seus troféus e registros, diante da falta de pagamentos,
mandou meter um pé de cabra na porta e baixou tudo em um caminhão para doar e
jogar no lixo, e tudo aquilo que podia render uma parte importante da história
do nosso futebol partiu irremediavelmente. Fotos, fichas, estatutos, troféus,
medalhas, camisas, tudo foi para a lata do lixo da história. O que choca não é
a necessidade de se resgatar o imóvel propriamente dito, mas a completa
indiferença sobre o que estava indo fora. O dono nem apresenta consciência do
que estava indo para o vinagre, o que o coloca como representante geral de
nossa maneira de encarar o mundo. O último endereço, de onde seu espólio foi
removido como escolho, é na parte morta da Sé, um prédio que faz parte da
decadência geral do Centro:
Depois queremos dizer que somos o país
do futebol… Mas aí vem um tipo de pergunta que pode ser incômoda: qual
seria o proveito de se manter a memória de um clube como o Comercial?
A resposta óbvia não é a que eu quero dar. Dizer que
conhecer o passado evita erros para o futuro é uma verdade, mas não preciso
repetir isso. Só que não colocamos em prática esse ensinamento. E por que
precisamos ser pragmáticos sempre? Por que precisamos de uma utilidade para
tudo?
Cito um exemplo, repetido, mas proveitoso. Têm sido comuns
os testes para verificação genética, não mais aqueles que afligiam os pais
fugidios em programas do Ratinho da vida, mas sim os que se dedicam a rastrear
as ascendências do curioso consulente, como eu. No meu resultado, não deu quase
nada que eu não esperasse: um monte de genes italianos, uma parte grande de
ibéricos e algumas pontinhas judaicas e árabes, comuns entre os mediterrâneos.
Mas o espantoso foi uma porção meio grande de genética armênia, cujo parentesco
não encontro nos meus alfarrábios. Tentando achar ainda alguma coisa com os
poucos macróbios da família, não achei rigorosamente nada, a não ser o vizinho seo
Poladian, detto “o turco” (sobre essa contradição, leia mais aqui).
Ora, vizinhos não são parentes, e maldosamente eu poderia pensar em escapadelas
da nonna, mas o tanto de armênio encontrado também não daria o
percentual de neto, então culpar a avó de maldades é injusto.
A princípio, pode-se observar que, primordialmente, o
propósito de um exame desse tipo nada tem de essencial para a sobrevivência ou
para o conforto, a não ser conhecer os rastros genéticos de um contribuinte
qualquer, mas ele fala muito mais do que meramente produzir especulações sobre
a dignidade da vozinha. Em primeiro lugar, é que a extensão de um exame desses
dá aspectos de saúde da pessoa que o faz, traçando um mapeamento das tendências
que a predisposição genética fornece às doenças dessa categoria. E não tem como
dizer que isso não é importante.
Mas a parte útil, no final das contas, pode importar menos
que a parte divertida. Se eu vir que tenho uma tendência ao câncer do pulmão,
lembrarei que fumei por mais de vinte anos e colocarei uma espada sobre a minha
cabeça. Se eu não tiver o psicológico em dia, de repente entro em parafuso, e
mesmo tendo feito todos os abusos desfavoráveis, posso terminar os dias tendo
pulmões de lobo mau, enquanto minhas origens não são hipotéticas, mas reais.
Entretanto, não há como não admitir que o aspecto pragmático não esteja
presente.
Ora (direis), isso é jogar sujo, porque daí está se dando
uma utilidade prática ao exame e está se saindo do aspecto histórico para ficar
em um aspecto bem presente. Como meu insuportável interlocutor imaginário tem
razão, sou obrigado a dar outro tipo de demonstração.
O curso superior de filosofia tem aspectos iguais aos de
qualquer outro, composto de entusiasmo e açodamento. É comum alunos de medicina
querendo clinicar, ou futuros causídicos defendendo e atacando, ou ainda
aprendizes de desenvolvimento que viajam em seus notebooks tentando invadir a
Nasa. Não é diferente com estudantes de filosofia, que querem aplicar respostas
rápidas ao seu quotidiano, e achar soluções para os grandes problemas da
humanidade como quem decide se quer pudim ou maria-mole de sobremesa. Para
fazer isso, querem partir de cabeça para as temáticas que mais lhe atraem, como
questões éticas, metafísicas, existenciais, e assim por diante. Todas as vezes em
que isso acontece, nós damos de cara com paredes cognitivas, que são as
dificuldades de compreender como algo chegou a ser como é. Eu lanço a pergunta
fundamental da epistemologia e lá eu já sofro a primeira queda: temos
conhecimento inato ou só aprendemos pela experiência? Se eu não voltar à
história da filosofia desde o começo, eu poderei estar arrogando a mim uma
conclusão que já existe há séculos, há milênios talvez. Isso acontece com a
essência das coisas, a ética da felicidade, os conceitos de beleza e bem, o que
é o ser humano. Não se estuda filosofia se não se estudar a história da filosofia.
No máximo, o que se conseguirá fazer é papagaiar falso conhecimento, e, no
mínimo, repetir conhecimento já existente.
Ok, pode-se dizer então que as grandes questões conduzem as
grandes pesquisas, e ater-se a pequenos detalhes é irrelevante. Não, crianças.
Quando se olha para os primórdios da filosofia, é bastante
comum encontrar informações que parecem cacos de cerâmica arqueológicos. Um
pedacinho aqui, um pedacinho ali, e se projeta toda uma ânfora ou um vaso.
Quanto mais caquinhos encontrarmos, melhor será a precisão do suposto artefato.
Cada pequeno vestígio dá uma conformação melhor ao objeto todo, por menor que
seja. Quase todos os primeiros filósofos são como esses pequenos pedaços, mas
quando você olha para Parmênides, percebe que a meia dúzia de fragmentos que
ele deixou é um dos pontos de inflexão mais expressivos da história da
filosofia. Naqueles poucos versos que nos restaram aparece uma concepção
absolutamente original sobre a metafísica das essências, aquela ideia de
permanência que torna as coisas identificáveis e associáveis a qualquer tempo e
em qualquer lugar. E Parmênides, com as poucas palavras que restaram de seu
patrimônio, influencia a metafísica até hoje.
Não vou dizer que o Comercial teria mudado o futebol
paulista se sua história fosse mais bem conhecida. Não vou dizer que haveria
títulos mudando de mãos, ou que regras diferentes seriam adotadas, ou se uma
lógica distinta no mercado de jogadores seria implantada. Mas a história do
Comercial é tão única que nos evidencia algo muito nosso: o quanto cuidamos mal
de nosso passado. Gostamos das glórias, e elas são boas, é verdade. Mas as
escórias também existem, e fazem diferença. O Comercial não deveria ser tão
fantasmagórico quanto é, porque lá passaram craques como Nardo, Alan, Gino
Orlando e Dino Sani, este último campeão mundial em 1958, consagrado no trio de
ferro da capital. Foi fundado em 1939 a partir da desistência do Luzitano em
participar dos campeonatos da APEA, e estava lá quando a Federação Paulista foi
fundada, participando dos campeonatos até 1961, quando a criação dos acessos e
rebaixamentos colocou o time na última divisão de então. Fundiu-se por um
período com o São Bento de São Caetano, e isso é tudo o que temos de sua
história, porque não há mais onde buscar informações.
E, para além de qualquer utilidade, é como minha partezinha
armênia, que eu sei agora existir, mas não sei de onde veio. Não me serve para
nada, não fará com que eu ganhe um único dia de vida, não aumentará meu saldo
bancário em um único cruzado, não mudará meu arroz-com feijão diário, mas traz
tempero. Muda minha história, as histórias que contarei para meus filhos e
netos, e me ensina um pouco mais sobre mim mesmo. Deveria ser assim com o
Comercial, e ainda que não tenhamos mais como resgatar seu ferro-velho, que
tenhamos aprendido uma lição e não deixemos de lado nossa história, para não
nos lamentarmos depois e dizermos que nos mesmos fomos esquecidos. Bons ventos
a todos!
Recomendações:
Um curta-metragem precioso que resgata um mínimo dos registros
históricos do Comercial e de alguns dos personagens que chegaram a conhecê-lo.
COMERCIAL F.C. – A EQUIPE FANTASMA. Direção: Ugo Giorgetti.
São Paulo: SescTV, 2014. HD.
Este livro é uma coletânea das estatísticas do Comercial,
sem grandes informações narrativas, mas com dados importantes para se
compreender o tamanho do clube. Está disponível no Museu do Futebol.
DIOGI, Júlio B.; STELLA Jr, Rodolfo. Comercial: Histórico
Estatístico do Comercial Futebol Clube. São Paulo, 2016.
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