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quinta-feira, 6 de fevereiro de 2025

O Futebol e suas diferentes filosofias: o saudoso Ypiranga e as guinadas que nos transformam por inteiro

(Mudanças radicais não são oriundas de desgraças, mas do dia-a-dia)

“A mesma velha canção

Apenas uma gota d'água num oceano sem fim

Tudo o que fazemos

Desmorona até o chão, embora nos recusemos a perceber”

Dust in the Wind - Kerry Livgren

 

"Dos nossos planos é o que tenho mais saudades"

Vento no litoral - Renato Russo

 

Olá!

Clique aqui para acessar a série toda

Diz o vulgo futebolístico que, quando alguém não sabe chutar com uma das pernas, a dita cuja só serve para descer do bonde. Pois bem. Para o máximo desgosto de Nietzsche, aquele para quem a dança era a manifestação por excelência da afirmação da vida, minhas pernas só servem para descer do bonde, ambas, quando a questão é dançar. Quer dizer, desgosto não só dele, mas da própria patroinha, que adora riscar os salões com seus pezinhos amestrados. Não posso dizer que não tentei, mas, embora ame a música, não consigo traduzir isso em expressão corporal, e quem tenta dançar comigo tem a alegre sensação de estar acompanhada de um daqueles bonecos de escapamento que ficam à frente dos postos, tão falto de articulações que sou.

Entretanto, ninguém pode alegar que eu não tenha tentado. Além da consorte, minha mãe era uma emérita pé-de-valsa, e fazia aulas de dança não para aprender, mas para manter o corpo em movimento. As duas, mãe e patroa, levaram-me para muitos salões de baile, na esperança de que meu corpo destravasse minimamente. Alguns eram tradicionais, como o Cartola, o Carinhoso ou o Independência. Outros eram modernos, incluindo aí as domingueiras do Juventus. E teve o que mais eu fui na vida: o Clube Atlético Ypiranga, no bairro de mesmo nome, muito por conta dos bailes de formatura, frequentes por lá. Fracasso, derrota. Meus pés até se coordenam, mas com um balanço harmonioso de um robô.

O Ypiranga não tem nada de novo, como se pode perceber por sua grafia. Surgiu no começo do século passado e está em uma condição especial com relação aos seus colegas fundadores da Federação Paulista de Futebol, que constam da famosa placa desta série. Ainda existe como clube, mas já não tem um departamento de futebol profissional. Se tivesse, seria o mais antigo time de futebol profissional da capital, honraria hoje cabida ao Corinthians. Assim, fica em um meio termo entre o extinto (e desaparecido) Comercial e as demais agremiações, ainda militantes nos gramados.



Só isso já basta para dar uma boa manutenção na sua história. O Ypiranga foi um concorrente bem mais incômodo que o Comercial no início de sua história. Craques de primeira magnitude passaram por lá, em especial aquele considerado o primeiro gênio do futebol brasileiro, Arthur Friedenreich. Chegou próximo dos títulos, mas não os obteve, embora possa ser que, na atual onda de reconhecer tudo quanto é festival de quadros como campeonato legítimo, surja uma tacinha que se considere como Campeonato Paulista. Tinha uma estrutura razoável, localizada próxima ao Sacomã, em uma região elevada, e, por isso, ficou conhecido como Vovô da Colina. Em um de seus muitos altos e baixos, inaugurou um campo entre as ruas dos Sorocabanos e Ituanos, que subsistiu enquanto disputou o futebol profissional, o que deixou de fazer no momento em que aconteceu o crescimento do futebol do interior, e que redundou nos mecanismos de acesso e descenso.

Hoje o Ypiranga continua ativo. Sua sede social fica localizada por entre a parte ainda fabril do bairro, com os fundos dando para o Rio Tamanduateí. Tem seu futebolzinho de base, seu basquete, sua bocha, suas piscinas e seus bailes, aqueles onde eu desfilava meus passos mecânicos, mas não tem mais seu time profissional. Eu tenho uma camisa geral do time, que é usada para outras atividades, mas que tem a elegância de manter o mesmo design do passado. Vejam que legal ela é aí em cima.

Isso tudo me faz pensar o quanto são transitórias as nossas decisões. Assim como um dia o Ypiranga sonhou ser o melhor time de futebol do Brasil, todos nós fazemos as melhores projeções futuras. Algumas vezes, chegamos até a colocar alguns projetos em andamento, mas é como diz a letra da famosa música em epígrafe, tantas vezes vilipendiada por copiadores que querem aproveitar de sua bonita melodia: tudo é pó no vento.

Eu e você e todo mundo, caro leitor, sonhamos sermos alguma coisa, termos alguma coisa, fazermos alguma coisa que foi engolida pelas circunstâncias da vida que levamos. Eu tenho pelo menos três, dentre outras miudezas. Já estou até excetuando o mundo fantástico das crianças - penso em projetos mais maduros, sustentados com alguma base mais concreta. Primeiro, quis ser músico, e fui montando bandas até concluir que não iria para lugar nenhum e escolher seguir na vida vibrante dos escritórios de contabilidade. Depois, quis me formar em uma disciplina fora das minhas atividades, e abri o bico quando percebi que faria melhor estudando para minhas habilidades já obtidas. Por fim, quis ter um canal de filosofia, mas um simples vídeo de trabalho para a faculdade me fez cair na realidade. Hoje em dia, eu ainda tenho a expectativa de gravar minhas músicas como atividade pós-aposentadoria, o que seria algo que daria uma razão para a minha vida, mas tenho severas dúvidas se vou conseguir fazê-lo. Isso porque eu ainda terei que estar sem artroses, com memória em dia e com alguma verba para comprar equipamentos que me faltam.

O projeto é simples e ambicioso. As letras estão em um caderno guardado no armário. As melodias, ainda as recordo bem. Consigo tocar os três instrumentos necessários, embora precise de um contrabaixo minimamente razoável, que dá para pagar em parcelas. Os microfones eu tenho, mas seria bom comprar algo mais apropriado para um estúdio (o famoso quartinho de despensa). Tudo bem, parcelas. Preciso também de um programa para edição, o que redunda em mais parcelas, e toda a paciência para gravar e regravar cada detalhe: notas fora, garranchos musicais, esganiçamentos de uma garganta que já não chega mais naquela altura de outrora. Basta uma covidzinha mal curada para jogar tudo isso na gaveta das desistências.

Nossas vidas têm esse grau de incerteza que são mais simples do que interrupções violentas ou contornadas por dramas. Não é preciso ter grandes histórias para contar para ter viradas irreversíveis na vida. São aqueles momentos em que recebemos sinais de que não nos adaptamos ao mundo que nos cerca, e isso acontece sem a impressão de cataclismas, apenas com conclusões de que os coaches que nos dizem que você pode tudo o que você quer estão mentindo, só isso. Isso tudo é muito distante do que as grandes tragédias que fundeiam as epopeias contadas pelos dramaturgos. Eles fazem isso justamente para dar um colorido que, no final das contas, a vida não tem. Ninguém morre quando um clube deixa de jogar futebol profissional. E, se morre, nada mais é do que a vida, que é assim mesmo: sempre se conclui.

Parece um pouco dramático demais, ou de menos. Demais porque nossas vidas nem sempre são fadadas ao fracasso, mas é como eu sempre digo: um terremoto sempre tem fim, o que não tem fim é a existência de terremotos. Quando olhamos para o conjunto da obra, podemos dizer que estamos realizados nisso ou aquilo, mas ao olhar para trás sempre se verá um longo rosário de abandonos. E é de menos porque é algo quotidiano, muito mais comum do que fazem pensar as grandes tragédias da literatura. Afinal, se não perseguíssemos sonhos, provavelmente viveríamos no mais chatíssimo dos pragmatismos. Sendo assim, é a vida como ela é.

Aristóteles falava de uma dynamis que traduzia a transição entre potência e ato, ou seja, entre a possibilidade de acontecer e o acontecimento em si. É uma espécie de força inerente que faz com que o universo se mova, e foi traduzida por inúmeros pensadores como um elemento que justificaria nossas ações e, por extensão, nossos destinos. O conatus de Spinoza, a vontade de Schopenhauer, a vontade de potência de Nietzsche, as pulsões de Freud, o élan vital de Bergson e outros são todos eles desenvolvimentos das explosões de forças criadoras, mas tanto ela arrefece, quanto refreia. O impulso que impele é o mesmo que puxa as rédeas? Talvez não, mas seu esvaziamento é real. Se o esforço humano é dedicado a perseverar na existência, quanto ele não arrefece quando se é defrontado com a sua impossibilidade?

Mas isso não significa que o abandono dos sonhos é o fim da vida. Para além do discurso autoajuda de balelas como “melhor idade”, é fato que o que resta de potência pode ser canalizado para coisas possíveis. Há muito tempo, falei sobre a tristeza das perdas, e como elas mexem com nossas mentes. Nem sempre a perda é uma desgraça (aliás, a maioria das vezes não é), e sempre temos como buscar por alternativas.

E por que isso? Se nos prendermos estritamente às expectativas que cercam nossas vidas, sempre daremos de cara para o muro. Nem se trata dos sonhos infantis de ser o jogador de futebol mais famoso do mundo, mas de quebrar o pé na véspera do jogo, por exemplo. A vida não permite planejamento, por mais que os coaches nos digam o contrário. Certo, certo… é preciso ter um mínimo de cabeça para nos prevenir de percalços. É a velha cautela e e a velha canja de galinha que não fazem mal a ninguém. Mas não adianta querer projetar cem por cento do seu dia, em cem por cento dos seus dias. Isso não existe e é só mais um motivador de ansiedade, um dos males nada raros deste mundo moderno.

Em resumo, o que eu quero dizer é que não há nada de errado quando as coisas não dão certo. Não quero me apoiar no lenitivo estoico de que as coisas são assim mesmo e não devemos sofrer com isso, mas o fato é que, ainda que não nos fiquemos nisso, precisamos saber que os caminhos não são únicos, assim como não são dicotômicos. Se não há alegria, não há tristeza obrigatória. Se não há calma, nem sempre se precisa de pressa. O Ypiranga um belo dia concluiu que não dava mais para perseguir seu objetivo futebolístico. Hoje é mais conhecido pelo seu baile? Sim, e qual o problema nisso? As vocações mudam, a vida se transforma, o destino só existe quando chegamos nele, e é isso que a vida é. Queimar muito a mufla com isso é só uma maneira de tornar a coisa mais dolorosa. Somos quem podemos ser, já dizia a letra de outra música.

Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

É um livro com uma visão muito pessoal, de um fã da agremiação que teve a vida toda vinculada a ela, mas traz vários dados históricos que são interessantes, e que fazem entender como essa instituição tão antiga ainda sobrevive no mundo moderno.

MURAHOVSCHI, Jacob. Clube Atlético Ypiranga. 110 Anos de História. São Paulo: Casa do Novo Autor, 2017.

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