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domingo, 31 de dezembro de 2023

Três anos de nulla dies sine linea. Bom ou ruim?

(Um ano é uma coisa... três anos são outra, totalmente diferente)

Olá!

Neste último dia do ano da graça de 2023, além das habituais revisões de ações e omissões, tenho uma efeméride de pequena monta para o universo, mas que faz todo o sentido para este espaço cada vez menos frequentado: há três anos que adotei a disciplina do nulla dies sine linea, ou seja, todo santo dia ou dia santo escrever alguma coisinha que fosse, para dar andamento neste meu humilde trabalho. Não deixei de falar sobre o fenômeno por ocasião do seu primeiro aniversário, como pode ser lido aqui. Uma nova análise parece ser necessária, decorrido o tempo e das coisas que não são mais como eram.


Isso porque acontece que três anos são três anos, mudam-se histórias inteiras da humanidade nesse espaço de tempo e eu segui por estes 1095 dias com fidelidade canina, mantendo a imaculada conceição de linhas, parágrafos e páginas preenchidas, sem perder um dia sequer, fossem dias de alvíssaras ou de alquebramento, de nascimento ou de velório, de alfa ou de ômega, porque tudo inspira, tudo motiva, para o bem ou para o mal. E a camada subterrânea que sustenta isso é composta por uma dúvida cruel: é bom ou ruim?

Se eu estou levantando o questionamento, é sinal de que existe algum tipo de controvérsia nele. Como em tudo na vida, há mais de um lado. O bom, eu já disse naquele texto de dois anos atrás: um regramento sempre induz uma produtividade mais alta e dá um sentido de responsabilidade na execução da tarefa. Credo! Está parecendo aqueles consultores de empreendimentos, e esse já me coloca do lado ruim, onde tudo fica forçado, longe da espontaneidade que sempre gostei de pôr nos meus textos. Nunca caí na armadilha do truque sujo de escrever somente por escrever, como se fosse uma superstição, aquela coisa de desvirar o chinelo para a mãe não morrer, mas houve longos trechos que eu precisei reescrever inteiros, dada a ojeriza que me causava sua leitura posterior, seja pela escrita açodada, seja pela precariedade das ideias ainda mal nascidas. Será que não acaba sendo o próprio paradoxo do método que me impus?

Voltando para o lado positivo, nunca é ruim fazer uma revisão. Isso porque deixamos escapar ideias mal expressas e erros de português mesmo. Claro que não sou um conservador castiço, daqueles que invalidam todo um conjunto filosófico em nome de uma vírgula mal colocada, mas é sempre bom lembrar que um texto é composto não só das linhas das quais é escrito. Muito do que está nele vem de uma conjunção de inspiração e conhecimento. Isso acontece, vejam vocês, até com o mais técnico dos textos, justamente porque é preciso saber transmitir ideias e conhecimentos, e nisso consiste a arte do texto bem escrito.

Só que a coisa vai de mal a pior. Com a modéstia escondida no baú, não falo de mim mesmo, mas do mundo que me cerca. Vejo os cursos que o pessoal de capacitação do meu serviço acham importantes, e os conteúdos ficam entre o risível e o soporífero. Mas há outras pessoas que enfrentam alguma dificuldade naquela coisa de coesão, coerência, concisão e congêneres. É muito raro encontrar alguém que efetivamente saiba o que está escrevendo, e os tempos de escrita e abreviaturas zapzapeanas agravam a dificuldade linguística. Um texto começa sua beleza por um ponto muito mais simples do que estilo, criatividade ou rebuscamento. Começa pela sua correção. E isso tem se perdido cada vez mais.

É bem verdade que perpassa em mim momentos de arrogância, que são finalizados por insights dolorosos, que me põe para baixo em alguns momentos, numa longa cadeia de causas e consequências que por vezes me desarmam, e só uma disciplina quase religiosa me repõe no caminho.

Vou dar uma amostra. Quando eu ainda escrevia letras de músicas, lá pelo início da década de 90, criei o seguinte verso…

“É espremer o sumo 'inda antes dos sarmentos”

… com o delambido apóstrofo e tudo. A música se chamava “Levógiro”, que, em atomística, significa o elétron que gira no sentido da esquerda, o lado errado, o anti-horário, que é imprescindível na relação das forças, mas justamente por fazer força ao contrário. Aí um belo dia veio a centelha: quem sabe que porra é um sarmento? Quem saberá o que é levógiro e, mesmo sabendo, quem conseguirá estabelecer a relação entre o giro para esquerda e a vida torta, principalmente porque o título não é mencionado nenhuma vez na música? Para quem eu quero falar além de mim mesmo?

Compus pouquíssima coisa depois disso, pouca mesmo, mais para finalizar alguns textos que eu tinha começado do que para trazer poesia a novas ideias. Teve seu lado bom, porque minha cabeça migrou para a filosofia, mas o reconhecimento da inutilidade de suas obras é sempre doloroso, e a coisa foi ficando tão para escanteio que, de repente, não me vi mais escrevendo nada, para que ninguém pudesse entender. Escrever letras de música sertaneja eu deixo para os especialistas na área.

Parte dessa conclusão, entretanto, não vem de uma assunção de meu pernosticismo, mas do duplo fator desconhecimento-preguiça que eu sei existir nesse nosso Brasil varonil, Terra Papagalia que judia de seus filhos lhes negando o alimento intelectual. É muito comum por estas plagas que a dificuldade de um texto já seja motivo para que se desista dele de bate-pronto, o que é péssimo, tanto para compreender quanto para se fazer compreender.

Emerge que alguma coisa seja feita. Não se trata de mero purismo, mas conseguir uma comunicação a mais próxima possível da realidade que se busca espelhar começa por um domínio mínimo do código. E isso tem se demonstrado difícil de conseguir. Vou dar um exemplo bem próximo a mim.

Trabalho com especificação de requisitos. Isso significa que eu vou pegar informações com o cliente para descrever o que um módulo de informática qualquer deve fazer. Eu trabalho com a fase mais macro, mais grossa, gerando documentos que o cliente possa entender, e repasso esses artefatos para que um analista os refine e transforme em uma linguagem mais técnica, para que os desenvolvedores possam realizar seu trabalho. Trocando em miúdos, eu trabalho mais do lado do cliente, enquanto o analista trabalha mais do lado dos desenvolvedores. Minha linguagem está mais para a regra de negócio; a do analista, para a regra de sistema.

Acontece que, ainda que o conhecimento técnico do analista não esteja sendo colocado em questão, o fato é que por vezes parece que o gajo esqueceu que ele precisa escrever em português. Não se trata de pugnar por questões de estilo, mas de algo mais básico: a inteligibilidade dos textos. Um texto que não pode ser bem compreendido não cumpre sua função, e sempre gera entendimentos dúbios, o que pode ser fatal na área de sistemas. Depõe contra o próprio analista, já que o cliente sempre poderá afirmar que não era aquilo o que queria, e um texto cheio de ambiguidades abre margem para essa escapadela marota. Portanto, embora gerundismos e repetições de palavras possam geram textos feios, porém inteligíveis, não são ainda o que há de pior. O problema está na ambiguidade que se obtém a partir da escrita deficitária, e, num campo onde sempre estamos inferiorizados (quem trabalha em informática sabe do que estou falando), damos ao verdugo a peia que será aplicada em nossas costas.

Na equipe com a qual trabalho, temos doze analistas de requisitos. São todos bons na área, bons mesmo, mas poucos se salvam no aspecto que mencionei acima (já peço desculpas a algum deles que vier a ler este texto, mas eles sabem o quanto eu sou chato). Eles alegam que precisam lidar com muitos textos em inglês, o que é verdade, mas é a base sólida na língua mãe que te dá a salvaguarda. Quando eu faço as revisões, vira um festival de rabiscos vermelhos, como se fosse a correção de uma prova colegial. Às vezes, o nível de incompreensão é tal que preciso chamar o analista para entender o que ele quis dizer. Em geral, a ideia central está certa, mas tão mal redigida que perde todo seu sentido. E isso me enche de desgosto.

Dei uma recomendação ao chefe geral: faça uma estante com livros de autores clássicos, do tipo Machado de Assis, Aluísio de Azevedo e outros, e disponibilize para os analistas. Quem for "pego" lendo um desses livros, não terá nenhum tipo de desconto, porque seu valor será considerado o mesmo de um curso técnico. Parece jocoso, mas não é. É uma maneira de induzir algo que já deveria ter sido feito no processo educacional. Aprender a escrever bem passa pela etapa de aprender a selecionar as leituras. Não se pode esperar conseguir de um livro de piadas aquilo que está disponível em um clássico da literatura. É só isso.

Eu procuro, sinceramente, exercitar o melhor português possível nas minhas escritas. Ele não é perfeito, porque, justamente por ser rica, é uma língua complexa, cheia das mumunhas e macetes. Em média, meus leitores conhecidos dizem que escrevo bem, que me faço claro e não cometo grandes bobagens ortográficas e gramaticais. Certo: há muita escrita que eu coloco no coloquial, para dar algum tempero de conversa, mas a grande chave está na capacidade de se fazer compreender. Se eu te falo e você me entende, está cumprida a tarefa. É disso que eu estou falando.

À parte disso, e voltando ao assunto principal, a eficácia do método se mostrou declinante no transcurso do triênio. O mundo perfeito seria amplificar o grito de guerra para nulla dies sine eidos, em flagrante maçaroca que mistura latim e grego, mas para sintetizar a ideia de que não basta a linha, que, por si só, pode ser mera perfumaria, mas um desenvolvimento mais inteiro, mais coerente, que expresse uma ideia mínima. Só que, se no primeiro ano eu bati recordes de produtividade, a partir do segundo eu voltei à mesmíssima vaca fria de sempre, inclusive com muito declínio nos últimos tempos. Este ano, por exemplo, tive um belo de um vazio nos últimos meses, que deram uma triste machucada nas estatísticas. É que a gente é vítima das circunstâncias, inevitavelmente. Tem horas em que os miolos viram tripas, e não é muita coisa boa que se consegue pensar nesses termos. Enquanto eu comecei o processo durante a pandemia, e havia de fato algum tempinho sobrando, a vida que se aproxima da normalidade nos afasta desse mesmo tempinho. A pandemia, se é que podemos chamar de lado positivo, trouxe uma chance de nos tornarmos mais organizados, na melhor acepção dessa palavra. Uma vez absorvidos os benefícios de achar espaços e horários, poderíamos levar para todo o restante da existência uma organização, com margem, é bem verdade, mas com uma espécie de guia.

Mas, que nada. A partir do momento em que você se encontra de novo com a vida, ela volta a te dominar, empurrando velhos hábitos goela abaixo, e tudo volta como antes, com suas novas programações virando um tempo bonito na memória, no más. É bem certo que nossa inércia ajuda a atrapalhar, e pouco lutamos para não se deixar levar pelo arrastão, mas isso é um bom tanto pelo cansaço. Eu já estou meio de saco cheio da vida, admito. Há momentos que o nulla dies sine linea vira nulla dies sine cruce, lema de uma ordem cristã que propugna que carregar cruzes diariamente é a essência de sua fé. Eu vejo o lado espinhoso da frase, e em nada isso me agrada.

Só que continuo gostando de escrever, e isso, por enquanto, não vou deixar para trás. Tenho prazer legítimo em retomar antigos textos, verificar quais estão devidamente expressos, quais necessitariam de melhorias, e até de quais eu me arrependo, porque sempre há tempo (enquanto há vida) de revisá-los, de acrescentar coisas, de atualizá-los para o momento atual. Essa é a magia do formato blog: te dar uma precisão cronológica. É possível ter um espelho do seu pensamento no decorrer do tempo, e isso é muito bom. 

A questão agora é se, afinal, vou abandonar a estratégia do nulla dies sine linea ou se pretendo mantê-la. Isso vou decidir amanhã, dependendo até mesmo do meu estado etílico. Bons ventos a todos e um bom ano novo!

Recomendação de leitura:

O termo nulla dies sine linea foi criado por Plínio, o Velho, conforme contei há três anos. Entretanto, seu registro na pedra só veio na Idade Média, pelas mãos do sacerdote e literato Polidoro Virgílio. Segue indicação do livro em que o faz, em espanhol.

VIRGÍLIO, Polidoro. Libro de Proverbios. Madri: Akal, 2007.

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