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quarta-feira, 20 de dezembro de 2023

De volta às águas e trilhos que ficaram para trás – 2º lugar: Soledade de Minas e a questão do momento em que as saudades deixam de ser positivas

(O que é a saudade senão a presentificação eterna do passado. Isso é um problema?)

Que é, pois, o tempo? Quem poderia explicá-lo de maneira breve e fácil? Quem pode concebê-lo, mesmo no pensamento, com bastante clareza para exprimir a ideia com palavras? E, no entanto, haverá noção mais familiar e mais conhecida usada em nossas conversações? Quando falamos dele, certamente compreendemos o que dizemos; o mesmo acontece quando ouvimos alguém falar do tempo. Que é, pois, o tempo? Se ninguém me pergunta, eu sei; mas se quiser explicar a quem indaga, já não sei.

Santo Agostinho


Olá!

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Quando estive no Circuito das Águas pela primeira vez, eu vi que existia um trem maria-fumaça que cortava um trechinho, já não mais comercialmente, é óbvio, mas como atração turística. Ele saía de São Lourenço, mas, como precisava comprar a passagem antecipadamente, fiquei a ver navios… ops, trens. O passeio chegava até Soledade de Minas, mas não cheguei a ir até lá. Chegou a hora.


Soledade de Minas é daquelas cidades bem pequenininhas, cujo estereótipo diz ser daquelas que pararam no tempo. Ser o ponto final do passeio do Trem das Águas se explica pela sua velha estação de trem, ainda bem preservada, com as peculiaridades de época que a tornam interessante.

Nos dias em que há viagens, que traz para cá pelo menos umas 100 pessoas por vez, há uma grande quantidade de boxes onde são vendidos artesanatos vários. Nos outros dias, tudo fica fechado, à espera do tempo passar.


Ao lado da estação, há uma cascata artificial que promete refrescar os dias mais quentes, e que se tornou uma espécie de ponto de encontro da cidade. Neste lugar, funcionava a caixa d’água da estação ferroviária, que foi deslocada para seu local original.

O afluxo de turistas para cá se justifica pelo material ferroviário cá existente, que explica uma boa parte de como funcionavam os transportes anteriores à segunda metade do século XX, como o ladeamento do leito dos rios…

… e os equipamentos predominantemente fabricados em madeira, ao contrário do que acontece com os aços e plásticos usados hoje em dia. Nos dias de movimentação, ainda há um museu ferroviário que contém peças e artigos ligados à atividade.

Quem é insistente ainda consegue vaguear pela cidade e encontrar as casas dos artesãos, onde se pode aprender alguma coisa sobre as técnicas e criatividade na confecção das peças.

O pessoal te trata como gente da família, convidando para um café e uma cachacinha, tão típicas desta região.


Este lugarejo tinha um nome curioso, que derivava daquela propensão natural que tínhamos para nomear os locais por onde passamos com narrativas de suas histórias: Ponte dos Teixeiras. Isso aconteceu porque foram dois irmãos com esse sobrenome que se dispuseram a construir uma ponte sobre o Rio Verde, para ligar as duas vertentes do vale, e o povoado que se aglomerou ao redor acabou ganhando esse topônimo até que viesse a transformação em distrito.

O nome definitivo é derivado da Fazenda Soledade, que abarcava a maior parte de seu território, e cujo dono mandou erigir uma capela em homenagem à santa que dava o nome à propriedade, Nossa Senhora da Soledade. A capela cresceu e virou a igreja que podemos ver logo abaixo. Como vocês bem sabem, eu costumo visitar e fotografar todas essas igrejas do interior, porque é muito frequente que registrem boa parte da história de suas localidades, mas, no caso, o portão fechado impediu até mesmo uma foto melhor.

Aqui encontro uma confluência de intuições. Do nome da cidade, extraio a representação da mistura de saudades com a solidão. Segundo os católicos, a morte de Jesus traz esses sentimentos confusos que uma mãe sente ao ver seu filho na morte, sozinha e imediatamente saudosa. Por outro lado, a temática da linha de ferro e da locomotiva a vapor traz as reminiscências dos mais antigos e a curiosidade dos mais jovens. De uma cidade que tem a saudade até no nome, vem a mim a seguinte reflexão: o que é essa tal de saudade? Por que temos apego ao passado?

A coisa inicial a se pensar é que a saudade é indissociável do tempo, porque não há saudade sem distância temporal, como é óbvio. Então nós vamos mais uma vez tentar compreender a concepção de tempo de Santo Agostinho para fazer o nosso exercício. Já falei dela mais de uma vez, mas é tão genial que não posso deixar de mencioná-la a algum novo leitor que vier passear por este espaço.

Agostinho de Hipona, filósofo norte-africano que viveu nos primórdios da sistematização do cristianismo, imaginava o tempo não como uma mera sucessão de momentos, como um longo rosário em que futuro se torna presente e que se esvai em passado, tipo uma linha de produção, mas como uma grande folha elástica, onde todo o tempo está presente de uma só vez. Isso significa que passado, presente e futuro não são meros sucedâneos, mas que estão todos juntos na grande camada dos acontecimentos chamada tempo, e o que temos de verdade são três presentes: o passado é presente através da memória e o futuro é presente pela via da expectativa. Como funciona isso?

Aprendemos que existem três tempos: o passado, para as coisas que já aconteceram; o presente, para retratar o momento atual, e o futuro, o universo das coisas que ainda virão. Quando pensamos objetivamente, percebemos que apenas um desses tempos de fato existe: o presente, aquele minúsculo momento em que a realidade se desdobra. Passado e futuro não possuem materialidade, não é possível exercer sobre eles nenhuma ação, porque não estão disponíveis para nossa intervenção.

Ou seja, o passado não existe mais, e o futuro não existe ainda. O tempo no mundo fora de nós é o primado do instante. Mas nós podemos pensar no passado e no futuro, e eles existem em nossa mente. E é nesse campo psicológico que Santo Agostinho distingue um local onde passado e futuro convivem com o presente: o tempo do mundo não é o mesmo que o tempo da alma. 

Efetivamente, o tempo passa para nós e passa para a pedra, mas a pedra não tem essa percepção, mesmo que os ventos ou o rolar pelo morro a desmanche. Para nós, o passado existe pelas lembranças que temos, de bons e maus momentos, de aprendizados que obtivemos, da nostalgia e das reminiscências. O passado existe pela memória. Já o futuro existe pelos nossos planos, pela nossa consciência de dever fazer, pela espera de bons ou maus acontecimentos. O futuro existe pela expectativa.

Mas, segundo Agostinho, passado e futuro só existem quando são presentificados. E como isso acontece? A cada vez que temos uma recordação, a nossa consciência busca um fato já existente no tempo, que está na memória e o resgata para o momento atual, ou seja, o presente. Idem com a expectativa futura: vislumbramos uma possibilidade ou um plano qualquer é trazemos ele à nossa consciência, tornando-o presente. No plano da alma (aka psique), está tudo posto e presente.

Mas se tudo é presente, por que temos a sensação de que o tempo flui? Como podemos explicar a sensação de que as coisas perduram, mas que não são eternas? O tempo não pode ser confundido com a eternidade. A questão de termos todo o tempo posto não significa que ele aconteça simultaneamente, do contrário seria eternidade, que, na perspectiva agostiniana, é o exato oposto do tempo. O presente é quase um não-ser de Heráclito, já que está em uma constante transformação e, além disso, pode ser reduzido a uma porção infinitesimal. O tempo pode ser dividido entre passado, futuro e presente justamente pela ação da extensão da consciência, que busca coisas no passado e no futuro. É com esse trânsito entre os presentes da alma que o tempo dura.

É aqui que vamos fazer a confluência com a saudade. A saudade sempre se calca em uma presentificação de um fato passado específico, que resulta da extensão da consciência ao passado que é trazida ao presente, e que um dia teve uma representação que proporcionou algum tipo de prazer. A saudade não é mera lembrança - é lembrança boa, senão não seria saudade.

Ter saudade tem um fundo de tristeza, porque ela sempre representa ausência e perda. Ocorre que por vezes ela se torna insuportavelmente grande quando uma pessoa passa a substituir expectativas por memórias, o que costuma se agravar com o transcorrer da idade. Isso é evidente em si mesmo: por mais que sejamos otimistas e vejamos o mundo pelo prisma da satisfação com a obra concluída, o fato é que a vida está no fim, e o passado grita, enquanto o futuro silencia. O problema é quando as saudades viram apego pelo passado. Tudo o que a pessoa faz acaba apontando para trás, como se nada do presente valesse a pena, e nada do futuro trouxesse esperança. Dá para explicar? Freud explica.

Nós tendemos a ter uma memória distorcida de nossos fatos passados, especialmente quando somos crianças. Isso se aplica a tudo - fatos, fenômenos, pessoas, objetos. Vamos de exemplo. Quando eu era pequeno, volta e meia ia a Poá, pequena cidade da metrópole que, àquela época, era famosa pela sua água mineral e suas chácaras. Eu tinha parentes lá, daqueles que a gente visita só de vez em quando - tio Manuel, primo Adriano, prima Leonice e assim vai. O caminho para lá era ladeando a ferrovia, que pegávamos a partir da Penha de França. Em uma dessas vezes, a mais antiga que eu me lembro, havia uma sinaleira da via férrea que me impressionou. Era idêntica a um semáforo de cruzamento, só que imenso. Era facilmente explicável, já que o maquinista precisava enxergar a sinalização a uma distância considerável. Isso me levou a representar os desenhos livres da escola com ferrovias de semáforos imensos, uma coisa até recorrente, prova de que fiquei impressionado. Já da última vez que vi a tal sinaleira, dei-me conta de que, se de fato era maior que uma convencional, não fazia tanta impressão assim, a ponto de se tornar um motivador de criatividade. Confesso que fiquei um pouco decepcionado, mas isso demonstra que nossa memória infantil distorce para maior as coisas.

Freud não deixou passar batido esse tipo de sentimento. Ele disse que era bastante comum acharmos nossos pais mais perfeitos do que eram de fato. O pai parecia mais forte; a mãe, mais bela. Essa sensação se constrói em cima do que ele chamava de princípio do prazer. Isso funciona sob a égide da necessidade que o equipamento psíquico de uma pessoa tem em procurar a maior quantidade de prazer possível, ainda que isso represente distorções da realidade.

Pensem bem em quantas vezes filtramos o passado, de modo a fazê-lo parecer muito melhor do que efetivamente foi. Temos a tendência a esquecer eventos negativos (desde que não sejam traumáticos) e a sobrevalorizar eventos positivos justamente porque nosso cérebro se acomoda melhor a uma memória forjada do que a uma realidade mais dolorosa, desinteressante ou vergonhosa.

Isso acontece porque o princípio do prazer tende a se opor ao princípio da realidade. O primeiro é composto pelas pulsões instintivas, que buscam satisfazer necessidades individuais, aquela coisa do “eu quero, e quero mais”. A principal expressão dessas necessidades instintivas está justamente no prazer, que é uma satisfação turbinada: além de ser necessário, é bom. É um extravasamento de energias internas que, no entender de Freud, são mais bem sintetizadas na sexualidade, embora outros defensores da psicanálise não o entendam limitado a isso. O princípio do prazer é isso - a irrefreável e imediata necessidade de satisfação.

Só que há limites impostos pela realidade externa. Esses podem ser físicos e morais, dependendo de quem impõe o limite, a natureza ou a sociedade. Há um princípio limitante dentro do próprio inconsciente, que é o instinto de sobrevivência. Se ele não existisse, é provável que a humanidade não sobrevivesse, porque iria arriscar tudo para se ver propiciada mais e mais prazer. Também não existiriam comunidades, dado o extremo egoísmo do princípio do prazer, que impediria relacionamentos solidários. Dessa forma, é o confronto entre os princípios do prazer e da realidade que permite a vida existir. Mas ele existe, e provoca pressão. Evidentemente, existe um certo desconforto nesse confronto, mas há parâmetros onde ele é considerado normal e saudável. mas há momentos em que há problemas.

O princípio do prazer faz remissões excessivas ao passado quando o indivíduo tem dificuldades em abandonar momentos que são considerados mais prazerosos do que os atuais. É como se o passado elástico de Santo Agostinho fosse presentificado a todo momento, em uma sequência interminável de reiterações da memória, substituindo a vivência do presente e as expectativas do futuro, e as saudades se tornam mais importantes e significativas do que as novas experiências, como se fosse impossível o presente e o futuro trazerem prazer a este contribuinte. O grande problema é que, aqui também, o princípio da realidade age, o que causa grande angústia para quem vive essa situação.

A guerra entre id e superego (vide) sempre coloca o ego em xeque, de modo a fazer nossa parte consciente não compreender, muitas vezes, porque sofre. Há dois problemas essenciais: o passado sobrevalorizado não permite que o indivíduo se conforte no presente, e, confrontado com a realidade, ele perde. Quando vamos a um restaurante que há tempos gostávamos, ficamos decepcionados, e achamos que sua qualidade caiu. Nem sempre isso é verdade. Pode-se simplesmente ter-se mantido o mesmíssimo padrão de qualidade, mas minha memória desenhava experiências muito mais prazenteiras do que são de fato. O objeto perdido não é mais o mesmo, mas ele é desejado, e isso coloca-nos na posição de quem se prende excessivamente às próprias saudades.

Soledade de Minas é isso e não é isso. É possível que o dono original da fazenda que lhe deu gênese quisesse se referir unicamente à santa, mas também poderia estar pleno de apego ao passado, ou apenas gostasse muito de sua terra há algum tempo, e a quisesse homenagear por isso. Nada mais. Bons ventos a todos!

Recomendações de leitura:

Já havia recomendado o capolavoro de Santo Agostinho neste post, e o farei novamente. Só que eu achei uma edição online, o que pode facilitar a vida de todo mundo. Segue a citação.

AGOSTINHO, Santo. Confissões. Disponível em

< https://img.cancaonova.com/noticias/pdf/277537_SantoAgostinho-Confissoes.pdf>. Acesso em 16.12.2023.

 

Com relação ao princípio do prazer freudiano, uma boa referência é o livro abaixo:

FREUD, Sigmund. Romances familiares. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

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