(Um ano inteiro sem deixar um único dia sem escrita. É bom? Não sei. Parece que sim)
Olá!
Nenhum dia sem traçar ao menos uma linha. Esse é o significado
aproximado do título deste texto, escrito em latim, e, antes de qualquer outra
coisa, foi uma filosofia de trabalho que adotei para o ano que ora finda.
Quando este insólito período começou, ainda que sob as restrições da pandemia
(ou até mesmo por elas), fiz a mim mesmo uma daquelas promessas de ano novo que
só se fazem ubriachi. Resolvi, ainda
após da soneca da tarde, e antes de ir à casa do deprimido
sogrão, que eu, por todos os dias do ano, preencheria algum tempo com a
redação de textos para este blog, ainda que fosse um mero paragrafozinho.
Deu certo. Parecia um objetivo para se esquecer em três
dias, mas consegui chegar aos 365. Este foi o ano em que mais publiquei
postagens, e olha que a média de laudas foi bastante alta, fazendo-me
descumprir outra promessa – a de ser menos prolixo. Consegui manter uma média
de quatro textos por mês, o que representa, em um ano comercial, uma postagem
por semana. Nada mal.
É bem verdade que eu, já quase um senhorzinho, não conjumino
rapidamente as possibilidades da tecnologia, e demorou para sacar que podia
digitar meus rascunhos diretamente no celular, o que me poupou muito tempo e me
deu a flexibilidade de não precisar de um caderno. Tira muito do romantismo, é
verdade. Quando eu sentava na cadeira do parque da Água Branca, as pessoas
olhavam com um misto de estranheza e admiração, a ponto de alguns perguntarem o
que eu fazia todos os sábados de manhã naquele artefato. Isso foi bom para
angariar leitores, porque eu aproveitava para propagandear a existência deste
humilde espaço, contando vantagens e ocultando pontos fracos, como sói se
fazer. Hoje, com um celular na mão, as mesmas pessoas pensariam se tratar de um
tiozão do Whatsapp espalhando fake news
pelo ciberespaço, embora eu esteja fazendo a mesmíssima coisa que fazia no meu
velho alfarrábio universitário. Como o prejulgamento funciona de um jeito
esquisito, não?
Mas vou confessar que é uma técnica muito trabalhosa. É um
compromisso simples de cumprir quando as ideias povoam a cabeça e quando há tempo
disponível. Há momentos em que você se sente travado, sem nenhuma criatividade
ou com carência de informações básicas para dar um mínimo de qualidade à sua
escrita. Nesses dias, procurei me ater mais às introduções e à contação de
histórias, apenas para não deixar os posts parados. Nos dias de escassez
temporal é que a coisa realmente entornava. São aqueles dias em que alguma
coisa faz engripar o fluxo dos acontecimentos, e o que você imaginava ser o
momento em que desenvolveria suas escritas simplesmente é comido pelos
desaventos. Eu, por exemplo, tenho um ótimo momento diário para escrever alguma
coisa, que é após o final do meu expediente. Todos os dias faço backup de uns banquinhos de dados bem
primitivos, mas que, como ainda são funcionais, precisam ser mantidos com
alguma segurança. O processo de cópia demora ao sabor da velocidade da rede,
mas, em média, leva coisa de 45 minutos a uma hora. Quando algo dava errado,
entretanto, esse tempo simplesmente se perdia. Se eu tivesse que voltar de São
Paulo a Taubaté, por exemplo, lá se ia meu tempinho. Nesses dias, a solução
para manter a promessa era o exíguo tempo de se esquentar uma água para o
sagrado café noturno ou o momento escatológico diário.
Ainda tem mais um fator: por mais que haja abundância de
assuntos a serem tratados, tem sempre um momento disposicional que te aproxima
de zero vontade. Por mais que você goste de bilhar, há um dia em que você
simplesmente não quer jogar bilhar, pelas mais diferentes razões: uma dorzinha
de estômago, a falta de um bom adversário, puro tédio pela repetição infinda,
sei lá. Por que seria diferente com as palavras? Tem aqueles dias em que você
quer ver sua caneta bem longe, e quem não fez um estranho comprometimento como
o meu, simplesmente não faz nada. Mas aí vem a tese geral da academia (a de
ginástica) - o primeiro dia que você não vai é antecedido pelo último dia que
você vai. Estando as coisas nesse ponto, fiz minhas forcinhas, peguei meu taco
a contragosto e fui jogar meu bilhar filosófico, mesmo que fosse uma fichinha
só. Nulla dies sine linea.
Esta frase é da lavra de Plínio, o Velho, assim conhecido
para diferenciá-lo de seu também célebre sobrinho: Plínio, o Moço, ou o Jovem.
Foi um escritor romano do primeiro século da era comum (o popular depois de
Cristo), que se dedicou a fazer anotações em todas as viagens que fazia, e que
não foram poucas, dada sua condição de nobre e procurador romano em vários
pontos do mundo. Somente uma obra chegou até os nossos tempos, mas trata-se da
mais antiga tentativa de se escrever uma enciclopédia, que tem o nome de
História Natural. Como se tratava de um escritor que falava sobre coisas do
mundo, é natural que apreciasse pintores que seguissem uma linha mimética,
traduzindo a realidade para o mais próximo possível do que ela é, ideal para
ilustrar seus livros. Reconhecia em Apeles, pintor da cidade de Cós, um exemplo
ideal de reprodução da natureza. É a ele que Plínio recomenda sua fórmula de
produtividade, para que não deixe um dia sequer de produzir uma parte de sua
obra, nem que fosse uma modestíssima linhazinha da espessura de um fio de
cabelo. Como se pode ver, a coisa pode ser transposta para qualquer outro
ofício, como a redação de um blog; este aqui, no caso.
É uma máxima para a perseverança, não há dúvida disso. É
aquele misto que temos entre uma insistência prudente e uma aporrinhação para
si mesmo, como se nossa desistência representasse um imenso fracasso. Nem tanto
a deus, nem tanto ao diabo. Se eu furasse um ou dois dias, a diferença seria
imperceptível. Aliás, eu não me lembro de ter esquecido nenhum dia, mas pode
até ser que tenha acontecido, vai saber, já que não fiquei anotando no calendário.
Em resumo, pouco mudaria a cotação do dólar. Mas há sempre uma predisposição
psicológica em achar que a perda da batalha é a perda da guerra, e como o projeto
em questão não representa ferimentos, nem prejuízos financeiros,
automaticamente o botãozinho do foda-se restaria apertado. Por outro lado, foi
uma prova de capacidade, sem precisar recorrer àqueles inúteis discursos
motivacionais do estilo “você quer, você faz”. Nada disso, isso é papo de autoajuda
que não ajuda, a não ser a tirar a dimensão da sua realidade. O fato é que você
pode muito menos do que você quer, e esse tipo de fraseologia só se aplica a
costados de computador, que ficarão lá colados até serem jogados fora. Há mais
sabedoria em apara-barros de caminhões. Mas sim, uma certa disciplina é
necessária na vida, senão simplesmente não saímos do lugar. E, embora eu
devesse mapear melhor o cronograma do dia-a-dia, como o limite ficou baixo,
tornou-se factível.
Talvez devêssemos levar esse tipo de lógica para toda a
vida, mas se eu disser isso, estarei estabelecendo as mesmas regras que eu
tanto odeio. É parecido com os setores de planejamento das empresas: temos um
plano de metas que deverá ser seguido à risca. E se algo der errado? Temos um
plano de contingências. E se o que der errado for a ordem de um majorengo? Pois
é, lá vão suas metas por água abaixo, virando mera poesia de má qualidade. Cada
empresa é como cada pessoa. As técnicas de gestão vão para o vinagre assim que
damos de frente com o imponderável. Isso inclui mandachuvas e algumas cepas de
vírus.
(Uma confissão que quebrará um pouco da linearidade deste
texto. Sou um cara da velha guarda, que não tem facilidade em acreditar que
técnicas de gestão que te tomam mais tempo do que o objeto do seu trabalho
sejam de fato eficazes. Pode ser apenas uma questão de mau humor, mas sempre
vejo planejadores como pessoas que vivem nas nuvens, com um linguajar muito
peculiar e que tem que refazer tantas vezes seus gráficos e cronogramas que o
que parecia ter uma forma de pirâmide termina com o pouco lisonjeiro aspecto de
um casebre. Mas, repito, isso tudo é devido à experiência pessoal de quem
assiste as maravilhas de uma palestra sobre a implantação de uma nova linha de
atendimento da companhia de saneamento, com suas gestões de risco e prazos de
entrega, para no fim ter que comparecer presencialmente para fazer uma mera
transferência de titularidade. Desculpem os profissionais sérios da área, mas
ainda não os conheci).
É por isso que é sempre bom ter uma noção de limite próxima
da realidade. Eu poderia me empolgar com o resultado e aumentar a meta,
transformando a frase em nulla dies sine
pagina, o que certamente seria impossível de realizar. E o que aconteceria?
A partir do primeiro dia em que eu não escrevesse uma página completa, ficaria
frustrado, porém me libertaria da obrigação. Percebem como há dois lados na
questão? Só que o resultado para o blog seria ruim. É isso que eu quero dizer.
No fim, é difícil discernir se, por trás disso tudo, temos
uma questão de validade ou de vaidade. Afinal de contas, se eu resolvi incluir
o presente texto, e por mais que eu carregue dúvidas sobre se valeu a pena ou
não, o fato é que há uma ponta nem tão pequena de orgulho ao conseguir cumprir
a meta. Tive um rudimento de planejamento que funcionou, contradizendo um monte
de coisa que eu disse até agora, e que eu poderia simplesmente me calar, mas
resolvi arrotá-lo aos quatro ventos, na véspera do manjar branco. Percebem como
há um paradoxo, uma ambivalência, uma contradição, um antagonismo, uma
ambiguidade, um contrassenso, uma dicotomia, uma incongruência, uma oposição,
uma via de mão dupla, uma anfibologia? Isso tudo só faz chegar a uma síntese:
sou humano, que carrega
as coisas de valores e, no final das contas, gosta que esses valores sejam
achados bons, valiosos e conformes por seus pares. No caso, leitores.
Por tudo isso, quero colocar a coisa toda no nível da
experiência. Foi bom, funcionou como esperado e pode ser que eu a repita em
2022. Pode ser. Mas quero a deixar registrada como caso de sucesso, e não como
obrigação a ser seguida peremptoriamente. É chato demais e não melhora o nível
daquilo que escrevo. A não ser que eu esteja realmente inspirado. Bons ventos a
todos neste ano que entra! Tá na hora deles chegarem.
Recomendação de leitura:
Já que o mencionei, vai aí a indicação da obra que chegou
até nós:
PLINIO (o Velho). História
Natural. E-book. São Paulo: Kindle, 2019.
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