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quinta-feira, 31 de março de 2022

Imprinting, a tatuagem mental que nos modela o comportamento

(Existem padrões mentais que podem ser comparados a tatuagens? Existem, e nós os chamamos de imprinting)

Olá!

E a patroa criou coragem, fazendo a tatuagem que tanto queria. Ela vinha namorando as agulhadas já há um bom tempo, mas a coisa parecia que não ia desatar nunca. Para incentivá-la, arranquei um escorpião do bolso e a presenteei, no seu aniversário do ano passado. Após pesquisa e fila, fomos parar em um estúdio de Taubaté, pequeno e bem organizado. Um pouco de incômodo no começo, para duas horas depois ter as duas flores lilases pareadas, uma mais para o ombro, outra mais para as costas.


Nossa juventude foi em um tempo em que tatuagens eram MUITO mal vistas, basicamente feitas por surfistas ou bandidos, o que, na época, nem eram considerados tão distantes assim. Explico. Surfistas eram caras que, no estereótipo, não se davam a estudo e trabalho, além de gostarem de "consumos alternativos" (vejam os materiais do grupo Sobrinhos do Ataíde, impagáveis, especialmente no personagem Peterson Foca). Como resultado da baixa dedicação laboral, eram considerados párias sociais como os fora-da-lei. Estúdios de tatuagem como vemos hoje, cheios de cervejas e ares condicionados, basicamente não existiam, e a arte era exercida em valhacoutos realmente medonhos. Mas os desenhos eram muito diferentes dos de hoje, mais rústicos e com aquela coloração esverdeada típica. Agora, as peles parecem telas de pintura.

Eu, já nos meus quinze anos, era louco para fazer uma tatuagem. Mas acontece que, salvo raríssimas e honorabilíssimas exceções, empresas simplesmente não contratavam tatuados, pelos motivos já expostos acima. Duas eram as alternativas, então: fazer uma tatuagem escondida (e não a revelar) ou trabalhar por conta. Como a primeira não faz sentido e a segunda era bem difícil para quem vem do proletariado, o jeito foi por a viola no saco e deixar o projeto tatuagem para quando ela fosse mais aceita socialmente.

E esse tempo chegou, não é incrível? O medo da patroa não era com a dor das agulhadas. Isso ela cansou de tirar de letra, com aplicações de enzima no couro cabeludo e de glicose nas capilares das pernas, em episódio que já contei aqui. A questão maior era mesmo de aceitação social, porque ela própria tinha essa visão ruim que acabei de mencionar, e só um longo período fez com que sua ideia primeiramente mudasse, para depois ter vontade de ter uma tatuagem e, por fim, resolvesse encarar as reações de terceiros.


Claro que uma tatuagem exige alguma certeza, porque, ao contrário do que acontecia com aquelas de chiclete, a de agulha não sai. Ela tatuou uma flor de maracujá, que tem toda uma história na vida dela. É algo que filosofei para ela: tatuagens de moda logo perdem o sentido, e é uma nota pretíssima para remover, nem sempre com bons resultados. Por isso, entendo que é preciso que haja significado na vida da pessoa, mesmo que a forma fique datada, porque o conteúdo sempre trará alguma recordação, alguma essência, alguma história. E será mais difícil bater um arrependimento.

Agora, pensando de forma um pouco mais abstrata, tento raciocinar se há alguma forma de tatuagem mental. Afinal de contas, toda forma de disposição social (incluindo preconceitos) é deveras arraigada, e só um tempo muito longo e uma oposição muito insistente pode fazer com que seja passado um laser nos consensos deliberados. O pensamento pode ser tão marcado quanto as agulhadas de uma tatuagem. Mais até, porque as tatuagens não são transmitidas entre as gerações. Os juízos preconcebidos, esses sim.

Mas não é exatamente isso que eu quero dizer. Eu lembro que nas aulas de Psicologia da Educação, especialmente nos capítulos de mecanismos da cognição, falava-se de fenômenos mentais em que se dava uma gravação permanente de conteúdos no cérebro, desde a mais tenra infância. É óbvio que é possível pensar no medo irracional que temos de insetos do tipo barata, ou de ratos, ou de lagartixas. Esse tipo de coisa é incutido em nossas mentes por nossas mães (e pais) e lá ficam gravados pelo resto da vida, mesmo que tomemos plena consciência de que o risco até ocorre na forma de doenças, mas não é nisso que pensamos quando encaramos a cascuda. Temos um medo na sua forma pura, um medo tão desvinculado da realidade que chega a perder o próprio objeto. Por que, hein?

Bom… embora o medo não seja como o conteúdo de um livro, é algo que se aprende. E é muito útil na nossa vida. Nascemos com certos medos porque eles nos ajudam a sobreviver. Só que, se eles precisam ser aprendidos, é preciso que este processo seja rápido. Uma criança normalmente não distingue muito bem o que pode ser perigoso para ela, e coloca toda sorte de porcaria na boca, por onde ela faz alguns reconhecimentos, mas também quebra a cara. Quando ele pega uma barata e vai levá-la à boca, sua mãe (se não chegar a desmaiar) terá uma reação contundente, que vai assustar o bebê e ensiná-lo, independente da forma, de que há algo errado nesse seu ato ou no objeto a que se dedica. Para todo o sempre, esse “modelo” de reação persistirá.

Poderíamos pensar, sendo assim, que o processo de aprendizado mais primitivo vem dessa reação a reações, mas há coisas que são ainda mais instintivas do que esse modelo de interação. Não dizemos que os filhos reconhecem suas mães só de olhar? Parece poético, mas tem sua dose de realidade.

Como compreender esse processo? Se você for daqueles criacionistas arraigados, terá que olhar apenas para a espécie abençoada e será um pouco mais difícil de entender esse fenômeno. No entanto, se você achar a evolução convincente, poderá olhar para outras espécies e tirar algumas informações a partir do comportamento delas. E é o que o zoólogo e psicólogo Konrad Lorenz fez.

Este austríaco criou uma variação da Biologia chamada de etologia, partindo do princípio que seria necessário estudar os padrões de comportamentos para explicar como se dá a cognição de certas ações. Ele observou em aves que certos comportamentos absorvidos ainda nos primeiros momentos de vida são gravados de tal forma na mente dos filhotes que são carregados pelo resto de suas vidas. Parece existir algum espaço mental que precisa ser preenchido de imediato, tão logo vejam a luz. Logo que eclodem de seus ovos, os patinhos procuram qualquer coisa maior do que eles e que se mova por perto. Na imensa maioria das vezes, essa coisa será sua mãe, e o código instintivo diz que é seguro estar próximo a ela. Com isso, a lacuna estará preenchida e eles viverão da melhor forma possível. Todavia, é plenamente possível acontecer um erro nesse processo, porque o código mental dos patinhos diz assim: "siga a primeira coisa que você ver se movimentando". Essa coisa pode não ser sua mãe, mas outra ave, uma pessoa, ou até mesmo um objeto experimental inanimado, como testou Lorenz. Os bichinhos que usou em experiências andavam atrás dele como se fosse sua mãe, com aquele gingado típico dos patos. E ele deu a esse fenômeno o nome de imprinting, ou estampagem, em português. É uma alegoria para o processo de “carimbo” que um papel recebe para não mais ser apagado, ao menos sem deixar uma série de esfolamentos (o que não deixa de ser um testemunho de que por ali passou uma impressão permanente).

O imprinting seria, então, um fenômeno adquirido instintivamente, que será carregado pelo restante da vida do indivíduo. Quem cria canários está acostumado com o imprinting sem nem mesmo se dar conta do termo técnico. O que faz com que os filhotes comecem a cantar é a imitação dos pais, já que as mães somente e ocasionalmente piam. Se um canarinho não for exposto a cantos, ele não aprenderá a cantar, ficando limitado a piados parecidos com os das meninas. Mais ainda: embora haja um espectro razoável de melodias, somente àquelas que o filhote for exposto farão parte de seu repertório. Os criadores têm um truque para fazer com que isso aconteça, que é colocar um “esquentador” para puxar o canto dos meninos, outro canário que já tem as faculdades de canto desenvolvidas. Ou seja, se quisermos que o novo cantor tenha um repertório mais amplo, deveremos colocá-lo, desde bem jovem, a várias fontes canoras. É um fenômeno que eu presenciei em casa. Eu tinha um canário salsa reprodutor que teve seus filhos de primeira ninhada, e repassou a eles seu canto campainha, aquele de vibratos muito rápidos, como se fosse um guitarrista de heavy metal. Ganhei um belguinha amarelinho, amarelinho, que tinha um canto muito mais modulado, com uma gradação bem mais suave, à moda dos músicos de jazz. A segunda leva de canarinhos sabia misturar muito bem os trinados ligeiros do pai com a costura melódica do “tio”. Ou seja, tendo dois canários adultos cantando, não adianta fazer guerra: um não aprende com o outro. Entretanto, os filhotes, independentemente da filiação, aprendem cantos mistos. Passada uma determinada idade, o canto não muda mais, e essa padronagem permanecerá pelo restante de sua vida artística. Não é um belo exemplo de imprinting? 

Percebam, portanto, meus queridos, que o imprinting tem uma importante porção instintiva, mas que não pode prescindir do ambiente. Ou seja, imprinting e instinto são coisas distintas. A parte do instinto está na predisposição a preencher uma informação necessária aos elos mentais de uma criatura, mas que não tem como existir sem a parte ambiental, de onde vem a informação que o instinto tanto espera. O organismo do ser espera que a modelagem seja mantida por toda a existência do indivíduo e, de certa forma, é isso mesmo o que acontece. É óbvio que alguns comportamentos são sazonais, e, com isso, abandonados após algum tempo utilitário. O patinho não perseguirá a falsa mãe para sempre, mas certamente influenciará na maneira como ele atuará como adulto, apresentando-se como mãe (se for fêmea).

O ser humano entra na mesma lógica, ainda que sua capacidade de raciocínio permita com que certas estampagens possam ser remodeladas. O instinto também em nós existe, bastando pensar na defesa inútil que faríamos com as mãos se percebêssemos um piano caindo sobre nossa cabeça. Também em nós o instinto é uma reação imediata a uma situação que exige resposta rápida. E também em nós essa é uma janela para a gravação de impressões. Mas não é só. Temos cunhagens sempre que nos é apresentado conteúdo novo e desconhecido. A lacuna que se abre para o imprinting é exatamente esse vazio em que se faz necessário um preenchimento. O primeiro conteúdo que lá entrar ficará fixado, mesmo que venha a ser reelaborado futuramente.

Um dos comportamentos mais fáceis de se observar de estampagem no ser humano vem do exemplinho da boca que mencionei logo agora. Essa tendência a levar tudo para a boca vem pelo imprinting causado pelo ato de mamar. Um recém-nascido, quando vai mamar pela primeira vez, não sabe que seu sofrimento pode ser amenizado pela ingestão de alimento. Quem sabe disso é sua mãe, e a chave do instinto somente entra no ato da sucção. Isso grava no bebê um fato novo: colocar um seio na boca causa a satisfação do arrefecimento de um incômodo; no caso, a fome. E tudo vai para a boca após isso como consequência do imprinting.

Isso perdura pela vida inteira. Pense em qualquer coisa que lhe foi provada errada. Vou dar um exemplo meu. Sempre achei que uma boa dose de maizena ajudava a dar cabo dos desarranjos intestinais tão frequentes anos atrás. Provado e mais provado que isso não funciona, ainda hoje quando tenho espasmos fico tentado a tomar uma boa dose da adstringente solução, mesmo sabendo que nada faz a não ser dar uma bombardeada na quantidade de amido. Está lá gravado na minha cabeça, e a simples menção de um desconforto faz um restore dele para minha memória de trabalho. É inevitável.

Isso tudo está no substrato da espécie. Eu fiz aquela infame comparação entre um ser pronto e acabado e a aceitação à ideia de evolução porque não há como compreender estes fenômenos fora dos mecanismos evolutivos, a não ser que sejamos irrealisticamente concessivos com um pensamento sobrenatural. Já havia notado Lorenz que as homologias são indisputáveis, tanto no plano físico, como já observava desde Darwin, quanto no equipamento psíquico, que é tão hereditário quanto uma pinta ou um cabelo avermelhado. Se temos alguns comportamentos que se assemelham aos de macacos, de mamíferos ou de vertebrados, é porque lá atrás, há milhares e milhares de anos, tivemos ancestrais comuns. E nesses ancestrais já existiam mecanismos cognitivos que se baseavam no imprinting.

Essa é a nossa tatuagem mental. O imprinting é uma peça vital nos nossos processos de aprendizagem, porque uma cognição bem feita tende a se alastrar pelo tempo, e é muito mais difícil de ser rearranjada quando absorvida impropriamente. É algo que nossas escolas deveriam levar em conta na exposição de seus conteúdos, porque tudo o que vem depois não será tão simples de demover. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Bom livro para compreender as ideias de Lorenz e saber mais sobre etologia:

LORENZ, Konrad. Os Fundamentos da Etologia. São Paulo: UNESP, 1995.

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