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segunda-feira, 3 de fevereiro de 2020

Navegações de cabotagem – o Memorial Aeroespacial Brasileiro de São José dos Campos e a Ciência mitigando o medo de voar

Olá!


Vocês têm medo de voar? Apesar de não ser dos maiores fãs das altitudes, creio que não sentirei mais do que uma leve contração em certo esfíncter quando o fizer. Já aí eu confessei que nunca viajei de avião. É que, na época de filho de operário com costureira, não havia a menor perspectiva de voar, que era algo muito caro. O jeito era chacoalhar no ônibus, com uma bela lata de frango com farofa, como tão bem fazia minha avó para ir ao Paraná conosco, em busca de rever o nonno Giulio. Era uma anuidade que durava coisa de nove ou dez horas, mas que custava um décimo ou menos que uma passagem aérea. Dessa forma, viajavam dez pessoas ao custo de uma, e aviões, só aqueles de papel, que infernizavam vidas de professores.

Mesmo com algum encanto pela aviação, arrefecido pelos motivos dados acima, eu continuei a não ter muitos motivos para voar, mas acontece que meu filho mais velho foi para Cascavel, longe quase 1000 quilômetros de Sampa. De carro, dá cerca de doze horas de viagem; no bumba, são quinze horas de sacolejo. Nestes tempos modernos, se você comprar na hora certa, a passagem de avião custa praticamente o mesmo do suplício rodoviário, quando não menos, com a vantagem inenarrável de demorar hora e meia, se muito. Estando as coisas nesse ponto, devo pegar o beco cascavelense até abril ou maio, para ter boas histórias para contar. Enquanto a oportunidade não chega, aproveito a prova da filha mais nova em São José dos Campos para me sentir um pouco mais próximo das incríveis máquinas voadoras, e vou ao Memorial Aeroespacial Brasileiro (doravante MAB) conhecer um pouco da história da aeronáutica tupiniquim.



O MAB é uma iniciativa da Força Aérea Brasileira no melhor local possível para tanto. Fica localizado em um espaço vizinho à Embraer e ao Aeroporto de São José dos Campos, é bem próximo ao ITA, e é composto por um pátio externo e um edifício em forma de hangar (não sei se o era de fato ou se a motivação é estética).



O Memorial está sob os cuidados do Centro Técnico Aeroespacial, a divisão de tecnologia de ponta da Aeronáutica, cuja principal tarefa é o desenvolvimento de pesquisas e ensino voltado para a engenharia aeroespacial, um dos poucos institutos de excelência do qual nós, íncolas vera-cruzenses, podemos nos orgulhar (do quê especificamente é algo a se discutir futuramente).



O giro começa com os elementos da área externa. Nós do Brasil estamos tão acostumados a nos considerar de segunda divisão que nem percebemos direito quando estamos na linha de vanguarda em alguma área (até bem pouco tempo, a diplomacia era uma delas). A quantidade de aviões expostos comprova como a indústria aérea é significativa, especialmente em aviões para fins bélicos, como é o caso do Super Tucano.



Outros artefatos que estão expostos são as sondas, espécie de foguete destinado a levar instrumentos de medição e experimentos para o espaço sub-orbital. No exemplo, temos uma sonda Modelo III, que possui dois estágios, um deles destinado principalmente à carga de combustível, e o outro aos equipamentos.



A grande vedete é uma réplica em tamanho real de um VLS – Veículo Lançador de Satélites, cujo propósito está caracterizado no próprio nome. Mas a serventia se explica pelo fato de que o satélite, sozinho, não possui capacidade de se colocar em órbita, o que é preciso fazer através de um foguete. Os quatro elementos que rodeiam o módulo principal servem praticamente só para carga de combustível.



Já do lado de dentro do hangar temos uma divisão em ambientes, embora não haja uma compartimentalização. O ambiente Defesa é composto pela produção bélica, que contém essencialmente armamentos de alto poder destrutivo, como é o caso das bombas, que são arremessadas do ar para a terra...



... e dos mísseis, que partem de um avião para ter como alvo outra nave em movimento.



O ambiente Espacial exibe objetos cuja destinação é tornar possível a navegação aeroespacial, além de instrumentação que permite a realização de pesquisas e navegabilidade. Assim como do lado de fora, há uma boa coleção de sondas, todas aqui de menor porte.



Outros elementos são as cargas úteis recuperadas. As primeiras sondas geravam um prejuízo recorrente: os instrumentos contidos nelas eram destruídos junto com as mesmas, seja na incineração atmosférica, seja na colisão do regresso. Com a evolução da tecnologia, parte dos equipamentos poderiam ser reaproveitados, ainda que parcialmente.



O que entendemos por motor em um foguete é algo totalmente distinto do que temos em um carro ou em uma lava-roupas. O combustível é sólido e os propulsores controlam a saída do produto da queima em alta velocidade, utilizando velhas leis da Física tão questionadas hoje em dia.



Outra seção do MAB é o ambiente Ensino, que traz alguns itens educacionais relacionados à área de atuação do CTA. Uma das curiosidades são partes e peças do primeiro computador fabricado no Brasil, o Zezinho, de 1961. Já era uma máquina transistorizada, da geração seguinte às vetustas máquinas valvuladas da década de 50.



Mais um item é a réplica do Sputnik, primeiro objeto colocado em órbita por mãos humanas, e foi fornecida pelo governo russo. A engenhoca soviética era uma simples bola com antenas, destinada a lançar bipes captáveis da superfície da terra. Esse singelo propósito serviu para confirmar que era possível trocar comunicação e comandos remotamente através das diferentes camadas da atmosfera, além de, evidentemente, confirmar a possibilidade de se manter um artefato em órbita terrestre artificialmente.



Vem depois o ambiente Pesquisa, onde podemos presenciar a atuação do CTA em outras áreas não relacionadas diretamente ao seu escopo de trabalho, mas com igual importância. Algumas ficaram no campo mais acadêmico, sem ganhar o mundo, como o Poubel, carro de fibra de juta cujo objetivo era diminuir o consumo de combustível pela otimização do peso do veículo. Feioso de fato.



Outros, no entanto, estão em nossas ruas a todo vapor. Este Dodge Polara 1800, cujo motor foi desenvolvido nestas paragens em 1976, foi o primeiro automóvel com motor a álcool, ainda que a Fiat tenha sido a iniciadora do processo de produção em escala.



E há ainda os projetos que aos poucos vão se tornando mais próximos de se realizar. Em um convênio com estudantes australianos, seis engenheiros do ITA produziram um protótipo de carro solar denominado SunBA, para o evento World Solar Challenge de 1996. Não está nas ruas, mas é tecnologia cada vez mais próxima de se levar a sério.



Como a região é próxima de área de Mata Atlântica razoavelmente preservada, um magnífico teiú estava por lá para fazer sua visita. Lamento muito ter perturbado seu sossego.



Finalizando o galpão principal, o ambiente Aeronáutico diz respeito à atividade mais evidente e é a cereja do bolo da visitação. Basta que se veja o esplêndido protótipo do avião Bandeirante, primeira aeronave desenvolvida e projetada no Brasil.



Outro exemplo interessante de inovação é o convertiplano, protótipo de avião que seria capaz de decolar na vertical, como se fosse um helicóptero, e voar na horizontal em alta velocidade, como qualquer avião normal, mitigando problemas de decolagem em áreas curtas.



No mais, peças técnicas importantes para o desenvolvimento de novos equipamentos e tecnologias, como um modelo para ensaios em túnel de vento. Um equipamento desses é importante para prever em escala menor o comportamento de peças e componentes em pleno uso.



Há também uma reprodução do Muniz M7, um avião de dois lugares que foi o primeiro modelo fabricado em série no Patropi, pela Fábrica Brasileira de Aviões em 1936. Embora não seja um produto associado ao CTA, é importante pelo seu significado histórico.



O criador da bagaça toda é o Coronel Casemiro Montenegro Filho, que idealizou e fundou tanto o CTA quanto o ITA, e, para homenageá-lo, há um auditório e uma sala que contém uma série de objetos que lhe fazem remissão e prestam reverência, como o título de Cavalière concedido pelo rei da Itália.



Neste mesmo lugar há toda uma série de objetos pessoais que contam sua história, como o espadim que recebeu como cadete da Escola de Aeronáutica.



Santos Dumont não poderia ser deixado de fora. Apesar das controvérsias com relação à invenção do avião, o fato é que, ao contrário dos irmãos Wright, que buscavam desesperadamente por uma patente, Dumont tinha mais interesse em criar conceitos que favorecessem o desenvolvimento humano.



O início de sua carreira de inventor e aeronauta se deu com o desenvolvimento de aerostatos, como é o caso do balão Brazil.



O painel que alude aos 130 anos do seu nascimento (o que ocorreu em 2003) relembra o voo inicial do célebre 14 Bis. Santos Dumont costumava numerar seus projetos sequencialmente, e o nome do projeto ficou assim por conta do aperfeiçoamento do projeto nº 14, que não teve mudanças substanciais, apenas ajustes de construção, retirando o balão que ajudava a lhe sustentar.



Ele tentou produzir vários aperfeiçoamentos em seus projetos, de modo a desenvolver ideias que os foram aproximando cada vez mais da estrutura que conhecemos hoje, como é o caso do projeto nº 19, o Demoiselle.



Só para fechar, nos fundos do hangar tem um espaço para relaxar contemplando uma lagoa e tomando um solzinho na nuca...



... bem como um monumento que homenageia os 21 técnicos mortos no acidente do lançamento do VLS de 2003, na chamada Operação São Luiz, ocorrida na base de Alcântara, no Maranhão.



Um momento de reflexão nos bancos ao lado do lago, embaixo de um solzinho reconfortante para disfarçar as artrites. Ainda que meu encanto com o mundo aeronáutico não seja comovente, é algo que não deixa de impressionar a quem para e pensa por algum tempo. Em pouco mais de 100 anos desde o voo pioneiro do avião de pano e bambu, a humanidade evolui sua tecnologia para coisas inimagináveis. Algumas bastante lamentáveis, como os mísseis intercontinentais e bombas de poder destrutivo incalculável, mas, como um todo, chegamos a coisas cuja complexidade é difícil de concertar em nossas confusas cabeças. Penso nos aviões que cruzam continentes em poucas horas, nos jatos que singram os céus a mais de 1000 km/h, nos milhares de satélites colocados na órbita da Terra que se comunicam como se fossem vizinhas faladeiras, nas estações espaciais onde se conduzem os experimentos mais delicados, nos inefáveis telescópios espaciais, que estenderam nossa visão aos confins do universo. Penso no que é a ideia do radiotelescópio, que não capta luz, mas ondas de rádio que são emitidas pelos diferentes astros. Penso nas sondas interplanetárias, como a Cassini e a Galileo, ou no robozinho Sojourner, que foram colocar nossos olhos mais próximos de nossos vizinhos de sistema solar. Penso em quanto o homem foi capaz de chegar a conhecimentos surreais, e me lamento em verificar as perigosas sendas em que viemos nos metendo nos últimos tempos.

Eu vejo como tem gente que se preocupa com a divulgação científica, para tapar o buraco que ficou no distanciamento entre a comunidade acadêmica e a população em geral, e entendo ainda mais o que deve ser seu desapontamento. É um marretar quase contínuo contra a desinformação que grassa com o advento da internet, contraditoriamente. Relembrando da questão do medo dos aviões, tanta gente era impossibilitada de comprar uma passagem aérea que o que mais ficava evidente era justamente o medo de acidentes. As uvas estando verdes, era mais comum se apegar no medo do improvável, o que também é um desconhecimento.

É que um acidente aéreo assusta. Quando observamos uma colisão na estrada, por mais que tenhamos à nossa frente um amontoado de ferro retorcido, há sempre a expectativa de que as vítimas não tenham se tornado carne moída, ainda que assustador seja o painel. Já com uma aeronave, a tendência é de uma completa desgraça, com todas as vidas perdidas, dada a altitude e a velocidade que estão envolvidas em uma operação completa. E aí não adiantam estatísticas – se eu estiver no único voo acidentado do ano, estou fodido e ponto final.

Esse tipo de apreensão intuitiva é uma das grandes atrapalhações que temos em nossas vidas e na Ciência como um todo. Para que possamos evitar uma ameaça, por vezes é menos eficiente afastarmo-nos do que a conhecer melhor, e é exatamente esse o trabalho feito pelo especialista em aviação Lito Sousa, muito conhecido pelo seu canal no YouTube. Segundo o que ele diz, há tanto aprendizado com os erros que resultaram em acidentes que somente circunstâncias muito especiais podem levá-los a ocorrer nos dias de hoje. O diabo é que temos uma tal de heurística (vide este texto) que carrega nossa cabeça para o lado oposto à racionalidade. Pensem simplesmente no seguinte: São Paulo ou Rio de Janeiro são cidades violentas, como bem se sabe. A sensação que temos é a de que é impossível caminhar por essas cidades e não ser assaltado ou vítima de uma bala perdida. Não quero aqui, de maneira nenhuma, diminuir a questão da segurança pública, e a quase totalidade da população é atingida por uma ou outra forma de violência, mas falando estatisticamente, é pouco provável que sejamos assaltados. Contem quantas vezes isso aconteceu no último ano. Uma vez? Duas? Então houve 363 dias em que nada de ruim aconteceu*. É possível um roubo, mas não é provável, é uma situação de exceção. Mas o fato é que nossa cabeça funciona assim, e só conseguimos pegar mais confiança na medida em que somos deparados com muito ensinamento que apele para aquela sementinha de racionalidade que reside em nossas pobres mentes humanas, e é por isso que o canal Aviões e Músicas é importante: dados reais, pensados, sopesados e referenciados. Tudo isso faz com que o público em geral, reconhecendo a seriedade da proposta, sinta um pouco mais de coragem a enfrentar seus medos. A Ciência tem uma “certidão” de confiabilidade junto às pessoas, haja vista a tentativa desesperada de certas atividades parecerem científicas. Isso quântico, aquilo quântico, comprovado aqui, comprovado acolá, são tantos empréstimos que só sustentam a tese de que o jamegão acadêmico é consensualmente mais fiável que qualquer outro endosso (até mesmo religioso).

O trabalho de Lito Sousa é essencialmente científico, mesmo que tecnicamente ele não carregue um título direto, e por isso imagino o misto de desprezo e desespero que lhe deve causar investidas de pessoas como os terraplanistas. É que o trabalho da Ciência com “C” maiúsculo não é lá muito bem compreendido, como já falei aqui e ali, um pouco por culpa da própria academia, como falei aqui e ali também. Mas não é só uma questão de atendimento de critérios estabelecidos pelo consenso, mas pela estranha disposição de que um conhecimento, por mais bem estruturado e consolidado que esteja, nunca é definitivo. Nenhum cientista sério, por exemplo, diz que a Terra é chata, mas, caso surjam evidências reais, palpáveis, experienciáveis e reprodutíveis de que isso seja um fato, então nada restará à academia senão botar a viola no saco e adotar o novo modelo.

Percebam que há uma certa autofagia nesse modus operandi. Se a Ciência reconhece que todo conhecimento é transitório, por qual motivos sua própria metodologia não deverá ser, ela mesma, objeto de contestação e, eventualmente, transformação? Notem que a metodologia atual, ela própria, não nasceu já pronta. Antes do falsificacionismo atual, o principal critério era a verificabilidade. Antes ainda era a indução e, no nascedouro, a dedução. E hoje, mesmo com toda a pujança do método, há ainda importantes contestadores dos princípios de Karl Popper, como a Teoria dos Paradigmas de Thomas Kuhn ou a Anarquia Epistemológica de Paul Feyerabend, que carregaram consigo contestações muito importantes ao método.

Quando eu completei este texto, vi que ele tinha mais de doze laudas. Isso é gigante em termos de internet e não é meu propósito espantar ninguém com esses meus volumes imensos. Vou parar por aqui e dar continuidade no próximo post, algo que não faço a tempos.

Recomendações:

Serão três, todas voltadas para o mesmo autor. O primeiro é um livro que narra as desventuras do Lito Sousa na África. É imperdível.

SOUSA, Lito. Onde morrem os aviões. A experiência de vivenciar os limites de um avião. Lito Sousa. São Paulo: Edição do autor, 2018.

Depois, recomendarei o seu site Aviões e Músicas, que comenta inúmeros temas ligados à aviação, além de elaborar mixtapes com uma série de músicas de escolha do autor.

Por fim, seu produto mais visível. Um canal no YouTube de enorme sucesso para quem trata de assunto tão sério, já com mais de um milhão de escritos.

Ah, sim. Visitem o MAB, levem suas crianças, aproveitem o espaço livre para fazer um piquenique, o espaço é muito agradável e bem construído.

Volto já, já com o complemento deste texto.

* Insisto. Não entendam minha colocação como uma “passagem de pano” para a questão da violência urbana, que é muito séria e complexa. Só estou observando a questão meramente estatística, e somente para formar um exemplo. Ser menos provável que sejamos vítimas de violência não significa que as coisas estejam boas ou que não precisemos tomar cuidados cada vez maiores.

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