(A ideia de divisão entre corpo e alma é velhíssima, mas como ambos podem se articular, se possuem naturezas tão distintas?)
Olá!
Sempre temos um lugar onde nós gostamos de ir mais que em
outros. Eu gosto muito do Vale do Paraíba, seja na parte da Mantiqueira,
seja na banda da Serra
do Mar. A coisa aumentou depois que a filha mais nova se mudou para
Taubaté, no coração do Vale. Passo muitos dias fazendo pequenos reparos em sua
casa, bem velhinha, e do jeito que eu gosto – bom mooquense. Mas a área do Vale
é muito extensa e com muita coisa a se fazer, de modo que fica mais difícil
estabelecer qual de todos é o local mais frequentado. Mas eu tenho esse lugar.
Concluí que todas as vezes que pego a Oswaldo Cruz, não é numa cachoeira, num
rio, numa represa, numa montanha, num mirante, numa igreja, numa trilha ou numa
casa antiga que eu passo obrigatoriamente, mas em uma mercearia, uma vendinha
de beira de estrada, que tem o nome oficial de Santa Terezinha, mas que já está
consagrada em meu meio como Barraca da Fátima, que mencionei inclusive em uma
das listas de 10 do meu post
de comemoração de 10 anos. É sobre este lugar que eu quero falar e
filosofar hoje.
Por sua característica endêmica, é um dos produtos mais consumidos
pelos turistas, que dificilmente conseguem encontrar o produto fresco para
consumo imediato em outros lugares, principalmente na forma de refresco ou de
batida.
... e como as culturas plantadas, que lhe servem de
fornecedoras das matérias primas para o comércio, como este pé de amendoim que
fica quase que como um monumento.
... ou esta planta que não sei o nome (descobri – chama-se “aranto”), mas que é repleta de brotos que parecem enxertos.
A Fátima é uma pessoa muito religiosa. Começando pelo nome de sua vendinha, dedicado à santa padroeira dos jardineiros e precursora do “Pequeno Caminho”, um meio de vida que privilegia a simplicidade para se chegar à santidade, em detrimento das histórias heroicas dos grandes santos e mártires. Tem seus nichos com seus santos de devoção, como Santo Expedito e São Miguel Arcanjo, além da própria Santa Terezinha, e é de participar das festas do Divino, hábito típico desta região. Está sempre dando graças e agradecendo por tudo, inclusive coisas extremamente prosaicas, como as nossas visitas. Pôs a difícil gravidez de sua filha sob a proteção de Nossa Senhora, e fica emocionada todas as vezes que fala disso.
Pode parecer um pouco estranho que alguém atribua a uma
divindade tudo aquilo que lhe acontece de bom, porque dá um ar de
subvalorização dos próprios méritos, mas essa é uma correlação que nem sempre é
verdadeira. Talvez seja possível entender que a pessoa não se põe, ela mesma,
em um pedestal, e reconhece suas próprias falhas e limitações. Por esse motivo,
compreendo sua posição. A questão Deus é muito importante na vida das pessoas e
já conduziu o pensamento da humanidade por muito tempo, e o faz ainda, em certa
medida. Entretanto, existiu um momento na história da Filosofia em que houve
uma transição da divindade como explicação de tudo para uma causação mais
voltada à razão como fenômeno mental independente. Como todo bom e velho
período transitivo, havia quem aderisse aos novos ventos e quem resistisse a
eles, e havia ainda quem buscasse conciliar tradição e novidade. O francês
Nicolas Malebranche é um desses, e vamos falar rapidamente sobre ele.
Na verdade, Malebranche foi o primeiro autor de quem fiz um
trabalho mais sério na faculdade. O mestre de História da Filosofia Moderna
pediu que escolhêssemos um filósofo do Racionalismo e o situássemos dentro do
movimento. Eu, querendo parecer diferentão, fugi dos óbvios Descartes,
Espinoza
e Leibniz
e fui me socorrer do padre que buscava uma alternativa às coisas que, em sua
concepção, estavam mal explicadas nas teses gerais do movimento.
Malebranche era um grande admirador de Descartes. O sistema
dualista cartesiano, em rápida sinopse, consistia no seguinte: a principal
característica de um ser humano é sua substância mental. É por ela que nasce a
prova mais substancial de existência, seu famoso cogito: eu penso, eu existo, porque mesmo que puser minha própria
existência em dúvida, haverá aquele que duvida – ao menos o pensamento existe. É
uma das mais célebres intuições filosóficas, e mesmo que o erro dos sentidos já
preconizados desde os filósofos pré-socráticos fosse um fato, poderia haver uma
escapatória consistente para a prevalência da razão. Só que é inegável que, por
mais que a atividade racional seja possível e conduza ao conhecimento quando
banhada pela evidência, as contingências do corpo efetivamente levam às
incertezas. Vistas embaçam, ouvidos ensurdecem, narinas entopem. Por esta
razão, Descartes separava de maneira bastante distinta estas duas instâncias do
sujeito: a res cogitans, composta por
todo o equipamento psíquico-cognitivo, e a res
extensa, a coisa concreta que gira em torno do sujeito pensante, formada
pelo seu próprio corpo, que é a sede dos sentidos. Dessa forma, a res cogitans
interage com o cosmos ao seu redor através de sua própria porção de res
extensa.
Mas havia uma dúvida que surgia já no nascedouro da noção de
dualismo cartesiano. Se a res cogitans (mente) e a res extensa (corpo) são
completamente distintos entre si, como se dava a interação entre ambos? Afinal
de contas, a mente necessita da via de entrada dos sentidos para absorver
informações do mundo, e o corpo precisa receber de alguma forma orientações
sobre para onde dirigir sua intencionalidade, ou seja, para saber para onde
olhar. Descartes dá uma solução surpreendentemente pobrezinha (nada é
perfeito). Para ele, essa articulação se dava por ação da glândula pineal. Este
pequeno órgão fica na porção central do cérebro, em uma posição que,
simbolicamente, parece estratégica: exatamente entre os dois olhos, mas em
posição mais profunda em relação ao rosto. Isso passava a impressão meio
mediúnica de uma terceira visão. Essa glândula era conhecida pelas cada vez
mais frequentes dissecações de cadáveres, mas ninguém sabia exatamente para que
ela servia*. Pela posição privilegiada e incerteza quanto a sua função, Descartes
a elegeu como esse ponto de convergência entre res cogitans e res extensa. É o
que se chama de asylum ignorantiae,
um confortável repouso para questões não resolvidas.
Malebranche se tornou um fãzaço de Descartes, especialmente
porque o dualismo res extensa e res cogitans se acomodava perfeitamente à
dicotomia cristã do corpo e alma. Mas a historinha da glândula pineal era um
espinho na sua garganta, e ele sentiu a necessidade de desenvolver uma tese
melhor. O roteiro não é tão curto, mas tentarei ser sintético.
Embora a igreja católica já vivesse os tempos da escolástica
de São Tomás de Aquino, Malebranche volta a Santo Agostinho e sua interpretação
do platonismo para constituir suas ideias. Já falei muito disso por aqui, mas
vamos dar concisão: Platão entendia que existiam duas
instâncias da realidade, sendo que uma continha todas as formas perfeitas,
e que era acessível unicamente pelo intelecto, e outra que se tratava de
reproduções imperfeitas, colocadas no nosso mundo igualmente imperfeito. Tudo o
que existe na nossa percepção sensorial é uma cópia de algo que possui sua
forma perfeita no universo intelectual. Dessa forma, todos os homens são cópias
do homem perfeito existente no mundo das ideias, assim como o coelho perfeito,
o cachorro perfeito, o vinho perfeito, e qualquer outra coisa que se colha da
realidade. Vamos dar um exemplo. É possível que se pense no círculo perfeito,
que é aquele em que não há nenhuma quina, que o grau de giro é sempre idêntico
e que todos os seus diâmetros possam ser medidos de maneira exatamente igual,
além daqueles coeficientes relacionados a pi (3,1416...) que não trataremos
aqui. Vamos pensar em colocá-lo em prática, para ser transposto ao mundo dos
sentidos, e começamos com um lápis e papel. À mão livre, o resultado é risível,
todo torto e mais parecendo uma ameba qualquer. Lançamos mão de um pires, como
fazem as crianças, e resultado melhora, mas não a ponto de plasmar a perfeição,
já que as superfícies do artefato possuem rugosidades e defeitos. Passamos a
pensar em um compasso… agora vai! Mas há outros problemas. O giro do
instrumento tem diferenças de pressão e do balanço aplicado que fazem com que o
risco contenha ainda problemas, ainda que mais próximos de um círculo sem
defeitos. Partimos para a ignorância e vamos a um laboratório para traçar um
círculo como jamais se viu, com o mais fino dos equipamentos. Ainda assim,
quando chegarmos ao nível molecular, vamos notar que há imperfeições para
brunir. Portanto, ainda que matematicamente seja possível chegar ao círculo
perfeito, e a matemática é pura abstração mental, na prática não se consegue
fazê-lo, e ele permanece habitando unicamente o mundo das ideias.
O que faz Santo Agostinho? Retoma essa dualidade, retirando
de um mundo metafísico as ideias perfeitas e colocando-as na mente de Deus.
Deste jeito, as formas perfeitas estão nos intelectos porque os mesmos
partilham das ideias divinas. Portanto, tudo o que se pode ver e refletir tem
como fiel depositário o intelecto divino, e, como o homem é imperfeito, o mesmo
degenera, embora seja uma obrigação do homem de boa vontade buscar ao máximo se
aproximar do conhecimento divino.
Sendo assim como falamos acima, o intelecto humano participa
do intelecto divino, e é exatamente desta forma que Malebranche responde à
aporia cartesiana da imbricação alma-corpo. Descartes imagina a glândula pineal
como o eixo de articulação entre corpo e alma porque sente a necessidade de
estabelecer um nexo causal entre um que comanda e o outro que age, mas
Malebranche diz que essa relação de causa e efeito não faz sentido na absorção
do conhecimento. Como as almas tem conexão direta e imediata com Deus, é daí
que se dá o processo cognitivo. Quando uma pessoa faz a intuição de qualquer
coisa, que nem sempre representa um contato (é possível pensar em uma estrela
mesmo em pleno dia, ou em uma temperatura muito quente mesmo no mais denso
inverno), a fonte da ideia que brota em sua alma vem do mundo das ideias
divinas. Esse relacionamento de corpo e mente, tão caro a Descartes, é
desnecessário em Malebranche. A alma é plenamente independente do corpo.
Ora, e como os corpos se movem? Por qual motivo obedecem aos
impulsos dos pensamentos? Bem, embora Malebranche não fosse um adepto do
aristotelismo, concordava que a realidade tinha causas
eficientes. Para quem não lembra o que é isso, é uma das quatro causas, que
nada mais são do que o fundamento da realidade. A causa eficiente é aquela que
faz um fenômeno acontecer. Dessa forma, quando estou digitando estas mal
escritas linhas, sou sua causa eficiente. A causa eficiente do gol é o
centroavante, a causa eficiente da casa é o pedreiro, a causa eficiente da
cinza é o fogo. Se todo acontecimento tem uma causa eficiente, também os
movimentos e ações têm a sua. Se o que conhecemos vem da consciência de Deus,
do mundo das ideias divinas, naturalmente a causa eficiente de cada coisa que
sabemos é o próprio Deus. Como a interação entre corpo e alma é não eficiente, e
como a ação humana é contingencial e finita, plasma a vontade necessária e
infinita de Deus, e o que vemos transformado em ato é uma ocasião da
manifestação dessa vontade. Cada ação humana vem de uma causa ocasional, ou
seja, um momento em que há uma manifestação de Deus. Essa é a grande tese de
Malebranche, à qual foi dado o nome de Ocasionalismo.
Pensamentos vêm de Deus porque as mentes humanas são partícipes menores da
mente divina, e ações também vêm de Deus porque são ocasiões para sua
manifestação.
O que eu penso de tudo isso? Bem... Malebranche sem dúvida
vai na contracorrente do seu momento histórico, em termos de Filosofia, e,
embora não haja dúvidas que seu pensamento guarde interesse, ele tende a se
tornar anacrônico mesmo em sua época. Embora ele rejeite a ideia da glândula
pineal e ela seja mesmo mais um subterfúgio do que uma explicação com bons
fundamentos, o fato é que a causa ocasional é igualmente pobre, e funciona mais
na base do deus
das lacunas ou do apelo
à ignorância do que propriamente como um argumento mais consistente. É o
famoso tipo de argumento que subentende uma fé para guarnecer seus fundamentos.
De toda forma, é muito bem construído e vale a pena ser conhecido.
É isso. Quando vocês estiverem a caminho de Ubatuba, não
deixem de dar uma passada no comecinho da vicinal de Redenção da Serra, para
dar uma boa agasalhada no estômago e respirar um pouco de ar puro misturado com
perfume de comida. É uma boa ocasião para notar que a vida pode ser boa. Bons
ventos a todos!
Recomendações:
Em primeiro, a obra mais célebre de Malebranche, que sintetizou
seu pensamento:
MALEBRANCHE, Nicolas. A
Busca da Verdade. São Paulo: Discurso Editorial, 2019.
E depois, a costumeira indicação do lugar a quem me refiro
nas navegações:
Mercearia Santa Terezinha (Barraca da Fátima)
Rodovia Major Gabriel Ortiz Monteiro (SP-121), Km 2
(Bem no encontro entre as cidades de Redenção da Serra e
Taubaté)
Aproximadamente 150 Km a partir do centro de São Paulo.
*Mais tarde, descobriu se que a pineal é responsável pela
liberação de melatonina, o hormônio de regulação das funções do sono.
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