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quinta-feira, 10 de janeiro de 2019

A sociedade e os estrangeiros em sua própria terra

Olá!

Já deu o que falar o meu último texto, em que versei sobre a polêmica envolvendo a vlogueira e atriz Kefera Buchmann, onde tentei elucidar um pouco melhor o conceito sociológico de lugar de fala. Mas preciso demarcar melhor o real alcance do que estou falando, porque dá a impressão que estou nos trending topics com muita gente discutindo onde acerto e onde erro nas minhas proposições sobre feminismo e congêneres. Nada disso. Na verdade, meus mais fieis seguidores são mesmo os meus amigos, a quem fico aporrinhando para ler meus textos, e a discussão principal não se deu em termos sócio-filosóficos, como eu gostaria, mas por conta essencialmente desta frase:

“É louvável que sua temática amadureça, que saia do mero entretenimento e é muito bom sua adesão à causa feminista, porque sua notoriedade carrega toda uma visibilidade de um público que lhe acompanhava de perto até então e que lhe ouve, além de lhe tirar uma certa impressão de futilidade (o que não é um mal em si)”.

Em suma, eu falei sobre amadurecimento, dificuldade de conceituação, empatia, alteridade, teia social, minorias, representatividade e o pessoal está me pondo na parede porque eu não afirmei com todas as letras, pontos e acentos que o ideário da moça em epígrafe é frívolo como ela própria, ou, melhor dizendo, por quais motivos eu me ocupo de coisas tão banais. Ai, ai...

Vamos lá, ínclitos confrades. Em primeiro lugar, não existe tema banal em Filosofia. Tudo, absolutamente tudo é passível de análise e pensamento, desde temas da mais alta abstração, como designadores rígidos e estruturas lógico-linguísticas, até concretudes fúteis do nossos quotidiano, como novelas, futebol, vlogueiras de sucesso. É através desta máscara que o cosmos apresenta a nós que temos o contato primal com assuntos que se tornarão muito mais profundos, ora essa. A teoria da gravidade nasce com a queda de uma maçã, não é verdade?*

Mas é preciso pensar um pouco sobre a imagem que fica sedimentada sobre cada um de nós. Como eu gosto de escrever sobre Filosofia e circunvizinhos, o pessoal tende a achar que tudo o que leio são artigos acadêmicos ou alta literatura. Não, eu leio gibis também. Acham que tudo o que eu assisto são mesas-redondas sobre temas da mais erudita especificidade, mas eu gosto mesmo é de desenhos animados. Aliás, o pessoal acha que meu passatempo favorito é jogar xadrez, mas eu curto de verdade é estar em uma arquibancada, xingando a senhora progenitora do juiz. Quem me lê, pode achar que eu só me sinto motivado a ver filmes de arte europeus, daqueles em que o cineasta fixa dez minutos de película em uma fumaça de cigarro que se perde no espaço, mas não. Eu me divirto com besteirol, não preciso estar o tempo todo com as engrenagens cerebrais em funcionamento. Tudo o que eu quero, por vezes, é dar risada. Isso acontece em tudo, inclusive com vídeos do YouTube.

Eu vou dar aqui bons exemplos de canais que sou inscrito, para que vocês entendam melhor. Algum tanto do que escrevo aqui tem inspiração em vídeos, e procuro-os várias vezes para conhecer mais sobre temas dos quais quero me aprofundar, em especial aqueles que tem o magnífico hábito de fornecer fontes.

Foi fazendo pesquisas sobre homoafetividade que eu cheguei a gente excelente, como o Murilo Araújo do canal Muro Pequeno, que fala sobre a difícil tarefa de conciliar causa LGBT e Cristianismo, ou ao canal Quebrando o Tabu, que expande seus temas para a afirmação racial e propostas eleitorais, ou ainda o Põe na Roda, canal do Pedro HMC, que trata de cultura pop concernente à temática. Há também o canal Guardei no Armário, do Samuel Gomes, que recolhe muitos depoimentos sobre o difícil momento de se assumir, ou até mesmo o Para Tudo, da drag queen Lorelay Fox, alter ego do publicitário Danilo Dabague, que, apesar da temática muitas vezes ligada à “montagem” do personagem, traz vídeos relacionados ao seu modo de ver e viver o mundo, com as confusões tão típicas entre pessoa e persona. E foi assim que eu cheguei ao canal Diva Depressão, eminentemente de humor LGBT. Confesso peremptoriamente: eu ME CAGO de rir daqueles dois, especialmente quando fazem suas inextricáveis, herméticas e viscerais investigações sobre... looks de famosos.

Desculpe se eu decepciono alguém, mas duvido muito que haja quem se fixe unicamente nos eruditos. Existe um negócio chamado lazer, que serve justamente para dar um alívio nas coisas mais sérias da vida. Pergunte para qualquer pessoa sobre o que ela pretende fazer após a aposentadoria. Invariavelmente se falará sobre coisas prazenteiras, mesmo que seja trabalho, como cuidar de uma hortinha sem a necessidade de tirar dela seu sustento. Pouca gente tira férias para arrumar coisas da casa. Se ocorrer, seu semblante será de um sofrimento semelhante à perda de um parente (já fiz isso para consertar o telhado). Por isso, lazer é essencial, e por vezes tem que ser frívolo mesmo. Dia fútil, dia útil, já dizia um reclame da rádio Cultura.

Mas esta casca de insignificância oculta algo que vale ouro, e que vai muito além da mera proposta de diversão, o que, como eu já disse, se justifica por si só. Acompanhem meu raciocínio, apoiado por um dos mais consideráveis sociólogos alemães, Georg Simmel.

Vivemos em sociedade e blá-blá-blá. Mas o que é essa tal de sociedade? É um somatório de pessoas e nada mais? Não, claro. Para Simmel, a sociedade é o agrupamento de indivíduos que interagem entre si. Esta é uma definição mais aperfeiçoada do que tínhamos correntemente em sua época de atuação, o começo do século XX. Até então, dizia-se que sociedade era o conjunto de cidadãos de um determinado espaço físico. Mas não havia sentido em se dizer que viver junto era sinônimo de sociedade, porque para que cada um seja reconhecido como ator, é preciso que tenha um papel a desempenhar, que este seja bem conhecido e que tenham entre si algum nível de interdependência.

Uma importante diferença a ser estabelecida entre interação e socialização: a primeira é um contato onde duas ou mais partes percebem e são percebidas. É como quando perguntamos para alguém onde fica determinada rua. Há uma aproximação feita pela fala, como um bom-dia, por exemplo, a chamada de atenção, a pergunta, a resposta e o agradecimento, e nada mais. Já a socialização traz consigo toda uma carga cultural e de expressão de valores, que fazem com que as pessoas sigam uma norma na sua convivência. No mesmo exemplo da rua, o fato de se falar o bom-dia no início e o obrigado no final da pergunta já denotam um costume, um hábito que é sedimentado socialmente e tido como bom pelo meio onde se vive. Desta forma, a socialização se dá através da interação, mas não se limita a ela. A interação, para ser considerada um objeto de socialização, precisa carregar consigo a intenção de influenciar o meio onde se vive, com o rebote de também ser influenciado em troca. Esse vai-e-vem de interações é exatamente o que chamamos de sociedade, e Simmel dá o nome de sociação a esta interação recheada de propósitos.

A interação social, portanto, não se dá sem uma intencionalidade. Todo aquele que interage o faz motivado por alguma necessidade ou dependência, nem que seja uma mera conversa em um fim de tarde de domingo. Essa sociação tem um conteúdo, que corresponde ao elemento motivador da relação social. Esse conteúdo é exatamente o aspecto individual da interação, aquilo que leva alguém a cometer qualquer ato social. Se tenho raiva, se tenho ternura, se tenho necessidade física, o conteúdo é o elemento subjetivo impulsionador da sociação, e que se traduz naquilo que Simmel chama de forma, a maneira física com a qual ela se torna manifesta. O xingo é uma das formas do conteúdo raiva; a entrega da flor, do conteúdo ternura, e o pedido de esmola, do conteúdo necessidade física.

E se um grupo está presente, mas não existe grandes processos de socialização com os restantes? Existe uma parte específica dos estudos de Simmel que fala sobre a curiosa situação do estrangeiro, e que é muito boa para entender como presença física não insere automaticamente no meio social, como pareciam pretender outros pensadores sociológicos. Vamos começar do começo.

Quando os homens viviam em meio rural, era frequente que as interações entre todos os habitantes da cidade fossem intensas. Em suma, todo mundo conhecia todo mundo, e sabiam bem o que todos faziam de suas vidas. Com o advento da Revolução Industrial e da consequente urbanização, cada vez mais os indivíduos entraram em um processo de especialização. Quando viviam no campo eram obrigados a fazer tudo, desde cultivar até construir a casa onde habitavam, passando por tecer, rachar lenha, alimentar os filhos e os animais, prever o tempo, reparar as ferramentas de trabalho. Já a vida nas cidades era diferente. O cidadão não precisava saber fazer tudo, mas o que ele sabia fazer precisava ser levado à perfeição, com uma velocidade extremamente desvinculada do tempo natural (para ler mais sobre esse fenômeno, acesse este outro texto do meu blog). Isso o leva a um estado psicológico de retração, primeiro porque é impossível conhecer todas as pessoas que moram em seu mesmo espaço físico, e segundo porque não há mais interesse em se saber de tudo um pouco. Essa impossibilidade de alcançar o meio social por completo faz com que o indivíduo desenvolva aquilo que Simmel chamou de atitude blasée. Este termo francês significa aquele sentimento de tédio que temos nos fins das aulas de sexta-feira, quando não aguentamos mais os professores de cálculo falar sobre derivadas e integrais**. Ou seja, a atitude blasée é uma manifestação de indiferença com aquilo que está acontecendo ao nosso redor. Somos mais impessoais.

É por isso que a vida nas cidades parece menos integrada interpessoalmente que a do meio rural. As pessoas passam nas ruas e dificilmente se cumprimentam, lidam entre si de maneira bastante formal e via discorrendo. Mas esta é a parte mais externa da coisa. A atitude blasée denuncia uma indiferença não só com as pessoas que estão nas nossas proximidades, mas com nacos inteiros da vida social. Há uma espécie de hierarquia de importância nos nossos contatos sociais, onde aqueles mais estranhos ao meio são aqueles que receberão a carga maior de indiferença.

Simmel volta sua análise para os judeus da Europa. São grupos que eram compostos por estrangeiros com alto grau de endogenia, ou seja, suas relações se davam majoritariamente dentro de seu próprio grupo. Eles têm a proximidade necessária para se fazer parte de uma determinada sociedade, mas se colocam distantes justamente pela falta de interação. Essa atitude não parte unicamente de dentro para fora, já que os judeus eram mal recebidos em muitas partes onde tentavam se estabelecer: eram tidos como deicidas, como negociantes natos, enfim, não eram lá muito bem quistos por aí. O estrangeiro, nesse sentido, parece estar sempre em situação precária, sempre de passagem. Os laços de pertencimento são frágeis, ou mesmo inexistentes. O estrangeiro compartilha o espaço com outras comunidades, mas não está integrado a ela.

Se percebermos que Simmel está se referindo a uma comunidade cuja principal característica é seu laço religioso, e não sua nacionalidade em si, podemos deduzir que é possível estender sua análise a outros grupos que vivam sobre outro tipo de elo, de modo que possam ser considerados estrangeiros em sua própria terra, e que tenham dificuldades em se integrar à sociedade da qual deveriam fazer parte. Em síntese, mesmo que estejam organicamente inseridos em um espaço físico, são considerados como “os de fora”, e para eles a sociedade em geral volta sua atitude blasée.


Ok. E o que isso tudo tem a ver com o canal Diva Depressão? Tem a ver o seguinte: todo grupo que é estranho a um determinado meio social não o faz porque quer, via de regra. E é difícil que este tipo de situação se mantenha sem que se esperneie de alguma forma. Imagine-se corintiano em uma rua de palmeirenses. Ninguém vai se preocupar se as eventuais comemorações de título lhe incomodam, muito pelo contrário. Você, minoria, será objeto de chacota a todo instante, de violência, de desprezo. Os palmeirenses quererão que você vá embora, purificando a rua de toda mácula alvinegra. Você, vestido em sua dignidade, resistirá, lutando pelo seu direito de ser como é, corintiano dos quatro costados. Tentarão em vão convertê-lo, mas não é possível, vai contra sua natureza e sua cultura. A sua resistência incomodará até o ponto em que alguns dos palmeirenses comecem a vê-lo com simpatia. “Esse corintiano é porreta”, dirão. Não se incomodarão mais em dar folga ao corintiano, passando até mesmo a conviver com ele. Verão que ele é uma pessoa comum, como eles mesmos. Perceberão que o que define um corintiano é torcer para o Corinthians, e nada mais. Maloqueiro, sofredor, analfabeto, desdentado, tudo isso é bobagem, como é bobagem dizer que palmeirenses são porcos, sujos, mafiosos, brincadeiras que lhes colaram na testa e que não desgrudam mais. Aos poucos, alguns deles confessarão que, na verdade, não são de fato palmeirenses, mas torcedores de outros times que tinham medo de se declarar, face a violência e o menosprezo devotado ao grupo minoritário. A reação inicial é ruim, mas é preciso mostrar a todos que a convivência com o corintiano não é nada demais, que ninguém pode obrigar um palmeirense a se manter ou deixar de ser o que é. Esse processo é coisa para anos a fio. Os dois escretes citados são exemplos. Troque por qualquer um de sua preferência, o efeito é o mesmo. O importante é perceber que a atitude de indiferença precisa ser chacoalhada.

Todo mundo já deve ter percebido que eu quis traçar uma metáfora. Os pontos de interseção são a exclusão e a vontade de silenciamento do grupo não integrado. Canais engajados, como os que citei, tem o papel de soltar o grito de propor o enfrentamento com as armas da racionalidade. Em resumo, são aqueles que metem o dedo na ferida. Eles são necessários e cumprem um papel primordial, cujo mesmo não dá para viver sem. Mas o diabo é que a militância sempre traz consigo o substrato do confronto, o que nunca é confortável, por mais que a reivindicação seja justa. Ninguém gosta de ser chamado de opressor, mesmo que seja. Quem milita afirma: “podemos viver em paz”. Mas o que é esse viver em paz com aquele que mete o dedo na minha cara? O que inserir o outro harmonicamente em meu convívio?

Essa é a pedra de toque de canais como o do Filipe e do Eduardo. Eles demonstram o que poderia ser a vida se a camada LGBT pudesse se manifestar livremente, já com o pressuposto da desnecessidade da militância. É assim que podemos evocar um mundo futuro, sentir seu sabor e ver que ele não tem nada de errado. Assistindo o seu canal, vemos que são pessoas divertidas, espertas, sórdidas por vezes, mas que, essencialmente, são convivas ótimos. Não é necessário que exista uma barreira entre as camadas populacionais, porque eles trazem aquilo que os canais de militância têm dificuldade em fazer: uma aura de normalidade nas relações. Eles não são bichos papões que vão ensinar seu filho a ser gay, a esterilizar a população, a impedir que casais hétero se desvirtuem em promiscuidade. São o que são, não precisam ser tratados como estrangeiros em sua própria terra.

Taí, a importância de ser fútil. Quer dizer, de viver de forma comum.

Recomendações:

Simmel não é tão considerado como deveria, mas recentemente sua obra tem recebido uma maior atenção por parte dos meios acadêmicos. O livrinho abaixo dá uma boa ideia de seus pensamentos.

SIMMEL, Georg. Questões Fundamentais da Sociologia. Indivíduo e Sociedade. Rio de Janeiro: Zahar, 2006.

Abaixo, os endereços de todos os canais que citei neste texto:







* Não, não é verdade. Ou, ao menos, não se sabe. Essa fábula sobre a maçã que caiu na cabeça de Newton deve ter nascido de algum exemplo e funciona muito bem como ilustração, mas não há nenhum relato deixado por ele sobre esse fato. Vejam um artigo interessante sobre essa assunto em http://www.ghtc.usp.br/server/pdf/RAM-livro-Cibelle-Newton.pdf.

** Perdão aos colegas de Matemática. Reconheço 100% do valor das coisas que vocês ensinam, mas é uma questão de vocação mesmo. As coisas que não entendemos nos chateiam de verdade. Entendam isso tudo como uma limitação de minha parte, e não uma crítica.

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