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sábado, 28 de fevereiro de 2015

Sobre os ritos e o Carnaval como fator de identidade do Brasil

Olá!

O Carnaval acabou de acabar, faz coisa de uma semana atrás, quando transcorreram os desfiles de escolas campeãs, e, com isso, se inicia o ano civil propriamente dito, com todas as suas benesses e transtornos. Acompanhei a apuração de São Paulo, onde ganhou a tradicional Vai-vai, e dei uma olhadinha na apuração do Rio de Janeiro, com a vitória polêmica da Beija Flor, que enalteceu a Guiné Equatorial, governada por uma das ditaduras mais antigas da atualidade, sanguinário como de estilo. Bom... Polêmico, o tema Carnaval é por si só. Relembro de um momento, há uns treze ou quatorze anos atrás, quando dois colegas de serviço leitores deste espaço (e cujas identidades preservarei) vieram me levantar um questionamento. Eles perguntaram o que eu achava DE carnaval, mas eu havia compreendido que a pergunta era o que eu achava DO carnaval. Então tasquei a resposta imprudente: “Bom, achei que a escola A desfilou muito bem, merece o título. Já a escola B, cheiro e gosto de marmelada, outras foram bem mais criativas, blá-blá-blá”.
Para que, meninos? Torpedos éticos e econômicos sobre a minha cabeça – “Como assim? Então você é a favor dessa gastança e dessa putaria? Você é tão alienado quanto esse povo, que ama o circo mais que o pão, que passa o ano inteiro juntando migalhas prá despejar em um fim de semana, blá-blá-blá3.

Calma, gente! Minha defesa foi que, primeiro, precisamos segregar do carnaval seus aspectos éticos e estéticos, só isso. E, nesse sentido, os desfiles são lindos, ponto final. Mas eis que, nestes tempos de Facebook, vejo nas redes sociais uma explosão de gente que se posiciona raivosamente contra o carnaval, argumentando sobre a malversação do dinheiro público, imoralidades cometidas em quatro dias que sepultam a santidade dos outros 361 e desperdício de proventos pessoais, onde o gasto com fantasias por pessoas faveladas é uma grande contradição. Como acho que o carnaval não pode ser visto apenas por esse ângulo mal humorado, senti necessidade de marcar minha posição novamente, o que já havia feito em boa parte neste texto aqui, mas ampliarei os detalhes.
O que identifica um povo? O que faz com que ele seja distinguido de todos os demais? Se eu falar da Escócia, pensaremos em gaita de foles e homens de saia; se eu falar da Itália, vamos lembrar-nos da pasta e tarantela; da Suécia, virá o galalau loiro com chapéu de chifre; dos hermanos, churrasco e tango; do Brasil, ora, samba e futebol!

Isso é um mal em si mesmo? Não! Isso significa que todo brasileiro gosta de samba e futebol? Não! Isso é um estereótipo? Sim! Mas causa algum prejuízo? Não necessariamente! É preciso diferenciar coisas que nos diferenciam dos demais de coisas que nos marcam negativamente. Estamos no primeiro caso quando se tratam de são preferências de uma estranha entidade chamada coletividade. As identidades culturais de um povo derivam do todo, não do indivíduo. E é destas identidades que derivam os ritos típicos de cada comunidade, e que, em sua dinâmica, vão constituindo novas nuances desta mesma identidade e a tornando nova também, em um processo de retroalimentação. Mas o que eu quero dizer com isso?
Vamos lá. O que são os ritos? Apesar de remeter à religião, os ritos não se circunscrevem apenas a esta esfera, como bem podemos observar no Direito e em outras áreas. Ritos são sequências de ações estabelecidas para atingir um determinado fim. Essa sequência possui um rigor mais ou menos flexível, dependendo do que se trata, mas que são necessários para que o ato se consume a contento. Para acionar o judiciário, e.g., precisamos contratar um advogado, que vai redigir uma petição, que vai ser assinada por nós, que deverá ser protocolada em um fórum, que vai ser distribuída para uma vara, que vai ser encartada em uma capa, que vai ser encaminhada para um juiz, que vai apreciar a peça inicial, e daí vai convocar as partes envolvidas, e vai realizar uma audiência, e vai publicar uma sentença, e vai ordenar a sua execução, e vai encaminhar os autos para o arquivo. Estes são os passos para fazer uma ação correr (metáfora) pela Justiça, dentre outros possíveis. São ritos, e não são tomados a bel-prazer de ninguém – são todos passos estabelecidos pela lei. Caracterizam este mundo conhecido como judiciário.

Também as diferentes igrejas prescrevem ritos para seus fiéis. Em algumas delas, é obrigatório entrar descalço no templo, em outras é preciso fazer um sinal da cruz, em outras ainda há divisão entre homens e mulheres. Há algumas cujas celebrações são mais significativas aos sábados, outras aos domingos. Há cores específicas para seguir, roupas litúrgicas para vestir, fórmulas devidamente regradas. E isso tudo é, geralmente, bem conhecido e praticado por todos os membros destas assembleias. Dão características próprias a cada uma delas.


Isso significa que os ritos devem ser prescritos formalmente? Não obrigatoriamente. Uma boa parte dos ritos surge de forma espontânea, sem regras bem definidas, e com o passar do tempo e repetições, fica delineado um modo de executar todos os passos necessários para que um determinado objetivo seja atingido. Então temos aqui algo que ultrapassa o ritual e o transforma em uma celebração autêntica: a absorção popular e sua interferência nas suas modificações.

Vou dar um belo exemplo. Existe uma pequena cidade no interior do Ceará, pequena como outras tantas, chamada Nova Olinda, em que acontece a procissão do pau da bandeira. Por ocasião da festa do padroeiro da cidade, São Sebastião, os homens do município vão até a região de mata da cidade, de onde extraem uma árvore e a descascam, para substituir o mastro que retém a bandeira festiva. Para ajudar no transporte do pesado objeto, o sofrimento é amenizado pelo consumo industrial de aguardente. Tudo é altamente ritualizado: a derrubada do mastro velho, as novenas em honra ao santo, o transporte do imenso tronco feito nos ombros, pelos sete quilômetros de sempre, os cantos de acompanhamento e a quantidade inesgotável de cachaça, até a colocação do novo pau de bandeira em seu devido lugar e a consequente festança. O município de Barbalha, da mesma região, realiza festa semelhante, só trocando o padroeiro, desta vez Santo Antonio.
Vejam como o rito, neste caso, nasce de uma regra prescrita, que é a celebração do padroeiro, e de uma necessidade específica, que é a troca do mastro. Mas como uma série de passos é necessária para levar a cabo tal tarefa, a cada vez que se repete, algumas ações são registradas como significativas, e começam a fazer parte do rito. Em um exercício de livre pensamento, imagino que a troca do mastro era necessária para as festividades do padroeiro, deixando-o mais belo, mais apropriado; a distância se explica pela própria localização da mata; o consumo de álcool eu já expliquei – não se trata de um tronquinho de limoeiro, mas de um longo tronco de árvores variadas, mui pesado e desconfortável. Há uma vinculação com uma entidade cujos ritos são altamente regrados e hierarquizados, que é, no caso, a Igreja Católica; mas o rito aqui é ditado pela prática popular, sem manuais, construídos a partir de sua história e de suas necessidades; no limite, de seus anseios. Por isso, a festa não se resume aos seus aspectos sacros – há muito de profano. E de transgressivo, portanto.

Mas vejam só. Podemos discutir a racionalidade de todo esse rito, mas não podemos negar que se trata do que melhor caracteriza culturalmente essas duas cidades, que as fazem únicas. Os gastos com o evento poderiam ser suprimidos e direcionados para causas melhores, mas isso é ilusório. É essa festividade que atrai gente. Sem ela, seriam apenas mais dois municípios encravados na miséria do nosso sertão, e bem mais tristes. Será que valeria a pena?
Pois bem. Em nível nacional, qual é o rito mais espontâneo que tem como berço a cultura popular? As celebrações cívicas certamente não são, como já discorri no meu texto retro citado. As religiosas também tem alcance limitado, principalmente nos grandes centros urbanos, o que impossibilita dar alcance para todo o território. Resta mesmo o Carnaval, uma comemoração que agrupa um todo através das somas das diversidades. Cada região tem seu modo de comemorá-lo, seja com desfiles, com frevos, com bailes, com trios elétricos, corsos, cordões, batalha de água, com tudo isso junto ou de modo ainda mais particular, tudo sob um mesmo nome. Também tem apelo até mesmo nas classes mais altas: para quem não sabe, uma das maiores tradições são os desfiles de fantasia do Hotel Glória, no Rio de Janeiro. É bem verdade que se trata de um dos últimos remanescentes desta modalidade, mas ela é cercada de luxo por todos os lados.

Enfim, é possível perceber que o Carnaval se espraia e se ajusta a todas as realidades possíveis no Brasil. Só no futebol vemos coisa semelhante. Não vemos isso nos setes-de-setembro, nos quinzes-de-novembro ou nos primeiros-de-maio. Se o brasileiro celebra muito pouco, tolher sua liberdade de celebrar o carnaval significa remover muito de sua identidade cultural.
Dizem que o governo gasta muito para promovê-lo. Li que a prefeitura de São Paulo gasta mais de R$ 10.000.000,00 só com o desfile de escolas de samba. Acho que não é verdade, deve ser bem mais. Só tem um detalhe: quem proclama esse tipo de informação, esquece-se do retorno da bilheteria, em primeiro lugar; depois, é preciso conseguir medir tudo o que se arrecada de impostos por conta do incremento no turismo, que faz girar essa roda econômica. Perguntem para o pessoal da Ladeira Porto Geral se eles não gostam do Carnaval... No final das contas, temos um número que assusta, mas que é falacioso. Se eu gasto R$ 5.000,00 em uma festa de aniversário, parece que terei um grande prejuízo; mas se recebo presentes no valor de R$ 4.000,00, meu resultado financeiro é outro, pois não? Olhar para o que o poder público gasta é muito importante, mas é algo que não pode ser feito isoladamente.

Há também a reclamação dos que dizem que o brasileiro vive em um mar de lama e não se importa com nada, porque o carnaval é uma ferramenta de alienação que cega todo aquele que dele participa. Quem me dera fosse tão simples trabalhar a conscientização do povo, que deve ser diária, e não em um evento de quatro dias. É verdade que o brasileiro, em média, lê menos do que devia, participa politicamente menos do que devia, se informa menos do que devia, mas campanhas raivosas tendem a ser mais alienantes do que o próprio evento que combate. Chega um ponto que a reclamação é tão constante e irracional que acaba depondo contra a causa defendida. É a história da vizinha faladeira que fala mal de todo mundo – no começo, você a escuta; depois, põe em dúvida; por fim, despreza o que ela fala. Começa a achar que sua reclamação não se dá por conta de sua moral ilibada, mas por sua impossibilidade de praticar o mesmo que critica com tanta veemência. A boca fala daquilo que o coração está cheio.
E, no final das contas, vamos ser sinceros. Todo este bate-boca não é uma inútil caceteação com as escolhas privadas de cada indivíduo? Não parece aquela história dos impotentes que criticam a cópula alheia? Para uma pessoa qualquer, o Carnaval pode ter a mesma importância que o Natal tem para um cristão, o Yom Kippur para um judeu e assim sucessivamente. O Carnaval pode ser a justificação do ano para o cidadão. Ele se mantém o ano inteiro no sacrifício para ser rei por quatro dias. NÃO ESTOU DIZENDO QUE CONCORDO COM ESSA ATITUDE, mas a compreendo, e não tenho nada com isso. Eu mesmo não saio às ruas para pular, não vou aos bailes para dançar, não vou às escolas para desfilar, nem mesmo aproveito o feriado para viajar. Limito-me a observar os aspectos estéticos e vejo que eles são lindos, como os enredos são complexos e criativamente desenvolvidos, e com isso não fico amargurado, e observo detalhes positivos e constitutivos daquilo que chamamos de brasilidade, e chego a perceber, por exemplo, o quanto somos descuidados com nossa memória – a primeira escola de samba da cidade de São Paulo, a Lavapés, vive à míngua, da boa vontade de seus remanescentes. Deveria ser considerado um patrimônio histórico e cultural, mas provavelmente muito de sua memória se perdeu. É tratada da mesma forma que o castelinho da rua Apa, que a vila Itororó... A história existe, gostando ou não dela. Preservá-la é prova de que gostamos do nosso país.

Taí o toque mágico: ao posar de patriotas, os detratores do carnaval, que tanto amam o Brasil e o querem pujante, se opõe exatamente ao que melhor caracteriza o país, formando um paradoxo irresolvível. No fundo, isso tem toda a pinta de uma moralidade torta, mas esse é assunto para outro momento.

Recomendação de leitura:
Recomendo o bom livro abaixo para quem quiser ter um visão bastante rica sobre o Carnaval, que vai além das fronteiras da dicotomia festa-abuso.

QUEIROZ, Maria Isaura. Carnaval brasileiro: o vívido e o mito. São Paulo: Brasiliense, 1982

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

Pequeno guia das grandes falácias - 8º tomo - O poço envenenado

Olá!

Clique aqui para ver a lista das falácias já publicadas


Imagine a seguinte situação: você está atravessando um longo deserto, sob um sol escaldante. Em sua rota, há uma série de poços de onde você pode extrair água suficiente para a sequência de sua viagem, sem que exista a necessidade de transportar grandes reservas do precioso líquido. Estes poços estão localizados em vários oásis, que podem ser vistos a alguma distância. A princípio, apesar do incômodo causado pelo calor, sua jornada segue sem maiores percalços, até que a garganta começa a secar, e você estabelece uma parada no próximo poço disponível ao longo da estrada.


Ao avistar o oásis, você desvia seu trajeto para abastecer seu odre para um novo trecho, seguindo o princípio de não onerar muito a carga com o peso da água. Um fato inesperado, no entanto, ocorre. Já bastante próximo do poço, há um velho senhor. Ao perceber sua aproximação, começa a vociferar contra a qualidade da água, alegando que uma senhora, uma beduína de outra nação, envenenou todos os poços da rota, em vingança ao fato de terem arregimentado seus filhos às legiões de combate, em uma guerra que acontecia longe dali. O discurso do velho era muito apaixonado e convincente, e você decide seguir viagem sem encher suas garrafas, assustado que estava.

Só que o calor não arrefece, e suas reservas se esgotaram. Você resiste por mais dois ou três postos de abastecimento, mas, ao chegar ao seguinte, não vê remédio. Mesmo contra todas as advertências, lança o balde no poço e bebe daquela água suspeita. O efeito é imediato: tontura, náusea, calafrios e sensação de morte iminente. É verdade que o poço estava envenenado ou você somatizou tudo isso que o danadinho do eremita botou na sua cabeça?

Esses são os efeitos da falácia do poço envenenado.


Envenenar o poço é uma maneira de causar prevenção contra um adversário

Pelo que consegui pesquisar, o nome desta falácia deriva da lenda do envenenamento dos poços, atribuída aos judeus, que eram acusados de envenenarem poços e causarem doenças. Como os judeus eram considerados malditos, esse argumento era utilizado para justificar ondas de epidemia, comuns em tempos pretéritos. Envenenar poços era prática comum em tempos de guerras e perseguições, para que o invasor não tivesse de onde extrair água. Aliás, abrindo um rápido adendo, os judeus sempre foram vítimas de inúmeras acusações ao longo da história, e os pogroms passaram a ser sinônimos de violência contra grupos étnicos. Este é um assunto que merece texto a parte, a ser redigido em momento oportuno.

Esta falácia nada mais é do que uma variação do ataque pessoal, com a diferença de que a contraposição se faz antes mesmo que o oponente inicie sua argumentação. O resultado esperado é que tal atitude leve ao descrédito toda e qualquer coisa que venha a ser falada, pela desqualificação antecipada dos argumentos. É uma ação psicológica, que procura fazer com que a audiência já erga um muro de proteção contra aquele que nem ao menos começou a arguir.

Só que escavar poços envenenados não constitui argumentação lógica. Desqualificar um adversário pode ser muito eficiente em termos de plateia, mas tem um caráter de engodo. Vou dar mais um exemplo para que se perceba como é possível manipular a opinião de uma pessoa, com uma rápida novelinha:

Duas pessoas se encontram na rua. Uma pergunta à outra:

- Bom dia. Poderia me dizer onde fica a taverna do Sr. X? Dizem que ele serve um ótimo vinho.

- Ah, cuidado com aquele pilantra. Ele é todo atencioso, vai te oferecer uns amendoins de graça, te colocar numa mesa bem arejada, tudo isso prá vender mais caro um vinho que tem mais fama do que sabor. É o primeiro estabelecimento da próxima rua, mas fique atento.

Apesar do estranhamento e da inquietação, o primeiro sujeito vai à tal taverna, e encontra, de fato, tudo conforme foi dito pelo mal-humorado transeunte: uma recepção calorosa, uma mesa bastante limpa, uns acepipes de cortesia...

Nosso amigo saiu correndo do estabelecimento antes mesmo de ver a carta de vinhos.

Todo satisfeito, o interlocutor dispara uma sonora gargalhada e diz: “Eu não te disse?”.

Não sabemos qual foi a motivação do detrator, se é um concorrente, se há algum problema pessoal, se ele é contrário a bebidas alcoólicas. O fato é que ele aplicou uma manipulação psicológica que deu certo, porque narrou uma sequência verídica que se confirmou de início, mas que não foi levada a cabo para averiguação da verdade. Esse é o truque da falácia do poço envenenado – ela não mente necessariamente, mas tenta enganar sempre.

O poço envenenado é sobejamente utilizado em política, principalmente nos cada vez mais chatos debates televisivos. Pincei um exemplo da última campanha eleitoral para a presidência. No caso, o candidato Eduardo Jorge dirige-se ao candidato Levy Fidelix, que falou groselha dantesca em debate anterior, ao se referir à comunidade homossexual como uma minoria a ser enfrentada. Ele diz o seguinte, ipsis litteris:

“EDUARDO JORGE: Candidato Levy, você viu que, durante o tempo todo, eu me portei com a maior ternura com os candidatos. Da última vez, segunda-feira de madrugada, o senhor extrapolou todos os limites e, com a sua fala, agredindo a população LGBT, agrediu 99,9% da população brasileira. Na própria segunda-feira, o nosso partido e outros entraram com uma representação contra o senhor. Eu proponho que o senhor peça perdão pela sua fala ao povo brasileiro”.

Pois muito bem. Eu não votaria no Levy Fidelix nem para Rei Momo. Acho mesmo que ele agrediu despropositadamente a população LGBT, menos por sua posição contrária à união civil, mais pela sua proposta de confronto, que pode ser entendida de várias formas, inclusive violentas. Ademais, gosto do Eduardo Jorge e acho que costuma ter boas propostas e concordo com sua indignação, mas uma coisa é fato: do ponto de vista da lógica do discurso, ele envenenou o poço. Percebam que a sua colocação já põe, de imediato, o outro candidato na defensiva. Ele não pede esclarecimentos, não delimita sua própria posição, apenas encosta o adversário na parede.

É possível falar em envenenamento de poço não falacioso? Como o termo pressupõe malícia na colocação, não. Mas é perfeitamente possível e não falacioso qualificar um argumentador quando esta qualificação for essencial para deixar os posicionamentos mais claros. Imaginemos, por exemplo, um debate em que são propostas as diferentes visões religiosas sobre um assunto qualquer. Neste caso, não só é desejável, mas é fundamental que se saiba de que ângulo o debatedor enxerga. Assim, é preciso que se saiba se o propositor é cristão, umbandista, hinduísta, budista, ateu ou coisa que o valha. Desta forma, elimina-se outra falácia – o ad hominem circunstancial, aquela em que dizemos algo assim: “Ah, você diz isso porque é cristão”. Isso é óbvio, já foi colocado antes mesmo do argumento. Isso é um caso de pré-qualificação que não é falaciosa, não há envenenamento do poço.

Recomendação de leitura:

A obra de Giovanni Guareschi é muito divertida. Trata-se das contraposições de um padre conservador com um prefeito comunista, no imediato pós-guerra italiano, quando tudo o que existia de um país devastado era apenas a vontade de se reorganizar como nação. Como seus livros são altamente politizados, o uso de poços envenenados é abundante. Menciono um dos seus livros, o primeiro; e um capítulo em especial, onde há um caso evidente. Este capítulo se chama “O comício”, e ocorre quando o representante da oposição sobe ao palanque para realizar seu discurso.

GUARESCHI, Giovanni. Dom Camillo e seu pequeno mundo. São Paulo: Difel, 1980.

Agradeço à Jazz por representar nossa beduína malvadinha na tapeçaria.

terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

Cartas náuticas para marinheiros de terra firme - 1º relato: Águas da Prata entre o misticismo e a razão da arché

Olá!

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Há 25 anos atrás, estava eu a contrair núpcias com minha esposa. Como não se trata de um dia qualquer, fizemos uma bela comemoraçãozinha, pequena mas importante, incluindo uma bênção na igreja da Boa Morte, um forra-bucho regado a chope e champagne com meus amigos, parentes e afilhados e uma viagem de revisita aos mesmos lugares por onde passamos em nossa lua de mel. Mas não só. Demos uma belíssima expandida no roteiro, passando por quase todas as cidades do chamado Circuito das Águas Paulista. Houve duas defecções: Serra Negra, por conta da lotação da cidade e Jaguariúna, desta vez por causa do tempo exíguo. Fica para a próxima. Em compensação, inserimos de bônus a pequena Estiva Gerbi e a laboriosa Monte Sião, esta última no estado de Minas Gerais, além das originais Águas da Prata e Poços de Caldas, protagonistas de nosso giro inicial.
Em primeiro lugar, rápida passagem sobre minhas bodas. Não é fácil, ao menos hoje em dia, casamentos duradouros. O discurso de quem nos rodeia é de admiração, mas não somos santos nem vivemos incólumes a problemas e dificuldades, por isso mesmo não tenho nenhuma espécie de fórmula mágica, nem farei grandes blá-blá-blás. Componentes básicos são tolerância, paciência, respeito mútuo, e andar de mãos dadas. Não só metaforicamente, mas fisicamente mesmo. Andar de mãos dadas é muito bom.

Gostei das alianças. Elas combinam o dourado habitual com o prateado simbolizante das bodas de prata. Olhem que legal:

Tomei o cuidado necessário para que a minha não ficasse entalada no dedo, como ocorreu com a minha pobre aliança original, que teve de ser impiedosamente cortada, além de deixar uma marca permanente na falange inferior. Conselho, crianças: aprendam a não se habituar a estalar os dedos, porque engrossa as juntas, já dizia insistente e aflitivamente minha avó, ao presenciar este meu vício.

Meu coração ficou mole nos últimos tempos. Chorei prá caramba... Meus filhos falaram e eu chorei. Meus afilhados fizeram uma homenagem (linda demais) e eu chorei. A Natália fez um discurso (chorando, e muito) e eu chorei. Abracei meus convidados e eu chorei. Chorei sozinho vendo as fotos e as filmagens. Bom, nem falo da patroa... Ela chorou mais ainda. Gozado esse negócio de chorar na alegria. Depois eu reflito melhor sobre isso.
Devidamente beijados, comidos, bebidos e dormidos, partimos em viagem. Nossa primeira parada: Águas da Prata, cidade do interior paulista extremamente próxima de Minas Gerais, região da serra da Mantiqueira, pequenina e bem preservada em seu ambiente natural, cuja principal atração é a boa quantidade de fontes de água mineral com diversas características físicas (mais radioatividade, menos radioatividade... não sei distinguir muito bem suas benesses; vou confiar no bom senso das informações dadas em cada uma delas).

Ficamos na mesma pousadinha em que passamos nossa lua de mel original. Não mudou em praticamente nada. Algum quadrinho, uns chuveiros mais sofisticados, mas, no todo, foi um regresso ao passado. Só faltou – graças a Deus – a invasão de marimbondos que tivemos na primeira viagem. Esta é a casinha em foco:

Revisitamos o Cristo Redentor que fica no mais alto monte do perímetro urbano. De novidade, um horroroso cabeamento do para-raios. Feio, mas essencial. Detalhe: absolutamente todas as cidades que visitamos neste périplo tem seu Cristo Redentor voltado para a cidade.

A vista da cidade a partir deste ponto é linda, dando a exata dimensão de uma vila bem construída, porém dentro dos limites racionais urbanos.

Tentamos refazer o passeio de trem até Poços de Caldas, mas tivemos uma notícia desanimadora. Apesar de bem conservada, a gare local está desativada para fins turísticos. Pesquisei algumas notícias e conversei com algumas pessoas, e há uma tendência em reativá-la. Seria ótimo, é um passeio que passa por paisagens únicas, que a estrada não permite curtir.

Uma das tentativas que fiz desta vez foi subir a serrinha que conduz até o Pico do Gavião, em uma estradinha de terra de 12 Km, de onde partem heroicos voos livres. Pobre do meu carro... Chegando lá, vi, de grande altitude, que talvez não conseguisse reunir coragem necessária para fazer um voo de parapente (na carona, evidentemente). Mas o problema foi resolvido de maneira mais simples: não havia instrutores no local. No final das contas, ainda bem!


Para não perder a viagem (que já não estava perdida – a altitude dá medo, mas é muito bonita), paramos no meio da estrada para molhar as costas na cachoeira da Ponte de Pedra. Trata-se de um salto que forma um bacião, com água bem gelada. Refrigério perfeito para um calor de 37 graus. Lá encontramos a Evelina, que, do alto de seus 60 anos, mais da metade vividos na cidade, entrava pela primeira vez naquelas águas. Ela chegava a estar emocionada.

Com relação à vida noturna... Bem, ela continua bastante singela. A cidade fecha às 20 horas. Poucos botecos e barraquinhas permanecem abertos, para a tristeza de nossas gargantas sedentas por cerveja. Uma delas é esta aí da foto abaixo, comandada pela dupla Amanda e Kika, jovens que saíram da loucura da Pauliceia para viver de forma mais tranquila e natural. Elas nos disseram que a pegada de Águas da Prata é essa mesmo. Tudo calmo, devagar, sem pressa. Tirei a foto durante o dia, para retratar um dos vários macaquinhos que há na praça. É preciso tomar algum cuidado com eles, ladrõezinhos que são.

Mas o que eu achei mais digno de nota é a reverência com que as pessoas lidam com o seu contato com a água proveniente das fontes. Não é nada raro ver indivíduos que se benzem e riscam sinais-da-cruz nos rostos ao se achegar às bicas disponíveis.

A sacralidade atribuída às águas se explica nas grutas dos santos...
... nos avisos aos visitantes...

... nos formatos místicos das pias...


... e nos nomes aplicados às fontes. Esta, por exemplo, é conhecida como Fonte do Padre (sublimem a sujeira, por favor):

E também há o nascedouro da fonte do Vilela...
...acessível por uma trilha que abastece tanto a fonte da praça principal da cidade quanto da gruta que fica no sopé da igreja, bem grandona, como é hábito nestas cidades:

É daí que parte o caminho de Santiago de Compostela brasileiro, uma rota que se dirige para o Santuário de Aparecida, e que se principia nas beiras das águas pratenses, serpenteando a Serra da Mantiqueira por picadas, estradinhas e morros.
A religiosidade sempre esteve fortemente ligada à água, e a usa fartamente em seus rituais e liturgias. Os cristãos, por exemplo, utilizam-na em inúmeras situações, principalmente em ritos que envolvam purificação. Ao batismo, para citar um caso, é atribuído o poder de lavar os pecados. A água benta é uma representação das doações das graças divinas, e por isso mesmo são feitas aspersões para tudo que se queira consagrar a Deus. O Espiritismo usa água como veículo de fluidificação, ou seja, da canalização de energia espiritual para um meio físico. A Umbanda e o Candomblé reservam muitos dos seus ritos para serem realizados em rios e mares, e uma de suas principais divindades, Iemanjá, é chamada de Rainha do Mar. O rio Ganges é considerado sagrado pelos hindus, que cremam seus cadáveres em piras flutuantes para libertá-los do ciclo de reencarnações (roda de Samsara) e da escravidão material. As religiões anímicas da África estabelecem que os mortos devem ser lavados antes dos ritos de sepultamento, o que tem sido um grande problema nas contaminações pelo vírus Ebola.

(Parênteses aqui. Independentemente da racionalidade ou não do ato, imagine o quanto é doloroso para uma pessoa ter que enterrar um ente querido, falecido de maneira trágica e repentina, sem poder aplicar os ritos que acredita serem obrigatórios, e sem ter o conforto de ter realizado todo o possível por aquele que se vai. Por isso mesmo, devemos ter muito cuidado ao analisar as atitudes das pessoas que insistem em levar a cabo essas liturgias. A dor fala muito mais alto que a razão, e não devemos nos apartar da possibilidade de que algo semelhante nos aconteça).
O sentimento de familiaridade e onipresença que temos com a água é tão intenso que ela esteve presente até mesmo na transição do pensamento mítico ao pensamento filosófico. Já falei sobre o tema aqui, mas vou descer um pouco mais no nível dos detalhes. Vale muito a pena.

O mundo grego, berço da Filosofia ocidental, vivia, antes do seu surgimento, imbuído por dois mecanismos mitológicos: aquele mais conhecido, dos deuses olímpicos, e o dos mistérios órficos, que contém muitos elementos que foram absorvidos pelos monoteísmos, como a noção de dualidade corpo-alma, a eternidade desta última, a existência de uma fase temporal para expiação dos erros cometidos em vida e também a introdução do tema da ressurreição, tão caro aos cristãos. Podemos perceber que, mesmo com o desvio proposto pela vertente racional, este modus operandi do pensamento continua a subsistir ainda hoje.
Em Tales, vemos a primeira tentativa conhecida de quebra destes paradigmas. Ele não se deslinda das divindades, mas as integra à própria natureza, e procura investigar de que maneira elas permeiam tudo o que existe. Esse é o exato momento em que o homem deixa de depender de uma intervenção mágica para buscar explicações sobre o mundo e sobre si mesmo circunscritos à realidade observável, ainda que esta reflexão conduza a uma contínua especulação. Mas percebam, meus amiguinhos, que não são mais a tradição oral e os deuses das lacunas que doam sentido à constituição e aos mecanismos universais, mas a observação e a racionalidade aplicadas a este mesmo universo.

Tales, bem como outros filósofos dos primeiros tempos, queria a arché. Pretendo fazer um texto onde mostrarei as diferentes propostas de vários filósofos, porque é tema interessantíssimo e que se encerra em uma conclusão válida até o quotidiano, mas basta saber, neste momento, que esta estranha entidade deveria ser o princípio fundamental de tudo o que existe.
Em primeiro lugar, a arché estaria na origem de todas as coisas, ou seja, do que tudo é feito; de que material são constituídos os sólidos, os líquidos e os gases, o modo como o elemento primordial se reúne e se condensa ou se distende.

Depois, a arché é aquilo que daria sustentação à existência das coisas e dos seres; é aquilo que está sempre presente, sempre persistente e imutável, cujas variações são de ordem física, mas sem a qual não se pode falar em vida. A arché não apenas doa substância ao ser, mas também o plasma e o faz subsistir.
E disso deriva a última característica da arché: sua ausência representa inexistência. Tudo aquilo em que se finda a presença da arché é não-ser. Assim, ela é princípio, existência e fim. Tudo se origina na arché, subsiste na arché e se finda na arché. Ela doa substância ao ser, o mantém existente e recobra a si mesma ao cabo da morte do ser. Tu és pó e ao pó voltarás.

Bonitinhamente explicado, vamos voltar a Tales. Para nosso patriarca, a arché era água. Já falei sobre isso no mencionado texto, mas repito rapidinho: encontramos água com facilidade e em toda parte, como gelo, líquido e vapor. De tudo se extrai umidade, mesmo onde ela é inaparente. A vegetação é sempre mais abundante onde há volumes significativos de água, e com ela, a vida animal. O sangue é elemento líquido e, uma vez escoado, impossibilita-se a vida. Idem para a seiva, nas plantas.
Dessa observação, Tales concebe três raciocínios:

1º - A água é o elemento primordial que permeia tudo e que é essencial à existência de todas as coisas;
2º - A Terra é sustentada fisicamente pela água, ou seja, viveríamos em uma gigantesca ilha. Evidentemente esse pensamento deriva da falta de instrumentação disponível à época, mas é compreensível. A todo lugar que um homem se dirigisse, teria por fim de caminhada a orla marítima, e ao mirar seus olhos no horizonte, não veria nada além de água. Isso dava a impressão de que os limites da Terra sólida estavam sempre circunscritos por oceanos. Esse não era um pensamento originariamente talesiano, mas servia de corolário para reforçar a água como substrato comum a todas as coisas, porque onipresente a qualquer confim que se observe.

3º - Todas as coisas estão permeadas de deuses. Aqui, temos o encontro entre um materialismo com a religiosidade. Tales identifica a arché com a água e esta com os deuses, constituindo, desta forma, um panteísmo (pessoas mais jovens: ocorre um panteísmo justamente quando há a crença de que deuses estão presentes em tudo, desde uma pedrinha até um ser vivo).
É imperioso que levemos em conta que Tales não provoca uma ruptura imediata com a mitologia. Antes disso, ele inicia uma transição. Além do mais, a religião órfica não era um emaranhado enlouquecido oriundo de alguma mente especialmente criativa. Muito pelo contrário, os seus desenvolvedores originaram teses metafísicas sofisticadas. No dualismo corpo-alma, por exemplo, observamos uma explicação para o problema da consciência, que tende a enxergar o pensamento não como uma função orgânica, mas algo que pode expandir sua percepção para além dos limites físicos do corpo, o que parece essencial para explicar os sonhos e o autoconhecimento. Também as noções de eternidade da alma e da reencarnação partem de fenômenos semelhantes àqueles que acontecem quando nos deparamos com coisas ou pessoas que nunca vimos, mas que reconhecemos, ou com situações que parecemos já ter vivenciado. Dejá-vu, manja? Portanto, Tales não parte de uma construção desprovida de sentido, mas procura identificá-la com fenômenos materiais.

E dessa forma podemos concluir o quanto a centralidade empírica da água acaba por se distribuir para a racionalidade e para a espiritualidade, e acabamos por compreender o porquê de tamanha reverência a elemento tão banal, aparentemente banal. Não é à toa. Somos constituídos por 67% de água, mesmo o mais sólido e marombado musculito.
Recomendação de leitura:
Vou de Nietzsche. Em uma de suas obras, ele recupera a importância dos filósofos pré-socráticos para a gênese do pensamento racional, e faz considerações interessantes sobre Tales de Mileto, que, de resto, não deixou nenhum escrito conhecido.

NIETZSCHE, Friedrich. A Filosofia na Idade Trágica dos Gregos. Porto Alegre: L& PM, 2011.