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sábado, 28 de fevereiro de 2015

Sobre os ritos e o Carnaval como fator de identidade do Brasil

Olá!

O Carnaval acabou de acabar, faz coisa de uma semana atrás, quando transcorreram os desfiles de escolas campeãs, e, com isso, se inicia o ano civil propriamente dito, com todas as suas benesses e transtornos. Acompanhei a apuração de São Paulo, onde ganhou a tradicional Vai-vai, e dei uma olhadinha na apuração do Rio de Janeiro, com a vitória polêmica da Beija Flor, que enalteceu a Guiné Equatorial, governada por uma das ditaduras mais antigas da atualidade, sanguinário como de estilo. Bom... Polêmico, o tema Carnaval é por si só. Relembro de um momento, há uns treze ou quatorze anos atrás, quando dois colegas de serviço leitores deste espaço (e cujas identidades preservarei) vieram me levantar um questionamento. Eles perguntaram o que eu achava DE carnaval, mas eu havia compreendido que a pergunta era o que eu achava DO carnaval. Então tasquei a resposta imprudente: “Bom, achei que a escola A desfilou muito bem, merece o título. Já a escola B, cheiro e gosto de marmelada, outras foram bem mais criativas, blá-blá-blá”.
Para que, meninos? Torpedos éticos e econômicos sobre a minha cabeça – “Como assim? Então você é a favor dessa gastança e dessa putaria? Você é tão alienado quanto esse povo, que ama o circo mais que o pão, que passa o ano inteiro juntando migalhas prá despejar em um fim de semana, blá-blá-blá3.

Calma, gente! Minha defesa foi que, primeiro, precisamos segregar do carnaval seus aspectos éticos e estéticos, só isso. E, nesse sentido, os desfiles são lindos, ponto final. Mas eis que, nestes tempos de Facebook, vejo nas redes sociais uma explosão de gente que se posiciona raivosamente contra o carnaval, argumentando sobre a malversação do dinheiro público, imoralidades cometidas em quatro dias que sepultam a santidade dos outros 361 e desperdício de proventos pessoais, onde o gasto com fantasias por pessoas faveladas é uma grande contradição. Como acho que o carnaval não pode ser visto apenas por esse ângulo mal humorado, senti necessidade de marcar minha posição novamente, o que já havia feito em boa parte neste texto aqui, mas ampliarei os detalhes.
O que identifica um povo? O que faz com que ele seja distinguido de todos os demais? Se eu falar da Escócia, pensaremos em gaita de foles e homens de saia; se eu falar da Itália, vamos lembrar-nos da pasta e tarantela; da Suécia, virá o galalau loiro com chapéu de chifre; dos hermanos, churrasco e tango; do Brasil, ora, samba e futebol!

Isso é um mal em si mesmo? Não! Isso significa que todo brasileiro gosta de samba e futebol? Não! Isso é um estereótipo? Sim! Mas causa algum prejuízo? Não necessariamente! É preciso diferenciar coisas que nos diferenciam dos demais de coisas que nos marcam negativamente. Estamos no primeiro caso quando se tratam de são preferências de uma estranha entidade chamada coletividade. As identidades culturais de um povo derivam do todo, não do indivíduo. E é destas identidades que derivam os ritos típicos de cada comunidade, e que, em sua dinâmica, vão constituindo novas nuances desta mesma identidade e a tornando nova também, em um processo de retroalimentação. Mas o que eu quero dizer com isso?
Vamos lá. O que são os ritos? Apesar de remeter à religião, os ritos não se circunscrevem apenas a esta esfera, como bem podemos observar no Direito e em outras áreas. Ritos são sequências de ações estabelecidas para atingir um determinado fim. Essa sequência possui um rigor mais ou menos flexível, dependendo do que se trata, mas que são necessários para que o ato se consume a contento. Para acionar o judiciário, e.g., precisamos contratar um advogado, que vai redigir uma petição, que vai ser assinada por nós, que deverá ser protocolada em um fórum, que vai ser distribuída para uma vara, que vai ser encartada em uma capa, que vai ser encaminhada para um juiz, que vai apreciar a peça inicial, e daí vai convocar as partes envolvidas, e vai realizar uma audiência, e vai publicar uma sentença, e vai ordenar a sua execução, e vai encaminhar os autos para o arquivo. Estes são os passos para fazer uma ação correr (metáfora) pela Justiça, dentre outros possíveis. São ritos, e não são tomados a bel-prazer de ninguém – são todos passos estabelecidos pela lei. Caracterizam este mundo conhecido como judiciário.

Também as diferentes igrejas prescrevem ritos para seus fiéis. Em algumas delas, é obrigatório entrar descalço no templo, em outras é preciso fazer um sinal da cruz, em outras ainda há divisão entre homens e mulheres. Há algumas cujas celebrações são mais significativas aos sábados, outras aos domingos. Há cores específicas para seguir, roupas litúrgicas para vestir, fórmulas devidamente regradas. E isso tudo é, geralmente, bem conhecido e praticado por todos os membros destas assembleias. Dão características próprias a cada uma delas.


Isso significa que os ritos devem ser prescritos formalmente? Não obrigatoriamente. Uma boa parte dos ritos surge de forma espontânea, sem regras bem definidas, e com o passar do tempo e repetições, fica delineado um modo de executar todos os passos necessários para que um determinado objetivo seja atingido. Então temos aqui algo que ultrapassa o ritual e o transforma em uma celebração autêntica: a absorção popular e sua interferência nas suas modificações.

Vou dar um belo exemplo. Existe uma pequena cidade no interior do Ceará, pequena como outras tantas, chamada Nova Olinda, em que acontece a procissão do pau da bandeira. Por ocasião da festa do padroeiro da cidade, São Sebastião, os homens do município vão até a região de mata da cidade, de onde extraem uma árvore e a descascam, para substituir o mastro que retém a bandeira festiva. Para ajudar no transporte do pesado objeto, o sofrimento é amenizado pelo consumo industrial de aguardente. Tudo é altamente ritualizado: a derrubada do mastro velho, as novenas em honra ao santo, o transporte do imenso tronco feito nos ombros, pelos sete quilômetros de sempre, os cantos de acompanhamento e a quantidade inesgotável de cachaça, até a colocação do novo pau de bandeira em seu devido lugar e a consequente festança. O município de Barbalha, da mesma região, realiza festa semelhante, só trocando o padroeiro, desta vez Santo Antonio.
Vejam como o rito, neste caso, nasce de uma regra prescrita, que é a celebração do padroeiro, e de uma necessidade específica, que é a troca do mastro. Mas como uma série de passos é necessária para levar a cabo tal tarefa, a cada vez que se repete, algumas ações são registradas como significativas, e começam a fazer parte do rito. Em um exercício de livre pensamento, imagino que a troca do mastro era necessária para as festividades do padroeiro, deixando-o mais belo, mais apropriado; a distância se explica pela própria localização da mata; o consumo de álcool eu já expliquei – não se trata de um tronquinho de limoeiro, mas de um longo tronco de árvores variadas, mui pesado e desconfortável. Há uma vinculação com uma entidade cujos ritos são altamente regrados e hierarquizados, que é, no caso, a Igreja Católica; mas o rito aqui é ditado pela prática popular, sem manuais, construídos a partir de sua história e de suas necessidades; no limite, de seus anseios. Por isso, a festa não se resume aos seus aspectos sacros – há muito de profano. E de transgressivo, portanto.

Mas vejam só. Podemos discutir a racionalidade de todo esse rito, mas não podemos negar que se trata do que melhor caracteriza culturalmente essas duas cidades, que as fazem únicas. Os gastos com o evento poderiam ser suprimidos e direcionados para causas melhores, mas isso é ilusório. É essa festividade que atrai gente. Sem ela, seriam apenas mais dois municípios encravados na miséria do nosso sertão, e bem mais tristes. Será que valeria a pena?
Pois bem. Em nível nacional, qual é o rito mais espontâneo que tem como berço a cultura popular? As celebrações cívicas certamente não são, como já discorri no meu texto retro citado. As religiosas também tem alcance limitado, principalmente nos grandes centros urbanos, o que impossibilita dar alcance para todo o território. Resta mesmo o Carnaval, uma comemoração que agrupa um todo através das somas das diversidades. Cada região tem seu modo de comemorá-lo, seja com desfiles, com frevos, com bailes, com trios elétricos, corsos, cordões, batalha de água, com tudo isso junto ou de modo ainda mais particular, tudo sob um mesmo nome. Também tem apelo até mesmo nas classes mais altas: para quem não sabe, uma das maiores tradições são os desfiles de fantasia do Hotel Glória, no Rio de Janeiro. É bem verdade que se trata de um dos últimos remanescentes desta modalidade, mas ela é cercada de luxo por todos os lados.

Enfim, é possível perceber que o Carnaval se espraia e se ajusta a todas as realidades possíveis no Brasil. Só no futebol vemos coisa semelhante. Não vemos isso nos setes-de-setembro, nos quinzes-de-novembro ou nos primeiros-de-maio. Se o brasileiro celebra muito pouco, tolher sua liberdade de celebrar o carnaval significa remover muito de sua identidade cultural.
Dizem que o governo gasta muito para promovê-lo. Li que a prefeitura de São Paulo gasta mais de R$ 10.000.000,00 só com o desfile de escolas de samba. Acho que não é verdade, deve ser bem mais. Só tem um detalhe: quem proclama esse tipo de informação, esquece-se do retorno da bilheteria, em primeiro lugar; depois, é preciso conseguir medir tudo o que se arrecada de impostos por conta do incremento no turismo, que faz girar essa roda econômica. Perguntem para o pessoal da Ladeira Porto Geral se eles não gostam do Carnaval... No final das contas, temos um número que assusta, mas que é falacioso. Se eu gasto R$ 5.000,00 em uma festa de aniversário, parece que terei um grande prejuízo; mas se recebo presentes no valor de R$ 4.000,00, meu resultado financeiro é outro, pois não? Olhar para o que o poder público gasta é muito importante, mas é algo que não pode ser feito isoladamente.

Há também a reclamação dos que dizem que o brasileiro vive em um mar de lama e não se importa com nada, porque o carnaval é uma ferramenta de alienação que cega todo aquele que dele participa. Quem me dera fosse tão simples trabalhar a conscientização do povo, que deve ser diária, e não em um evento de quatro dias. É verdade que o brasileiro, em média, lê menos do que devia, participa politicamente menos do que devia, se informa menos do que devia, mas campanhas raivosas tendem a ser mais alienantes do que o próprio evento que combate. Chega um ponto que a reclamação é tão constante e irracional que acaba depondo contra a causa defendida. É a história da vizinha faladeira que fala mal de todo mundo – no começo, você a escuta; depois, põe em dúvida; por fim, despreza o que ela fala. Começa a achar que sua reclamação não se dá por conta de sua moral ilibada, mas por sua impossibilidade de praticar o mesmo que critica com tanta veemência. A boca fala daquilo que o coração está cheio.
E, no final das contas, vamos ser sinceros. Todo este bate-boca não é uma inútil caceteação com as escolhas privadas de cada indivíduo? Não parece aquela história dos impotentes que criticam a cópula alheia? Para uma pessoa qualquer, o Carnaval pode ter a mesma importância que o Natal tem para um cristão, o Yom Kippur para um judeu e assim sucessivamente. O Carnaval pode ser a justificação do ano para o cidadão. Ele se mantém o ano inteiro no sacrifício para ser rei por quatro dias. NÃO ESTOU DIZENDO QUE CONCORDO COM ESSA ATITUDE, mas a compreendo, e não tenho nada com isso. Eu mesmo não saio às ruas para pular, não vou aos bailes para dançar, não vou às escolas para desfilar, nem mesmo aproveito o feriado para viajar. Limito-me a observar os aspectos estéticos e vejo que eles são lindos, como os enredos são complexos e criativamente desenvolvidos, e com isso não fico amargurado, e observo detalhes positivos e constitutivos daquilo que chamamos de brasilidade, e chego a perceber, por exemplo, o quanto somos descuidados com nossa memória – a primeira escola de samba da cidade de São Paulo, a Lavapés, vive à míngua, da boa vontade de seus remanescentes. Deveria ser considerado um patrimônio histórico e cultural, mas provavelmente muito de sua memória se perdeu. É tratada da mesma forma que o castelinho da rua Apa, que a vila Itororó... A história existe, gostando ou não dela. Preservá-la é prova de que gostamos do nosso país.

Taí o toque mágico: ao posar de patriotas, os detratores do carnaval, que tanto amam o Brasil e o querem pujante, se opõe exatamente ao que melhor caracteriza o país, formando um paradoxo irresolvível. No fundo, isso tem toda a pinta de uma moralidade torta, mas esse é assunto para outro momento.

Recomendação de leitura:
Recomendo o bom livro abaixo para quem quiser ter um visão bastante rica sobre o Carnaval, que vai além das fronteiras da dicotomia festa-abuso.

QUEIROZ, Maria Isaura. Carnaval brasileiro: o vívido e o mito. São Paulo: Brasiliense, 1982

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