O Carnaval acabou de acabar, faz coisa de uma semana atrás,
quando transcorreram os desfiles de escolas campeãs, e, com isso, se inicia o
ano civil propriamente dito, com todas as suas benesses e transtornos.
Acompanhei a apuração de São Paulo, onde ganhou a tradicional Vai-vai, e dei
uma olhadinha na apuração do Rio de Janeiro, com a vitória polêmica da Beija
Flor, que enalteceu a Guiné Equatorial, governada por uma das ditaduras mais
antigas da atualidade, sanguinário como de estilo. Bom... Polêmico, o tema
Carnaval é por si só. Relembro de um momento, há uns treze ou quatorze anos
atrás, quando dois colegas de serviço leitores deste espaço (e cujas
identidades preservarei) vieram me levantar um questionamento. Eles perguntaram
o que eu achava DE carnaval, mas eu havia compreendido que a pergunta era o que
eu achava DO carnaval. Então tasquei a resposta imprudente: “Bom, achei que a
escola A desfilou muito bem, merece o título. Já a escola B, cheiro e gosto de
marmelada, outras foram bem mais criativas, blá-blá-blá”.
Para que, meninos? Torpedos éticos e econômicos sobre a
minha cabeça – “Como assim? Então você é a favor dessa gastança e dessa
putaria? Você é tão alienado quanto esse povo, que ama o circo mais que o pão,
que passa o ano inteiro juntando migalhas prá despejar em um fim de semana,
blá-blá-blá3.
Calma, gente! Minha defesa foi que, primeiro, precisamos
segregar do carnaval seus aspectos éticos e estéticos, só isso. E, nesse
sentido, os desfiles são lindos, ponto final. Mas eis que, nestes tempos de Facebook,
vejo nas redes sociais uma explosão de gente que se posiciona raivosamente
contra o carnaval, argumentando sobre a malversação do dinheiro público,
imoralidades cometidas em quatro dias que sepultam a santidade dos outros 361 e
desperdício de proventos pessoais, onde o gasto com fantasias por pessoas
faveladas é uma grande contradição. Como acho que o carnaval não pode ser visto
apenas por esse ângulo mal humorado, senti necessidade de marcar minha posição
novamente, o que já havia feito em boa parte neste texto aqui, mas
ampliarei os detalhes.
O que identifica um povo? O que faz com que ele seja
distinguido de todos os demais? Se eu falar da Escócia, pensaremos em gaita de
foles e homens de saia; se eu falar da Itália, vamos lembrar-nos da pasta e tarantela; da Suécia, virá o
galalau loiro com chapéu de chifre; dos hermanos,
churrasco e tango; do Brasil, ora, samba e futebol!
Isso é um mal em si mesmo? Não! Isso significa que todo
brasileiro gosta de samba e futebol? Não! Isso é um estereótipo? Sim! Mas causa
algum prejuízo? Não necessariamente! É preciso diferenciar coisas que nos
diferenciam dos demais de coisas que nos marcam negativamente. Estamos no
primeiro caso quando se tratam de são preferências de uma estranha entidade
chamada coletividade. As identidades culturais de um povo derivam do todo, não
do indivíduo. E é destas identidades que derivam os ritos típicos de cada
comunidade, e que, em sua dinâmica, vão constituindo novas nuances desta mesma identidade
e a tornando nova também, em um processo de retroalimentação. Mas o que eu quero
dizer com isso?
Vamos lá. O que são os ritos? Apesar de remeter à religião,
os ritos não se circunscrevem apenas a esta esfera, como bem podemos observar
no Direito e em outras áreas. Ritos são sequências de ações estabelecidas para
atingir um determinado fim. Essa sequência possui um rigor mais ou menos
flexível, dependendo do que se trata, mas que são necessários para que o ato se
consume a contento. Para acionar o judiciário, e.g., precisamos contratar um
advogado, que vai redigir uma petição, que vai ser assinada por nós, que deverá
ser protocolada em um fórum, que vai ser distribuída para uma vara, que vai ser
encartada em uma capa, que vai ser encaminhada para um juiz, que vai apreciar a
peça inicial, e daí vai convocar as partes envolvidas, e vai realizar uma
audiência, e vai publicar uma sentença, e vai ordenar a sua execução, e vai
encaminhar os autos para o arquivo. Estes são os passos para fazer uma ação
correr (metáfora) pela Justiça, dentre outros possíveis. São ritos, e não são
tomados a bel-prazer de ninguém – são todos passos estabelecidos pela lei.
Caracterizam este mundo conhecido como judiciário.
Também as diferentes igrejas prescrevem ritos para seus
fiéis. Em algumas delas, é obrigatório entrar descalço no templo, em outras é
preciso fazer um sinal da cruz, em outras ainda há divisão entre homens e
mulheres. Há algumas cujas celebrações são mais significativas aos sábados,
outras aos domingos. Há cores específicas para seguir, roupas litúrgicas para
vestir, fórmulas devidamente regradas. E isso tudo é, geralmente, bem conhecido
e praticado por todos os membros destas assembleias. Dão características
próprias a cada uma delas.
Isso significa que os ritos devem ser prescritos formalmente? Não obrigatoriamente. Uma boa parte dos ritos surge de forma espontânea, sem regras bem definidas, e com o passar do tempo e repetições, fica delineado um modo de executar todos os passos necessários para que um determinado objetivo seja atingido. Então temos aqui algo que ultrapassa o ritual e o transforma em uma celebração autêntica: a absorção popular e sua interferência nas suas modificações.
Vou dar um belo exemplo. Existe uma pequena cidade no
interior do Ceará, pequena como outras tantas, chamada Nova Olinda, em que
acontece a procissão do pau da bandeira. Por ocasião da festa do padroeiro da
cidade, São Sebastião, os homens do município vão até a região de mata da
cidade, de onde extraem uma árvore e a descascam, para substituir o mastro que
retém a bandeira festiva. Para ajudar no transporte do pesado objeto, o
sofrimento é amenizado pelo consumo industrial de aguardente. Tudo é altamente
ritualizado: a derrubada do mastro velho, as novenas em honra ao santo, o
transporte do imenso tronco feito nos ombros, pelos sete quilômetros de sempre,
os cantos de acompanhamento e a quantidade inesgotável de cachaça, até a
colocação do novo pau de bandeira em seu devido lugar e a consequente festança.
O município de Barbalha, da mesma região, realiza festa semelhante, só trocando
o padroeiro, desta vez Santo Antonio.
Vejam como o rito, neste caso, nasce de uma regra prescrita,
que é a celebração do padroeiro, e de uma necessidade específica, que é a troca
do mastro. Mas como uma série de passos é necessária para levar a cabo tal
tarefa, a cada vez que se repete, algumas ações são registradas como
significativas, e começam a fazer parte do rito. Em um exercício de livre
pensamento, imagino que a troca do mastro era necessária para as festividades
do padroeiro, deixando-o mais belo, mais apropriado; a distância se explica
pela própria localização da mata; o consumo de álcool eu já expliquei – não se
trata de um tronquinho de limoeiro, mas de um longo tronco de árvores variadas,
mui pesado e desconfortável. Há uma vinculação com uma entidade cujos ritos são
altamente regrados e hierarquizados, que é, no caso, a Igreja Católica; mas o
rito aqui é ditado pela prática popular, sem manuais, construídos a partir de
sua história e de suas necessidades; no limite, de seus anseios. Por isso, a
festa não se resume aos seus aspectos sacros – há muito de profano. E de
transgressivo, portanto.
Mas vejam só. Podemos discutir a racionalidade de todo esse
rito, mas não podemos negar que se trata do que melhor caracteriza culturalmente
essas duas cidades, que as fazem únicas. Os gastos com o evento poderiam ser
suprimidos e direcionados para causas melhores, mas isso é ilusório. É essa
festividade que atrai gente. Sem ela, seriam apenas mais dois municípios
encravados na miséria do nosso sertão, e bem mais tristes. Será que valeria a
pena?
Pois bem. Em nível nacional, qual é o rito mais espontâneo
que tem como berço a cultura popular? As celebrações cívicas certamente não
são, como já discorri no meu texto retro citado. As religiosas também tem
alcance limitado, principalmente nos grandes centros urbanos, o que
impossibilita dar alcance para todo o território. Resta mesmo o Carnaval, uma
comemoração que agrupa um todo através das somas das diversidades. Cada região
tem seu modo de comemorá-lo, seja com desfiles, com frevos, com bailes, com
trios elétricos, corsos, cordões, batalha de água, com tudo isso junto ou de
modo ainda mais particular, tudo sob um mesmo nome. Também tem apelo até mesmo
nas classes mais altas: para quem não sabe, uma das maiores tradições são os
desfiles de fantasia do Hotel Glória, no Rio de Janeiro. É bem verdade que se
trata de um dos últimos remanescentes desta modalidade, mas ela é cercada de
luxo por todos os lados.
Enfim, é possível perceber que o Carnaval se espraia e se
ajusta a todas as realidades possíveis no Brasil. Só no futebol vemos coisa
semelhante. Não vemos isso nos setes-de-setembro, nos quinzes-de-novembro ou
nos primeiros-de-maio. Se o brasileiro celebra muito pouco, tolher sua
liberdade de celebrar o carnaval significa remover muito de sua identidade
cultural.
Dizem que o governo gasta muito para promovê-lo. Li que a
prefeitura de São Paulo gasta mais de R$ 10.000.000,00 só com o desfile de
escolas de samba. Acho que não é verdade, deve ser bem mais. Só tem um detalhe:
quem proclama esse tipo de informação, esquece-se do retorno da bilheteria, em
primeiro lugar; depois, é preciso conseguir medir tudo o que se arrecada de
impostos por conta do incremento no turismo, que faz girar essa roda econômica.
Perguntem para o pessoal da Ladeira Porto Geral se eles não gostam do
Carnaval... No final das contas, temos um número que assusta, mas que é
falacioso. Se eu gasto R$ 5.000,00 em uma festa de aniversário, parece que
terei um grande prejuízo; mas se recebo presentes no valor de R$ 4.000,00, meu
resultado financeiro é outro, pois não? Olhar para o que o poder público gasta
é muito importante, mas é algo que não pode ser feito isoladamente.
Há também a reclamação dos que dizem que o brasileiro vive
em um mar de lama e não se importa com nada, porque o carnaval é uma ferramenta
de alienação que cega todo aquele que dele participa. Quem me dera fosse tão
simples trabalhar a conscientização do povo, que deve ser diária, e não em um
evento de quatro dias. É verdade que o brasileiro, em média, lê menos do que
devia, participa politicamente menos do que devia, se informa menos do que
devia, mas campanhas raivosas tendem a ser mais alienantes do que o próprio
evento que combate. Chega um ponto que a reclamação é tão constante e
irracional que acaba depondo contra a causa defendida. É a história da vizinha
faladeira que fala mal de todo mundo – no começo, você a escuta; depois, põe em
dúvida; por fim, despreza o que ela fala. Começa a achar que sua reclamação não
se dá por conta de sua moral ilibada, mas por sua impossibilidade de praticar o
mesmo que critica com tanta veemência. A boca fala daquilo que o coração está
cheio.
E, no final das contas, vamos ser sinceros. Todo este
bate-boca não é uma inútil caceteação com as escolhas privadas de cada
indivíduo? Não parece aquela história dos impotentes que criticam a cópula alheia?
Para uma pessoa qualquer, o Carnaval pode ter a mesma importância que o Natal
tem para um cristão, o Yom Kippur para um judeu e assim sucessivamente. O
Carnaval pode ser a justificação do ano para o cidadão. Ele se mantém o ano
inteiro no sacrifício para ser rei por quatro dias. NÃO ESTOU DIZENDO QUE
CONCORDO COM ESSA ATITUDE, mas a compreendo, e não tenho nada com isso. Eu
mesmo não saio às ruas para pular, não vou aos bailes para dançar, não vou às
escolas para desfilar, nem mesmo aproveito o feriado para viajar. Limito-me a
observar os aspectos estéticos e vejo que eles são lindos, como os enredos são
complexos e criativamente desenvolvidos, e com isso não fico amargurado, e
observo detalhes positivos e constitutivos daquilo que chamamos de brasilidade,
e chego a perceber, por exemplo, o quanto somos descuidados com nossa memória –
a primeira escola de samba da cidade de São Paulo, a Lavapés, vive à míngua, da
boa vontade de seus remanescentes. Deveria ser considerado um patrimônio
histórico e cultural, mas provavelmente muito de sua memória se perdeu. É
tratada da mesma forma que o castelinho da rua Apa, que a vila Itororó... A
história existe, gostando ou não dela. Preservá-la é prova de que gostamos do
nosso país.
Taí o toque mágico: ao posar de patriotas, os detratores do
carnaval, que tanto amam o Brasil e o querem pujante, se opõe exatamente ao que
melhor caracteriza o país, formando um paradoxo irresolvível. No fundo, isso
tem toda a pinta de uma moralidade torta, mas esse é assunto para outro momento.
Recomendação de leitura:
Recomendo o bom livro abaixo para quem quiser ter um visão
bastante rica sobre o Carnaval, que vai além das fronteiras da dicotomia festa-abuso.
QUEIROZ, Maria Isaura. Carnaval
brasileiro: o vívido e o mito. São Paulo: Brasiliense, 1982
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