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quarta-feira, 7 de maio de 2025

O café filosófico do quotidiano – tudo o que sabemos vem do universo ao nosso redor

(Como aprendemos o que sabemos? Nascemos com algo ou pegamos tudo do mundo?)

“Suponhamos, pois, que a mente é, como dissemos, um papel em branco, desprovida de todos os caracteres, sem nenhuma ideia; como ela será suprida? (...) A isso respondo, numa palavra: da experiência. Todo nosso conhecimento está nela fundado, e dela deriva fundamentalmente o próprio conhecimento”

John Locke

Olá!

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Eu não posso dizer que sou dos mais renomados utilizadores das benesses digitais disponibilizadas contemporaneamente. Mesmo sendo um cara de TI, faz muito tempo que não desenvolvo, e trabalho mais com a parte de requisitos, como já andei falando por aqui. Ah, eu não trabalho mais com ensino? Não, eu preciso comer.

Voltando ao assunto, se comparado a qualquer pessoa de menos de 40 anos, meu celular fica muito mais quieto do que os da rapaziada. Eles fazem tudo pelo celular, e eu até hoje não confio de ter a conta do banco, que está em um outro aparelho, quietinho em casa, por pura obrigação. Mas não sou tão dinossauro assim, e uso algumas coisas que a pandemia me ensinou/obrigou. São os aplicativos de compras, aqueles mais clássicos, vocês sabem quais.

É preciso resiliência para não sucumbir às ofertas. O que tem de badulaques interessantes é uma grandeza. Pesquisei por pratos de bateria e parecia que eu estava em uma forjaria de bronze. E aí você compra uma coisa, lembra que precisa trocar os feltros, aparece umas baquetas black fiber, e mais outra, e mais outra… quando você vê acontecem dois fenômenos: você compra um gongo que vai usar em uma única pancada de uma única música, e seu cartão vai para a caixa-prego. São maldições do capitalismo, contra os quais precisamos levantar todos os nossos sortilégios.

Mas há quinquilharias que não comprometem de forma tão radical o nosso orçamento. São porcarias que a gente compra meio que na base do “serviu, serviu; não serviu, lixo”. E às vezes se revelam verdadeira e surpreendentemente úteis, mesmo que não cumpram o que prometem.

Foi mais ou menos isso que aconteceu quando eu estava pesquisando por métodos de café, na esperança de achar alguma oportunidade boa e barata. Entre inúmeros repetecos, vi um objeto que em nada lembrava uma cafeteira, parecendo mais um infusor de chá, com a promessa de ser prática e eficiente para extrair doses individuais de café. Olhei com o bico retorcido típico das minhas desconfianças, mas estava tão barato e com frete grátis que resolvi encarar. É essa peça aqui:

A pecinha, autodenominada prensa manual para café, se chama Mimo Style e vaticina combinar três mundos: a praticidade de um infusor pequeno, o aproveitamento maximizado de uma prensa e a suavidade de um coador. A combinação vem do fato de possuir uma mola que espreme o café quando pronto, para arrancar o máximo do pó.

O esquema consiste em colocar pó no pequeno recipiente composto de telas filtrantes e depositá-lo na água fervente. A quantidade de pó que cabe nele só é suficiente para uma xícara pequena.


No final das contas, realmente funciona, mas há um problema: para cafés coados, eu prefiro quantidades maiores. Pequeninos assim, só os espressi, mas aí o pequeno utensílio não chega. Muito melhor quando usado para infundir cáscara, o saboroso subproduto do processo de descascamento do café, com suave sabor de amendoim.


 

Nome do utensílio: Prensa manual

Tipo de técnica: Infusão 

Dificuldade: Baixa

Espessura do pó: Média

Dinâmica: É inserido pó na cápsula do recipiente filtrante, para ser fechado o sistema e inserido em uma xícara contendo água fervente. Mantém-se até que a extração esteja satisfatória, quando então o método é retirado e prensado com o êmbolo

Resíduos: Baixos

Temperatura de saída: Média

Nível de ritual: baixo/médio

Bom… não havia outra opção possível para saber se a bugiganga poderia surpreender. Eu poderia pressupor, mas saber, de fato, só tendo uma a meu alcance. Como não vejo esse método em cafeterias, dei meu jeito, apelando para a modernidade. É experimentando que conhecemos.

Essa é uma frase que os antigos empiristas fariam coro, fácil. No final das contas, é a perfeita síntese do que eles pensavam. Mas o que são eles? Já falei muitas vezes sobre o embate racionalistas vs empiristas neste espaço, mas não custa relembrar rapidinho. Os empiristas são pensadores que se opunham à ideia de que o conhecimento já estava internalizado no ser humano, esperando a ocasião de ser despertado, como queriam os racionalistas. Por entender que o conhecimento era algo inerente ao ser humano, forçosamente as ideias teriam de ser inatas, ou seja, nascidas junto com cada indivíduo.

Os empiristas se opunham radicalmente ao conhecimento preexistente. No fundo, entendiam que o princípio geral do inatismo tinha uma base religiosa, onde o conhecimento era uma doação de uma via externa, como o hiperurânio platônico ou o mundo das ideias divinas agostiniano. Para eles, a única fonte do conhecimento era oriunda dos sentidos, que, uma vez colocados à disposição do cérebro, podiam ser por ele processados. Muito se disse antes sobre o universo como a fonte do conhecimento e dos sentidos como sua via de entrada, mas o debate aberto sobre sua fonte vem mais tarde, e é aqui que vamos falar sobre um dos mais célebres membros do movimento empirista, John Locke.

É quase indissociável seu pensamento dos demais contratualistas*, tanto que é plenamente possível fazer comparações diretas com Hobbes e Rousseau, como fiz aqui. Dentre estes, é o que tem ideias mais sólidas sobre o processo de conhecimento oriundo da experiência.

Antes de estabelecer como é sua tese sobre o conhecimento, Locke tece pesadas críticas sobre a base racionalista. Seu questionamento já vem de sua própria linha empirista: pensavam os racionalistas que havia uma espécie de acordo universal a quem toda a humanidade assentia, como se fosse uma base epistêmica comum a todos os homens, e como se estivessem para o conhecimento como os axiomas estão para a ciência. Entretanto, se o conhecimento é inato, por qual motivo este acordo universal não está aparente nas crianças, nem em pessoas com algum tipo de transtorno mental? Ideias genéricas, como fome e frio, não estão impressas na alma, porque elas só surgem enquanto sensação, ou seja, um impulso advindo de um fator vindo de fora: a falta de comida ou de agasalho. É um aprendizado que pode ter um início ainda muito remoto, mesmo no ventre, mas não que esteja gravado na alma. Em qualquer circunstância, o feto conhece através dos seus sentidos; ele recebe alguma forma de estímulo e registra essa sensação, agradável ou não. Em resumo, crianças e tolos possuem alma, e, por conseguinte, possuem mente**. Se as impressões preexistentes pensadas pelos racionalistas fossem reais, não faz sentido que não existam neles, segundo Locke.

Outra questão que leva Locke a desconfiar do inatismo é a diversidade de respostas que os diferentes povos dão a um mesmo problema. Peguemos o exemplo deus. Em todos os lugares do mundo, existe uma forma de religiosidade. Ponto para o inatismo. Só que, entretanto, cada um desses povos traz uma resposta diferente para a mesma colocação. Há povos que adoram muitos deuses, outros possuem uma hierarquia divina, onde um deus está no alto de um séquito também divinizado, mas subalternos ao deus maior. Outra maneira de ver a religião inclui um deus único, e há ainda aqueles que não centralizam a transcendência em uma divindade, embora exista algo de metafísico***. Se o conhecimento de deus viesse inatamente, não haveria motivo para tantas concepções diferentes. Basicamente, cada povo tem ao menos uma forma de ver a divindade, totalmente própria, e isso depõe contra as ideias inatas****.

Locke vai além, utilizando os próprios princípios inatos para fazer contraposições. Se as ideias estão já presentes na mente de um ser humano, é preciso que ela preexista de alguma forma, senão não haveria como plasmá-las nas demais mentes. Será que temos algum lugar platônico onde as ideias estão todas armazenadas? É preciso lembrar que essa noção platônica não fazia parte nem dos postulados racionalistas, mas parece incoerente que haja verdades gravadas na mente que não são percebidas imediatamente como tal.

Óbvio que os racionalistas rebatem as declarações de Locke, justificando que as ideias inatas não representam soluções unívocas, já que cada comunidade as adaptaria às suas necessidades em particular, ao que nosso intrépido inglês retruca dizendo não ser prova do inatismo, vez que as diferentes soluções dadas são somente as provas de que as necessidades existem e são resolvidas de formas diversas, principalmente porque cada comunidade tem justamente uma experiência distinta do problema enfrentado. Comprovação disso vem da variedade de princípios morais que são absolutamente distintos em diferentes partes do mundo. De fato, os sacrifícios são repelidos em lugares vizinhos de onde eles são de rigor. Se houvesse princípios inatos universais, não haveria motivo para tanto.

Locke concorda, entretanto, que há, sim, algo que é efetivamente inato: a capacidade de articular conteúdos em raciocínios. Essa característica é inerentemente humana, e nos constitui como tais. Mas essa capacidade de articulação não é, ela mesma, os conteúdos com os quais ela lida. Sem eles, o raciocínio não tem ingredientes para assar seu bolo.

Se não há nenhum conteúdo pré-impresso, então como se forma o conhecimento na mente humana? É aqui que Locke vai chegar à sua mais célebre doutrina: a tabula rasa. Sempre tratamos desse conceito quando falamos de empirismo, e ele se resume no seguinte: a mente é um papel em branco, que é preenchido pelas mãos dos sentidos através da observação do universo, como se burilasse uma placa de argila. Eles ficam lá, prontos para serem utilizados quando requeridos. Apesar disso, as fontes do conhecimento não se limitam aos sentidos, mas também às operações mentais. Isso é mais facilmente perceptível quando o processo abstrato se instaura. Vemos à nossa frente objetos que não tem existência real, mas que, na opinião dos empiristas, não tem como ser desenvolvido sem que haja uma sensação anterior. Isso acontece, para dar um exemplo, na ideia de aceleração. Não conseguiríamos abstrair uma fórmula que a descrevesse se não observarmos objetos em estado acelerado, porque nem mesmo formaríamos essa noção.

As primeiras coisas que são apreendidas são as ideias mais difusas, como as cores, as luminosidades, as dicotomias cheio-vazio, quente-frio, alto-baixo, que vão dar parâmetros básicos para a construção de ideias mais rebuscadas, mais sofisticadas. Afinal de contas, não há como dizer que fulano é mais alto que sicrano se não houver antes uma ideia mais fundamental do que seriam essas qualidades.

A complexidade das ideias aumenta, portanto, na medida em que ideias simples se conjugam de forma a darem novas funções a si mesmas. Ou seja, a ideia é como um átomo do pensamento. Os processos cognitivos se dão pela contemplação, que é quando o objeto está presente e há interação direta, ou pela memória, quando os conteúdos são resgatados do acervo mental. Esse trânsito de inúmeras sensações simples permite que ideias complexas se formem. Por exemplo, para se ter uma ideia de infinitude, é preciso primeiro passar por experiências de duração, que, por sua vez, são percebidas através das ideias mais simples de tempo, colhidas da experiência pela observação da velocidade das transformações.

O grande fundamento do empirismo como um todo, e de Locke em particular, está, portanto, no fato de que o conhecimento não é uma estrutura universal, aplicável igualmente a qualquer lugar e momento, mas dependente da percepção individual. Sendo assim, todas as vezes que observamos um objeto, extraímos dele informações que são parciais de sua essência. Essas são essências nominais, porque dizem respeito a ESSE cachorro, a ESSA planta, a ESSE texto, e não à universalidade desses mesmos objetos, embora contenham em si as características que sejam comuns a todos eles. A essência nominal é construída a partir das ideias formadas a partir das sensações que temos dos vários componentes do universo, enquanto a essência real seria a sua natureza intrínseca. Daí que, entre ambas, podem ser encontradas diferenças em função da experiência de quem os observa.

Desta forma, para universalizar os juízos, e reconhecendo que as essências reais das coisas não são perceptíveis ao intelecto, mas apenas as essências nominais extraídas de cada objeto individual, é necessário que haja o compartilhamento de ideias e conceitos, através da comunicação e da educação. O ser humano é caracterizado pelo compartilhamento de vários elementos, como os produtos do trabalho, dos espaços públicos, da terra, dentre outros. Deve compartilhar também os conhecimentos individuais para enriquecer o patrimônio intelectivo humano, porque é da depuração das experiências através dos pontos em comum que é possível obter algo que se aproxime o máximo possível do que seria essa tal de essência real. 

O que podemos concluir é que eu precisava de experiência individual para determinar se faz sentido usar este pequeno utensílio para extrair um café minimamente competente, bem mais do que se fiar unicamente na minha intuição. E, neste sentido, valeu a experiência. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Não tenho como deixar de novamente indicar a obra em que Locke discorre sobre tudo o que foi discutido aqui.

LOCKE, John. Ensaio Acerca do Entendimento Humano. São Paulo: Nova Cultural, 1999.

 

*São os filósofos modernos que exploraram o conceito de contrato social, ou seja, o acordo de convívio entre os seres humanos.

**Locke era cristão e, portanto, fazia identificação entre mente e alma.

***Budistas, de certa forma, são enquadrados nesta categoria. Vide este texto.

****Obviamente Locke não conhecia os ateus pirahãs, dado ao fato de ser um povo praticamente oculto até pouco tempo atrás. Para saber mais, leiam este post.

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