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segunda-feira, 14 de abril de 2025

Pequeno guia das grandes falácias – 73º tomo: o termo médio não distribuído

(Vamos falar em como éramos na juventude, e como prenunciávamos tempos que estavam por vir. E de falácias também)

“E agora minhas mãos amarguradas 

Embalam cacos de vidro

Do que era tudo

Todas as imagens foram

Todas banhadas em preto

Tatuando tudo”

Eddie Vedder/Stone Gossard

Olá!

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Mudanças sempre implicam em revisitação. Neste exato momento estou na enésima mudança de andar no serviço, o que é sempre um aborrecimento, principalmente quando nossa hierarquia superior entende que esse é assunto da mais elevada importância. E lá se vai às gavetas e aos armários remover velharias e inutilidades que nosso instinto de esquilo insiste em preservar. Mas eu também fiz uma curiosa meia mudança de casa, e agora tenho a base Metrópole e a base Vale do Paraíba. E, com isso, abrimos caixas e encontramos velhas fotos. Inclusive de infância e juventude, aquele estado intermediário entre a inocência e a rabugice. Lá estavam os tempos do eu-magrinho, tão sonhador e cheio de vontades, em oposição completa aos dias de hoje.

Das fotos que achei, vi meu baixo e minha bateria, minha pose diante do microfone, seja em pé ou sentado, as caretas nas horas dos gritos. Deve até estar chato de tanto que repito, mas eu aprendi alguns acordes e alguns grooves na minha juventude e, por causa disso, resolvi que ia ser músico, um sonho mais ou menos comum naquela década de 80 que viu explodir tantas bandas por estas bandas.


Mas o que eu tocava não era muito semelhante às músicas de então, descendentes do punk e do new wave. Tocava coisas muito mais puxadas para o hard rock dos anos setenta, com efeitos limitados nas guitarras e muitos buracos nas peles das baterias, fruto da muita vontade e da pouca verba. O importante era montar um bom riff e escrever algo que se considerasse poético. Talvez uma referência para o meu som seja o REO Speedwagon dos primeiros tempos, que tinha o ótimo Larry Luttrell no lugar do insosso Kevin Cronin nos vocais. O hard boogie das meninas do Fanny talvez também lembre um pouco o que eu fazia. Com menos talento, porém.

Isso me deslocava um pouco da grande massa juvenil da época. A turma da new wave era colorida com gosto, cheios de amarelos marca-texto, verde-limão e laranjas que faziam um copo de Tang morrer de inveja. Já os metaleiros eram aquilo de sempre: camisetas pretas das bandas favoritas, pulseiras de tachas, coturnos, jeans e couro. Mais adiante, com a corrente do Glam Metal, vieram os cabelos mega-armados, as calças agarradas, a androginia, os brincos e etc. Eu não fazia nenhum desses estilos. Aliás, eu não fazia estilo algum. Sim, é verdade que eu tinha minhas camisetas de bandas, mas como nunca tive rabo preso, a camiseta podia ser tanto do Pink Floyd quanto do Voivod. Meu estilo eram as velhas camisetas usadas até o limite do mau gosto, os tênis “foruáiti”, os velhos e surrados jeans já desbeiçados. Tudo usado até o limite da mendicância. Algumas vezes além dela.

Não era o tempo dos Balenciagas artificialmente descolados. Era tempo de economizar no que era possível para sobrar para outras coisas. Eu tinha cordas e peles para comprar, não dava para ter os calçados do momento, e nem tempo de ficar babando nas lojas do Brás, já então um destino comercial do Brasil inteiro.

O descolamento ficava ainda mais claro quando eu ia tocar para algum público, em um bar, um festival, um clube ou outra coisa qualquer. Enquanto a maioria da galera da música tinha guarda-roupa todo próprio (por vezes maquiagem também), a roupa que eu usava para ensaiar era a mesma que eu usava para tocar, que era a mesma que eu usava para ir à escola, e era a mesma que ia para o trabalho. Eram tempos em que o salário de eu-rapazola ia integral para o orçamento doméstico, e as escolhas de gastos tinham balizas muito bem delimitadas. A gandola de general era a mesma no ensaio e no show, o cap confederado era o mesmo também. Assim era com a camisa de flanela e com a calça rasgada, muitas vezes remendadas com patches da banda favorita. O tênis sujo era o que eu usava quando tocava baixo, e os pés descalços ficavam assim para o ensaio da bateria e para o show também, dependendo da minha função naquele dia. O cabelão não era hidratado, naturalmente armado pela genética, sem brilho e eventualmente amarrado. Um cavanhaquezinho eventual completava o visual.

Fazendo essa descrição, parece que estou falando sobre uma corrente que veio logo no começo da década seguinte: os grunges, que se caracterizavam exatamente por causa dessa indumentária despojada. Eu posso arrogantemente me colocar como uma prefiguração dessa moda? Inicialmente, eu humildemente diria que não, mas, se eu parar para pensar, faz algum sentido essa afirmação. Evidentemente, não é o caso da rapaziada de Seattle ter visto fotos minhas e ter dito “é isso!”. Só que é válido imaginar que as agruras que passamos foram parecidas, e isso nos aproximou, de certa forma.

O caso mais emblemático é o das camisas de flanela. Por que eu as usava? Em primeiro lugar, são relativamente baratas, se observada sua flexibilidade. Ao contrário de uma camisa de microfibra ou poliéster, a flanela é mais quente, o que, em uma cidade com variações bruscas de temperatura como São Paulo, quebra um bom galho. A não ser nos dias verdadeiramente frios, ela é suficiente para agasalhar sem exageros. Estando aberta, inclusive os punhos, ganham um respiro que admite uso em dias mais quentes. Além disso, pode ser usada como uma blusa de fato, colocada sobre uma camiseta. Esqueçam do xadrez das festas juninas: há flanelas de qualquer cor. Por isso tudo, o custo/benefício da flanela é favorável a quem vem das famílias de pouco orçamento. Com o preço de uma blusa California Racing (popular na época) eu comprava fácil um guarda-roupa completo de camisas desse gênero.

No final das contas, e antes de cair no mainstream, a filosofia grunge era exatamente essa: não é a roupa que conta, mas quem a veste. Os shows das grandes bandas até o surgimento deste fenômeno eram performances grandiosas, onde o item de menor relevância era a música em si, e, principalmente, a mensagem que ela trazia. Shows, desta forma, não eram para quem gosta de música, mas de fogos de artifício. A estética grunge vai no sentido contrário: não é preciso olhar para um palco como se se estivesse vendo uma divindade, mas gente como a gente, tão deprimida e revoltada quanto. Dessa forma, minha maneira simples de vestir prenunciava a simplificação do processo de show business, de maneira completamente inconsciente.

O som grunge também bate em certas medida com o que eu praticava. Cru, sem arranjos performáticos e exageros do heavy metal, mas com mais sofisticação do que a porradaria punk. Era mais ou menos isso que eu tocava com os meus amigos, exceção feita à última das bandas, essencialmente de rock progressivo.

Isso significa que eu era um grunge? Não, dizer isso é um anacronismo. Toda a minha “história modística” se dá antes da tendência, e chamá-la de grunge não faz nenhum sentido. É como aquela velha história de que Cristo era comunista. Por mais que seus métodos e discursos fossem assemelhados à conduta socialista de hoje em dia, o fato é que não existia esse termo a dois mil anos atrás. Portanto, não vamos seguir este caminho. Isso não faz sentido nem quando baixamos a coisa em termos de sentenças lógicas.

Por exemplo, digamos que o costume dos adeptos do visual grunge seja tão arraigado que constatamos que todos os que têm camisas de flanela são grunges. Desta forma, podemos baixar a seguinte sentença:

Todos aqueles que usavam camisas de flanela eram grunges.

Também podemos dizer que o som grunge é fundamentalmente composto por um rock básico com letras profundas. Suas guitarras são distorcidas e os vocais são rasgados, viscerais. As temáticas não falam de demônios, como as dos grupos de heavy metal, a não ser dos interiores. Também não são diretamente políticas, como as dos punks. Falam mais sobre as contradições de um mundo dissonante com as realidades internas. Isso não é inédito na música, mas é um distintivo dos grunges, e foi com eles que essa abordagem esteve presente na música no começo da década de 90. Então, podemos dizer que…

Todos os que falavam de angústia na década de 90 eram grunges.

… o que, pela mecânica dos silogismos, resulta na seguinte conclusão:

Todos aqueles que usavam camisas de flanela falavam de angústia na década de 90.

Isso obviamente é falacioso, mas por que, se as premissas parecem válidas? E mais: se é preciso que haja distribuição onde em ao menos uma das premissas espere-se atingir a universalidade, o que dizer daqui, onde ambas as premissas são universais (todos)?

Não há como evitar fazer uma breve recapitulação. Um silogismo tem o objetivo de extrair, a partir de duas premissas, uma conclusão válida, que talvez nem seja verdadeira, mas que não pode produzir nenhum absurdo. O que liga as duas premissas é o que conhecemos por termo médio, um elemento que pode ser enxergado em ambas, mas que fica excluído da conclusão porque já cumpriu sua função de concatenar as premissas. As regras dos silogismos estipulam que as premissas precisam, em pelo menos um momento, que o termo médio seja abrangido em sua totalidade. Do contrário, nada poderá ser concluído. Olhando para o silogismo proposto, temos que o termo médio em ambos está no predicado. Ele precisa estar se referindo a todos os membros da categoria proposta ao menos em uma das premissas.

Ora, temos então duas distribuições totalizantes, e não somente uma, já que tanto na premissa maior quanto na menor a categoria está apontada na totalidade, certo? Bem, não.

Embora tanto a premissa maior quanto a premissa menor falem de totalidades, é uma universalidade falsa, porque não diz respeito ao termo médio. E isso traz um defeito. Falamos em todos os que usam camisas de flanela e todos os que falam de angústia, mas não falamos de todos os grunges em nenhum momento, e isso provoca uma ilusão em quem olha para o silogismo. Flanelados podem ser dançarinos de quadrilhas, idosos, andarilhos e qualquer outra pessoa que aprecie o tecido. Lamentosos podem ser da MPB, do samba, do (eca!) sertanejo. Além disso, a filosofia grunge não exclui camisas que não sejam de flanela, nem canções que não falem de miséria humana. Por isso, a articulação entre as frases contém um defeito lógico, e isso faz dela uma falácia formal, chamada de termo médio não distribuído, da mesma família dos ilícitos maior e menor.

O termo médio é discreto, pelo fato de não aparecer na conclusão de um silogismo. Este modelo de pensamento precisa de uma mediação, porque as premissas não são suficientes para que se perceba o encadeamento lógico. Como Aristóteles queria reduzir o pensamento a formulações, percebeu que era necessário em elemento de ligação entre premissas, algo que fosse comum a ambas e pudesse estabelecer um vínculo racional.

Já expliquei que, no exemplo dado, temos uma falácia formal, que é dedutível por si mesma. No caso, o termo médio, além de não ser tomado em sua máxima extensão em nenhuma das duas, liga duas premissas que não possuem identificação entre si, e isso resulta no pensamento absurdo.

Minhas fotos estão lá, esperando a próxima mudança. Quem vive de aluguel é assim mesmo, pulando de galho em galho. Às vezes me sinto como o eu-lírico da canção Pais e Filhos, do Legião Urbana: “Já morei em tanta casa que nem me lembro mais”. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

É um livro que fala sobre a principal figura do movimento grunge, a mais emblemática de todas, que minha nora inclusive utilizou em sua monografia de formação na faculdade de jornalismo.

CROSS, Charles. Mais Pesado que o Céu: Uma biografia de Kurt Cobain. Rio de Janeiro: Globo, 2002.

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