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segunda-feira, 14 de abril de 2025

Navegações de cabotagem – o Mercado Municipal de Guararema e o mercado, divindade moderna

(Mercado é um termo tanto afetivo, quanto aterrorizante. Tudo depende a que estamos nos referindo)

“Não é da benevolência do açougueiro, do cervejeiro ou do padeiro que devemos esperar nosso jantar, mas da consideração que eles têm pelo seu próprio interesse”

Adam Smith

Olá!

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Este texto só não fez parte do anterior porque eu queria tratar de outro tema. Até porque era só atravessar a rua. Quando falamos do centro de Guararema, uma cidade que nasceu em função de um rio, pensamos naquela espécie de parque linear que acompanha os contornos do Rio Paraíba do Sul, onde estão os bares, os restaurantes e o comércio em geral, mas há algumas travessas onde continuamos a encontrar coisas boas. Da mesma forma que fui conhecer a Casa da Memória, também achei que seria legal conhecer o Mercado Municipal local, modelo de negócio que é muito comum em todo o Vale do Paraíba. Vamos até lá.

Os mercados municipais são, na sua maioria, entrepostos que serviam para distribuir produtos agrícolas utilizáveis nas viagens dos tropeiros, razão pela qual são sempre equipamentos históricos muito importantes, porque é praticamente um distintivo de que aquela localidade era rota dos caminhos de expansão do Brasil.

Eles ficavam em grandes praças públicas, onde era possível estacionar as tropas para alimentar os animais e fazer as negociações e escambos de produtos.

Como os ciclos de subida do litoral para as regiões produtoras e auríferas se deram há alguns séculos, a arquitetura dos mercadões costuma pertencer aos mesmos períodos históricos, salvo os casos em que ocorreu uma descaracterização dos edifícios originais.

No caso deste mercado em específico, ele teve uma reforma recente e, portanto, está trincando de novo, com todas as coisas nos seus devidos lugares, com os tijolos maciços expostos e estruturas em arco dando um bom exemplo de soluções de época.

O Mercado Municipal de Guararema não é gigantesco como seu correlato paulistano, com seus produtos gourmetizados, ou mesmo seu irmão de Taubaté, verdadeira feira livre coberta. É mais uma atração turística que contém produtos locais e convencionais, alguns típicos da região.

Alguns deles são marcantes na região, que é rica na produção de verduras (faz parte do Cinturão Verde de São Paulo), orquídeas e cachaça.

Desta última, a amplitude da gama de produtos faz com que surjam algumas coisas exóticas, como a cachaça de caranguejo, uma daquelas velhas misturas que se dizem afrodisíacas. O velho efeito placebo (quando funciona).

Nós falamos muito de mercados em seu contexto predial, como o local em que vamos fazer nossas comprinhas e queimar nossos escassos níqueis. Esse é seu sentido mais popular e que guarda até uma certa afetividade. Eu-criança, por exemplo, tinha uma escala mensal de idas ao mercado. Quando era tempo de pagamento, minha mãe ia até um supermercado para “fazer despesa”, ou seja, a compra grande do mês, que precisava resistir até o próximo salário. Ficava um tanto longe, mas como não tínhamos carro, o negócio era levar um carrinho de feira para as necessidades mais imediatas e esperar o caminhão entregar o restante no final do dia. Gostava um bocado dessa compra porque eu me punha a pilotar o carrinho de mercado, e sempre me sobrava uma bolachinha recheada. Quando as coisas acabavam antes do previsto, ou para comprar perecíveis e inesperados, já aí a operação se dava nos empórios e mercearias, genericamente tratados por mercadinhos. Era famosa a “Venda do Chico”, que até virou ponto de referência naqueles tempos em que os bairros ainda tinham um certo ar interiorano: servia para indicar a rua que subia para a Vila Santa Clara, para “apear” do ônibus, para achar o começo da Estrada do Oratório. Era lá que se compravam esses remanescentes menores, mais caros que o supermercado, mas bem mais perto de casa.

Só que esse não é o sentido único dessa palavra, sendo que sempre que a ouvimos no noticiário, trememos nas pernas. O mercado parece uma espécie de divindade que guia a economia de um país para o Olimpo ou para o precipício, muitas vezes de forma imprevisível, e que nos empobrece ou faz respirar. Isso tudo coloca essa entidade no mesmo patamar de outros deuses quaisquer, ou seja, somente os iniciados conseguem se comunicar e interpretar seus sinais, os economistas. Mas, como toda e qualquer atividade humana, também aqui conseguimos achar fundamentos filosóficos, e é o que tentarei fazer agora. Acompanhem o tio.

Estudar a etimologia da palavra mercado já nos ajuda a entender algumas coisas. A referência direta é ao latim mercatus, o lugar onde os antigos romanos se encontravam para realizar o comércio. A raiz mais profunda da palavra, entretanto, vem de Mercúrio, o deus romano correspondente ao Hermes grego, e que regia os negócios, a oratória e as trapaças. Parece tudo coligado? Pois é mesmo. Os comerciantes eram todos como raposas prontas para dar o bote nos manés, a ponto de ser criado um provérbio que tinha o enunciado de caveat emptor, ou “cuidado, comprador”. Servia para alertar que o incauto está sempre prestes a tomar prejuízo nas operações comerciais. Talvez isso explique os códigos de defesa do consumidor. Não que todos os comerciantes queiram nos golpear, mas, se fosse possível distinguir os bons dos maus, não teríamos tantas piadas a esse respeito.

Mas o mercado, no ponto de vista racional, é algo mais abstrato, uma espécie de espaço que abarca os componentes que faz girar os recursos de uma determinada sociedade. Os principais fenômenos que fazem parte desse espaço são a oferta e a demanda. Para isso, precisamos pensar um pouquinho em como surge o comércio.

Imagine você em um tempo antigo, já dominando as técnicas agropecuárias, mas precisando se virar por si próprio, o que lhe faz perceber que há momentos em que te sobra coisas que você plantou para comer, e há os momentos em que te faltam outros objetos de necessidade. Tendo seu vizinho esses mesmos objetos, é lícito imaginar que você queira conseguir com ele alguns que lhe sobrem. Como a solidariedade humana é um conto da carochinha, ele certamente concordará em trocar contigo alguns produtos, desde que haja um consenso entre ambos de que há justiça no ato. Esse é o escambo, a forma mais primitiva de comércio. Tudo funciona nessa base, apenas trocando a mercadoria física por dinheiro.

Agora imagine que você tenha algo que todos queiram ou precisem muito, como uma erva que cure uma determinada doença que tem se espalhado em epidemia. Essa erva, antes ordinária, passa a ser preciosa, e você poderá exigir muito mais do que conseguiria por ela em situações normais. As pessoas ao seu redor estarão dispostas a oferecer mais por ela, e, com isso, diante de uma procura grande, a oferta vai se tornando mais e mais escassa, te autorizando a cobrar ainda mais por ela.

Só que chegará um limite. Você pode pedir tanto por sua erva milagrosa que não haverá quem queira ou possa pagar o preço que você propõe, preferindo enfrentar a epidemia sem o conforto oferecido. Neste caso, sua erva começará a ficar estocada e estragando, até que o movimento se inverta e você aceite comerciá-la por menos. Pode ocorrer ainda que um de seus vizinhos consiga uma muda da tal planta e passe também ele a oferecer o produto, de modo a passar a existir uma oferta mais abundante. Para conseguir esvaziar os estoques mais rapidamente, você passa a aceitar retribuições menores pela sua venda, o que também pode acontecer pelo chato do vizinho. É a tal da concorrência.

Esses são os princípios básicos que norteiam o mercado, cuja lei geral é regida por oferta e procura: os preços são guiados pela articulação entre ambos, que se movimentam de formas inversas. A oferta maior faz com que o preço caia, enquanto a demanda maior faz com o preço suba. Vale o inverso - oferta menor, preço maior; demanda menor, preço menor.

Os economistas defendem essa lei da mesma forma que os astrônomos defendem a gravidade e os biólogos, a seleção natural. Isso ocorre porque parece existir uma espécie de algoritmo  por trás de um movimento natural. Mas a observação da vida prática demonstra que muitos fatores podem perturbar essa ordem, como a formação de cartéis e a intervenção governamental. No primeiro caso, os empresários de um determinado setor agem em conluio para impedir que os preços caiam, como são os clássicos casos de especulação imobiliária. Basta que se olhe o tempo que demora para um prédio ser preenchido totalmente. Meu melhor exemplo é quando passo pelo elevado onde começa a Radial Leste. Transito às oito da noite e vejo os novos prédios da Baixada do Glicério. Apesar de novos, eles já têm mais de cinco anos, e pelo menos a metade deles está apagada. Ninguém nesta cidade dorme a esse horário, portanto, são apartamentos vazios. Se os apartamentos são caríssimos e não são vendidos, por que seus preços nunca caem? Teorizo que a venda de metade deles já é suficiente para dar retorno à construtora, e o que vier daí para frente é lucro, na mais pura acepção da palavra. Isso não é possível de fazer se todas as construtoras não agirem da mesma forma. Compreendem por que o preço do imóvel não cai? E isso porque estou falando do Glicério, uma parte pobre da cidade.

Já o governo pode interferir no mercado de forma oposta. Um exemplo acontece quando o dólar ameaça subir, fazendo com que o preço dos importados subam na mesma proporção. Neste caso, é possível que o governo pegue uma parte dos dólares que estão na reserva internacional (dinheiro que fica “embaixo do colchão” para pagar dívidas com entidades estrangeiras) e os disponibilizem aos operadores financeiros. Com isso, usa uma lei do mercado para atuar contra seus próprios princípios, aumentando artificialmente a oferta de dólares para diminuir o seu valor no mercado interno.

Os fatores que influenciam o tal do mercado são tão vastos e detalhados que é um desafio até hoje aos economistas para bem compreendê-lo e entender como se pode fazer previsões sobre ele, como compete a qualquer ciência. Um dos economistas mais definidores dos mecanismos de mercado foi Alfred Marshall, que criou o conceito de ponto de equilíbrio financeiro, que consiste no momento em que oferta e procura chegam a um “consenso” e estabilizam os preços de um determinado produto.

A primeira coisa na análise de Marshall, um  britânico da então nascente escola neoclássica, é distinguir o mercado de curto e de longo prazo. É como quando queremos analisar a teoria da evolução acontecendo diante dos nossos olhos: precisamos olhar a nível microscópico. No caso do mercado de curto prazo, estamos falando de bens de consumo imediato, que, se não forem comercializados, poderão estragar ou perder propriedades, como a erva que usei no exemplo. No longo prazo, é como se olhássemos por um telescópio, analisando um todo. É quando pensamos em bens duráveis, que podem resistir melhor ao tempo, como no caso dos apartamentos*. Nestes casos, a movimentação de preços não é tão imediata como nos casos de curto prazo. De qualquer forma, Marshall criou uma forma visual de análise de uma situação de mercado, que ficou conhecida como cruz de Marshall.

Esse gráfico funciona da seguinte forma: em um plano cartesiano, onde as coordenadas dizem respeito a quantidades (x) e preços (y), são inseridas duas linhas curvas: uma que representa a variação de preço da demanda e outra, a variação da oferta. A oferta, que está na perspectiva de quem vende, nasce do preço mínimo aceitável para a venda de um produto e vai crescendo à medida que se procura uma maior lucratividade pelo aumento das quantidades produzidas. Sob o ângulo de quem consome, a curva de procura vai do preço mais alto para pequenas quantidades oferecidas até o preço mais baixo que estimula novas compras. Vou utilizar uma moderna planilha gerada por um avançado módulo financeiro para exemplificar o gráfico:

Gráfico 

Percebam que a informação central do gráfico é o ponto de interseção chamado de equilíbrio, e é nele em que o mercado de um determinado produto se estabilizará. Variações muito grandes de preços ou produtos tenderão ao fracasso, já que o ponto de equilíbrio é atrativo - preços muito altos serão refutados, preços muito baixos trarão prejuízos. Por outro lado, quantidades muito pequenas serão consumidas de imediato, sendo insignificantes no mercado, enquanto quantidades muito altas são inviáveis financeiramente.

Como essa, muitas outras ferramentas foram criadas por diferentes economistas para tentar compreender esse tal de mercado, uma entidade tão estranha quanto qualquer outra que transcenda a realidade em si mesma, razão pela qual vou parar por aqui, porque eu mesmo já estou ficando cansado. Mas é o suficiente para demonstrar que não é um mundo tocado pela caridade, mas pelo interesse das pessoas. É um mal em si mesmo? Deve ser, mas tem coisas com as quais precisamos lidar como elas são, e não como queríamos que elas fossem.

As ações do deus mercado são válidas também aqui, no pequeno mercado de Guararema? Certamente sim, com a diferença de que aqui eu posso puxar um papo com a menina que serve o café e que me conta da paz que encontrou em sua vida, ou do rapaz da cachaça que me engabela com as vantagens reprodutivas da cachaça com caranguejo. Talvez esse Deus não seja de misericórdia como falam dos outros. Bons ventos a todos!

Recomendações:

Para quem curte Economia, é uma das obras essenciais.

MARSHALL, Alfred. Princípios de Economia. Col. Os Economistas. São Paulo: abril cultural, 1982.

Para quem quiser visitar o Mercado:

Mercado Municipal de Guararema

R. Major Paula Lopes, 125

Centro

Guararema/SP 

A aproximadamente 75 km do centro de São Paulo

*Minha hipótese permanece válida porque, do ponto de vista do vendedor, há as necessidades imediatas, como pagamento de salários e compras de materiais são imediatas, embora se trate de bens duráveis. Se é possível considerar para eles um bem durável, isso significa que já lhes foi possível fazer reserva suficiente para especular.

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