(Mercado é um termo tanto afetivo, quanto aterrorizante. Tudo depende a que estamos nos referindo)
“Não é da benevolência do açougueiro, do cervejeiro ou do padeiro que devemos esperar nosso jantar, mas da consideração que eles têm pelo seu próprio interesse”
Adam Smith
Olá!
Este texto só não fez parte do anterior
porque eu queria tratar de outro tema. Até porque era só atravessar a rua.
Quando falamos do centro de Guararema, uma cidade que nasceu em função de um
rio, pensamos naquela espécie de parque linear que acompanha os contornos do
Rio Paraíba do Sul, onde estão os bares, os restaurantes e o comércio em geral,
mas há algumas travessas onde continuamos a encontrar coisas boas. Da mesma
forma que fui conhecer a Casa da Memória, também achei que seria legal conhecer
o Mercado Municipal local, modelo de negócio que é muito comum em todo o Vale
do Paraíba. Vamos até lá.
Os mercados municipais são, na sua maioria, entrepostos que
serviam para distribuir produtos agrícolas utilizáveis nas viagens dos
tropeiros, razão pela qual são sempre equipamentos históricos muito
importantes, porque é praticamente um distintivo de que aquela localidade era
rota dos caminhos de expansão do Brasil.
Eles ficavam em grandes praças públicas, onde era possível
estacionar as tropas para alimentar os animais e fazer as negociações e
escambos de produtos.
Como os ciclos de subida do litoral para as regiões
produtoras e auríferas se deram há alguns séculos, a arquitetura dos mercadões
costuma pertencer aos mesmos períodos históricos, salvo os casos em que ocorreu
uma descaracterização dos edifícios originais.
No caso deste mercado em específico, ele teve uma reforma
recente e, portanto, está trincando de novo, com todas as coisas nos seus
devidos lugares, com os tijolos maciços expostos e estruturas em arco dando um
bom exemplo de soluções de época.
O Mercado Municipal de Guararema não é gigantesco como seu
correlato paulistano, com seus produtos gourmetizados, ou mesmo seu irmão de
Taubaté, verdadeira feira livre coberta. É mais uma atração turística que
contém produtos locais e convencionais, alguns típicos da região.
Alguns deles são marcantes na região, que é rica na produção
de verduras (faz parte do Cinturão Verde de São Paulo), orquídeas e cachaça.
Desta última, a amplitude da gama de produtos faz com que
surjam algumas coisas exóticas, como a cachaça de caranguejo, uma daquelas
velhas misturas que se dizem afrodisíacas. O velho efeito
placebo (quando funciona).
Nós falamos muito de mercados em seu contexto predial, como
o local em que vamos fazer nossas comprinhas e queimar nossos escassos níqueis.
Esse é seu sentido mais popular e que guarda até uma certa afetividade.
Eu-criança, por exemplo, tinha uma escala mensal de idas ao mercado. Quando era
tempo de pagamento, minha mãe ia até um supermercado para “fazer despesa”, ou
seja, a compra grande do mês, que precisava resistir até o próximo salário.
Ficava um tanto longe, mas como não tínhamos carro, o negócio era levar um
carrinho de feira para as necessidades mais imediatas e esperar o caminhão
entregar o restante no final do dia. Gostava um bocado dessa compra porque eu me
punha a pilotar o carrinho de mercado, e sempre me sobrava uma bolachinha
recheada. Quando as coisas acabavam antes do previsto, ou para comprar
perecíveis e inesperados, já aí a operação se dava nos empórios e mercearias,
genericamente tratados por mercadinhos. Era famosa a “Venda do Chico”, que até
virou ponto de referência naqueles tempos em que os bairros ainda tinham um
certo ar interiorano: servia para indicar a rua que subia para a Vila Santa
Clara, para “apear” do ônibus, para achar o começo da Estrada do Oratório. Era
lá que se compravam esses remanescentes menores, mais caros que o supermercado,
mas bem mais perto de casa.
Só que esse não é o sentido único dessa palavra, sendo que
sempre que a ouvimos no noticiário, trememos nas pernas. O mercado parece uma
espécie de divindade que guia a economia de um país para o Olimpo ou para o
precipício, muitas vezes de forma imprevisível, e que nos empobrece ou faz
respirar. Isso tudo coloca essa entidade no mesmo patamar de outros deuses quaisquer,
ou seja, somente os iniciados conseguem se comunicar e interpretar seus sinais,
os economistas. Mas, como toda e qualquer atividade humana, também aqui
conseguimos achar fundamentos filosóficos, e é o que tentarei fazer agora.
Acompanhem o tio.
Estudar a etimologia da palavra mercado já nos ajuda
a entender algumas coisas. A referência direta é ao latim mercatus, o
lugar onde os antigos romanos se encontravam para realizar o comércio. A raiz
mais profunda da palavra, entretanto, vem de Mercúrio, o deus romano
correspondente ao Hermes grego, e que regia os negócios, a oratória e as
trapaças. Parece tudo coligado? Pois é mesmo. Os comerciantes eram todos como
raposas prontas para dar o bote nos manés, a ponto de ser criado um provérbio
que tinha o enunciado de caveat emptor, ou “cuidado, comprador”. Servia
para alertar que o incauto está sempre prestes a tomar prejuízo nas operações
comerciais. Talvez isso explique os códigos de defesa do consumidor. Não que
todos os comerciantes queiram nos golpear, mas, se fosse possível distinguir os
bons dos maus, não teríamos tantas piadas a esse respeito.
Mas o mercado, no ponto de vista racional, é algo mais
abstrato, uma espécie de espaço que abarca os componentes que faz girar os
recursos de uma determinada sociedade. Os principais fenômenos que fazem parte
desse espaço são a oferta e a demanda. Para isso, precisamos pensar um
pouquinho em como surge o comércio.
Imagine você em um tempo antigo, já dominando as técnicas
agropecuárias, mas precisando se virar por si próprio, o que lhe faz perceber
que há momentos em que te sobra coisas que você plantou para comer, e há os
momentos em que te faltam outros objetos de necessidade. Tendo seu vizinho
esses mesmos objetos, é lícito imaginar que você queira conseguir com ele
alguns que lhe sobrem. Como a solidariedade humana é um conto da carochinha,
ele certamente concordará em trocar contigo alguns produtos, desde que haja um
consenso entre ambos de que há justiça no ato. Esse é o escambo, a forma mais
primitiva de comércio. Tudo funciona nessa base, apenas trocando a mercadoria
física por dinheiro.
Agora imagine que você tenha algo que todos queiram ou
precisem muito, como uma erva que cure uma determinada doença que tem se
espalhado em epidemia. Essa erva, antes ordinária, passa a ser preciosa, e você
poderá exigir muito mais do que conseguiria por ela em situações normais. As
pessoas ao seu redor estarão dispostas a oferecer mais por ela, e, com isso,
diante de uma procura grande, a oferta vai se tornando mais e mais escassa, te
autorizando a cobrar ainda mais por ela.
Só que chegará um limite. Você pode pedir tanto por sua erva
milagrosa que não haverá quem queira ou possa pagar o preço que você propõe,
preferindo enfrentar a epidemia sem o conforto oferecido. Neste caso, sua erva
começará a ficar estocada e estragando, até que o movimento se inverta e você
aceite comerciá-la por menos. Pode ocorrer ainda que um de seus vizinhos
consiga uma muda da tal planta e passe também ele a oferecer o produto, de modo
a passar a existir uma oferta mais abundante. Para conseguir esvaziar os
estoques mais rapidamente, você passa a aceitar retribuições menores pela sua
venda, o que também pode acontecer pelo chato do vizinho. É a tal da
concorrência.
Esses são os princípios básicos que norteiam o mercado, cuja
lei geral é regida por oferta e procura: os preços são guiados pela articulação
entre ambos, que se movimentam de formas inversas. A oferta maior faz com que o
preço caia, enquanto a demanda maior faz com o preço suba. Vale o inverso -
oferta menor, preço maior; demanda menor, preço menor.
Os economistas defendem essa lei da mesma forma que os
astrônomos defendem a gravidade e os biólogos, a seleção natural. Isso ocorre
porque parece existir uma espécie de algoritmo
por trás de um movimento natural. Mas a
observação da vida prática demonstra que muitos fatores podem perturbar essa
ordem, como a formação de cartéis e a intervenção governamental. No primeiro
caso, os empresários de um determinado setor agem em conluio para impedir que
os preços caiam, como são os clássicos casos de especulação imobiliária. Basta
que se olhe o tempo que demora para um prédio ser preenchido totalmente. Meu
melhor exemplo é quando passo pelo elevado onde começa a Radial Leste. Transito
às oito da noite e vejo os novos prédios da Baixada do Glicério. Apesar de
novos, eles já têm mais de cinco anos, e pelo menos a metade deles está
apagada. Ninguém nesta cidade dorme a esse horário, portanto, são apartamentos
vazios. Se os apartamentos são caríssimos e não são vendidos, por que seus
preços nunca caem? Teorizo que a venda de metade deles já é suficiente para dar
retorno à construtora, e o que vier daí para frente é lucro, na mais pura
acepção da palavra. Isso não é possível de fazer se todas as construtoras não
agirem da mesma forma. Compreendem por que o preço do imóvel não cai? E isso
porque estou falando do Glicério, uma parte pobre da cidade.
Já o governo pode interferir no mercado de forma oposta. Um
exemplo acontece quando o dólar ameaça subir, fazendo com que o preço dos
importados subam na mesma proporção. Neste caso, é possível que o governo pegue
uma parte dos dólares que estão na reserva internacional (dinheiro que fica
“embaixo do colchão” para pagar dívidas com entidades estrangeiras) e os
disponibilizem aos operadores financeiros. Com isso, usa uma lei do mercado
para atuar contra seus próprios princípios, aumentando artificialmente a oferta
de dólares para diminuir o seu valor no mercado interno.
Os fatores que influenciam o tal do mercado são tão vastos e
detalhados que é um desafio até hoje aos economistas para bem compreendê-lo e
entender como se pode fazer previsões sobre ele, como compete a qualquer
ciência. Um dos economistas mais definidores dos mecanismos de mercado foi
Alfred Marshall, que criou o conceito de ponto de equilíbrio financeiro, que
consiste no momento em que oferta e procura chegam a um “consenso” e
estabilizam os preços de um determinado produto.
A primeira coisa na análise de Marshall, um britânico
da então nascente escola neoclássica, é distinguir o mercado de curto e de
longo prazo. É como quando queremos analisar a teoria da evolução acontecendo
diante dos nossos olhos: precisamos olhar a nível microscópico. No caso do
mercado de curto prazo, estamos falando de bens de consumo imediato, que, se
não forem comercializados, poderão estragar ou perder propriedades, como a erva
que usei no exemplo. No longo prazo, é como se olhássemos por um telescópio,
analisando um todo. É quando pensamos em bens duráveis, que podem resistir
melhor ao tempo, como no caso dos apartamentos*. Nestes casos, a movimentação
de preços não é tão imediata como nos casos de curto prazo. De qualquer forma,
Marshall criou uma forma visual de análise de uma situação de mercado, que
ficou conhecida como cruz de Marshall.
Esse gráfico funciona da seguinte forma: em um plano
cartesiano, onde as coordenadas dizem respeito a quantidades (x) e preços (y),
são inseridas duas linhas curvas: uma que representa a variação de preço da
demanda e outra, a variação da oferta. A oferta, que está na perspectiva de
quem vende, nasce do preço mínimo aceitável para a venda de um produto e vai
crescendo à medida que se procura uma maior lucratividade pelo aumento das
quantidades produzidas. Sob o ângulo de quem consome, a curva de procura vai do
preço mais alto para pequenas quantidades oferecidas até o preço mais baixo que
estimula novas compras. Vou utilizar uma moderna planilha gerada por um
avançado módulo financeiro para exemplificar o gráfico:
Gráfico
Percebam que a informação central do gráfico é o ponto de
interseção chamado de equilíbrio, e é nele em que o mercado de um determinado
produto se estabilizará. Variações muito grandes de preços ou produtos tenderão
ao fracasso, já que o ponto de equilíbrio é atrativo - preços muito altos serão
refutados, preços muito baixos trarão prejuízos. Por outro lado, quantidades
muito pequenas serão consumidas de imediato, sendo insignificantes no mercado,
enquanto quantidades muito altas são inviáveis financeiramente.
Como essa, muitas outras ferramentas foram criadas por
diferentes economistas para tentar compreender esse tal de mercado, uma
entidade tão estranha quanto qualquer outra que transcenda a realidade em si
mesma, razão pela qual vou parar por aqui, porque eu mesmo já estou ficando
cansado. Mas é o suficiente para demonstrar que não é um mundo tocado pela
caridade, mas pelo interesse das pessoas. É um mal em si mesmo? Deve ser, mas
tem coisas com as quais precisamos lidar como elas são, e não como queríamos que
elas fossem.
As ações do deus mercado são válidas também aqui, no pequeno
mercado de Guararema? Certamente sim, com a diferença de que aqui eu posso
puxar um papo com a menina que serve o café e que me conta da paz que encontrou
em sua vida, ou do rapaz da cachaça que me engabela com as vantagens
reprodutivas da cachaça com caranguejo. Talvez esse Deus não seja de
misericórdia como falam dos outros. Bons ventos a todos!
Recomendações:
Para quem curte Economia, é uma das obras essenciais.
MARSHALL, Alfred. Princípios de Economia. Col. Os
Economistas. São Paulo: abril cultural, 1982.
Para quem quiser visitar o Mercado:
Mercado Municipal de Guararema
R. Major Paula Lopes, 125
Centro
Guararema/SP
A aproximadamente 75 km do centro de São Paulo
*Minha hipótese permanece válida porque, do ponto de vista
do vendedor, há as necessidades imediatas, como pagamento de salários e compras
de materiais são imediatas, embora se trate de bens duráveis. Se é possível
considerar para eles um bem durável, isso significa que já lhes foi possível
fazer reserva suficiente para especular.
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