(A realidade pode ter alguma sequência de passos determinados por trás dela? Ou somos frutos de um grande acaso?)
Todo dia ela faz tudo sempre igual
Me sacode às seis horas da manhã
Me sorri um sorriso pontual
E me beija com a boca de hortelã
(Chico Buarque)
Olá!
Agora a moda é o ChatGPT. É praticamente impossível que
você, meu escasso leitor, nunca tenha ouvido falar disso, mas vai lá: é um
aplicativo do tipo chatbot, ou seja, um robozinho que interage com você
como se fosse outra pessoa de carne e osso. Os mais famosos são aqueles
assistentes de sites, para quem você faz perguntas e é respondido com
orientações de onde achar as coisas. Ocorre que o alcance deles, até hoje, era
bem delimitado pelo escopo do site que você visita. Já o ChatGPT ultrapassa
MUITO esse diálogo limitado, porque suas respostas são mais completas e
originais, a ponto de compor músicas e poemas. Ainda há muitas críticas com
relação aos resultados, mas o salto é realmente admirável. Não temos mais
aqueles sisteminhas em que claramente era possível reconhecer a programação por
trás: perguntado isso, responda aquilo, com a terceira via muito clara – não há
resposta, diga para se reformular a pergunta. No ChatGPT, efetivamente temos
aquilo que parece um pensamento, uma rede intrincada de alternativas sendo
desenrolada ao mesmo tempo, que dá a clara impressão de que há uma efetiva
inteligência por trás, como se um humano interagisse com você. É a tal da
inteligência artificial no formato mais próximo com o qual podemos
compreendê-la.
Brinquei uns quinze minutos com a ferramenta, e é, de fato,
surpreendente. Poesias com métricas muito próximas do estilo que se pede,
definições ricas que fogem do óbvio e do enciclopédico, utilização de citações
direcionadas, articulação com conteúdos abstratos… Está muito longe de uma mera
pesquisa rápida, especialmente na busca e na costura do texto.
Não se pense, contudo, que por trás desses sistemas exista
algum tipo de milagre. O que temos são algoritmos, que ficaram famosos depois
que o YouTube estabeleceu uma relação de céu e inferno com os seus produtores
de conteúdo. Isso porque os algoritmos do YT não param quietos, ora priorizando
curtidas, ora engajamento, ora visualização de publicidade, dificultando a
montagem de estratégias para manter os ganhos. Quem vive de renda variável sabe
bem do que eu estou falando.
Mas o que são esses tais algoritmos, tão caros para o
pessoal que vive de informática? Na verdade, seu conceito não tem nada de
complexo. São sequências de passos para realizar uma determinada tarefa. Nós
fazemos isso fora do mundo computacional, nas mais prosaicas tarefas, como, por
exemplo, arrumar a cama. Alguns desses passos envolvem decisões e desvios de
rota. Uma decisão, por exemplo, ocorre quando você precisa verificar se é
necessário trocar os lençóis, e, para isso, é estabelecida uma condição: caso
as peças não apresentem mau cheiro ou manchas, ou não tenham atingido um
determinado tempo de uso, poderão ser repetidas, e o fluxo seguirá para a
arrumação da cama em si. Se for necessário trocar as peças, os passos a serem
seguidos são descritos em um sub-roteiro, onde constarão as instruções para
utilizar peças limpas. Não havendo peças disponíveis para a troca, o processo é
interrompido, para que se possa lavar uma peça, mandar para o tintureiro ou, vá
lá que seja, comprar um nova. Vamos colocar no papel:
Esse caminho composto por figuras geométricas e setas (já
citei ele aqui)
é uma notação padronizada para desenvolvimento de fluxogramas, uma forma de
descrição de algoritmos. Cada figura geométrica descreve, por si só, uma
tipificação de ação que está sendo adotada. No exemplo acima, temos os
seguintes significados:
Terminais: servem para indicar o início e o fim de um
processo, seja ele o fluxo principal ou algum dos secundários, como a rotina de
trazer lençóis limpos.
Entrada/saída: são os pontos onde os dados do
processo atuam, seja como entrada ou como saída. No exemplo, temos como entrada
de dados a constatação da limpeza dos lençóis no fluxo principal e da
existência de lençóis limpos na sub-rotina.
Decisão: quando é preciso optar por um de dois
caminhos. Percebam que aqui nós temos o mais "inteligente" dos
processos do fluxo, porque será preciso exercer uma escolha que dará uma nova
realidade ao processo. Pelas regras gerais dos fluxogramas, esses processos de
escolha serão do tipo Sim/Não.
Processamento: é a realização do trabalho em si: uma
conta, uma ordenação, o esticamento de um lençol.
Subprocesso: é a remissão de um fluxograma para outro
fluxograma, que tem seu conjunto próprio de instruções. É muito usado quando um
mesmo conjunto de passos pode ser utilizado para mais de uma tarefa. A troca do
lençol, no caso, pode se aplicar a qualquer cama da casa ou a um sofá usado
como cama.
Interrupção: é utilizada quando alguma ocorrência
leva à parada do fluxo normal, tornando impossível a sua continuação, como é o
caso da falta de lençóis limpos para fazer a troca.
Uma demonstração banal, sem dúvida, mas é sempre assim que
as coisas começam. Há outras maneiras de representar algoritmos, mas o
fluxograma é, sem dúvida, uma das mais elegantes e inteligíveis. Nós podemos
aplicar a cada tipo de tarefa uma estrutura parecida, variando de acordo com a
sua complexidade, e não somente para aplicações computacionais, mas a toda e
qualquer coisa que envolva processo.
Só que nós começamos a observar, e se o fizermos
cuidadosamente, que todas as nossas ações podem ser quebradas em partes
menores, cartesianamente.
Cada um desses pedacinhos pode ser reduzido a conjuntos de representações que
denotam a existência de modelos algorítmicos, ou seja, ações semelhantes que
podem ser aplicadas a várias circunstâncias. Olhamos para nossa própria
realidade e constatamos a mesma coisa: uma tarefa inteira é desmembrável em inúmeras
pequenas tarefas. E aí temos a pergunta que não quer calar: será que a
realidade é um grande algoritmo?
Para tentarmos responder esse pergunta, precisaremos
primeiro assumir que nossa ideia não é desenhar um algoritmo de uma ação
qualquer, mas pressupor que ele pode ser aplicado sempre que dermos de frente
com uma situação semelhante, ou seja, para cada fenômeno que se descortinar à
nossa frente, haverá sempre uma sequência de passos predeterminados que serão
seguidos. Claro, com a variação das decisões possíveis, mas ainda assim
prefiguráveis.
Há ainda um duplo critério a ser observado. Qual a
importância da escolha que devemos adotar? Se assumirmos que a realidade é um
grande algoritmo, cada uma das escolhas deverá ser bem definida para que a
coisa funcione: dadas tais e tais condições, a escolha sempre penderá para o
mesmo lado, caso contrário, a tese do algoritmo vai por terra.
Isso é tremendamente discutível, o que personalizaria um
algoritmo a tal ponto de ser, no mínimo, inútil dizer que há uma lógica fixa
por trás das ações. Dou um exemplo partindo de mim mesmo. Se vocês observarem
vários dos meus textos, verão que eu aplico muitos termos oriundos do italiano,
como "punto e finito", "via discorrendo", "così
via" e por aí vai. Isso acontece porque, além de uma mal disfarçada
empáfia e de um orgulho da ascendência, há todo um móbile cultural que me
conduz a mão. Idem com quem me lê. Pode ser que alguém ache que o modo como escrevo
um tanto pernóstico, pode ser que precise de um dicionário, pode ser que ache
um colorido especial nessas inserções, pode ser tanta coisa. Então um algoritmo
para fazer uma leitura do meu texto exigiria levar em conta não somente os
habituais passos, mas considerar toda a carga cultural de quem lê e de quem
escreve, os tais pré-requisitos que podem mudar toda a lógica do que vem
posteriormente a eles. O algoritmo não depende somente de uma, mas de todas as
partes envolvidas. Percebem como isso pode levar a um conjunto de
possibilidades quase infinito?
Por outro lado, se houvessem escolhas efetivas, a aleatoriedade
estaria estabelecida e não faria sentido falar em realidade como algoritmos, já
que seria indefinível até mesmo os pontos onde ocorreriam decisões. Pensem que
estou sentado vendo TV. A cada instante posso decidir parar de assisti-la e ir
fazer outra coisa. Ler, dormir, comer um rabanete, sair para a rua, tamborilar
um pandeiro, acender uma vela ou tirar ouro do nariz são opções cabíveis. Pior:
uma necessidade fisiológica pode me levar de bate-pronto a sair do meu estado
atual. É muito difícil estabelecer pontos lógicos tão fixos assim. Mas sempre
podemos tentar.
Há argumentos que podem indicar a direção contrária. Uma das
melhores proposituras de quem defende a obediência da realidade a alguma
espécie de algoritmo é a maneira como a seleção natural se processa. Isso
porque, embora a seleção do melhor adaptado venha sendo estudada há tempos
quando observamos a constituição das espécies, é perceptível que a mesma lógica
opera em qualquer circunstância onde haja disputa. Há uma espécie de "seleção
natural" no mundo do futebol, por exemplo. O Santos é ainda hoje tido como
um dos clubes mais importantes nesse esporte porque um dia teve um time
tecnicamente impecável. Fosse hoje, aquele escrete estaria todo espalhado por
times do mundo inteiro, porque o fator financeiro se tornou mais definidor do
critério seletivo. Houve época em que clubes com potencial monetário menor,
como a Portuguesa
ou o América, conseguiam sobreviver por critérios outros. Modernamente, tendem
ao fim, a não ser que se apresentem como novos proponentes de alternativas mais
bem adaptadas à nova realidade.
Esse modelo se aplica a incontáveis fenômenos. Tente
entender por que o inglês é a língua franca hoje em dia e você perceberá que
ele superou etapas por ser melhor adaptado ao mundo. Tente entender por que o
dólar, e não o real, ou o peso, ou o dinar. Tente entender por que todos esses
dominadores de hoje eram menos preponderantes no passado e como podem deixar de
ser no futuro, e veremos o algoritmo da evolução sempre funcionando: quem se
adapta melhor, permanece. Ok, ok… Pode ser que chamar esse fenômeno de “seleção
natural” seja um erro, porque não há nada de natural nas línguas e dinheiros,
mas todos compartilham o mesmo mecanismo de favorecimento àqueles que se
adaptam melhor a um dado ambiente, e é nisso que está seu sentido natural. O
mundo estava prenhe de condições ideais para que puritanos britânicos deixassem
sua ilha e se transferissem para um território imenso, fértil e povoado por uma
população mais frágil. De lá, o aumento das riquezas internas foi sendo um
lastro para que, surgidas as guerras, emergisse uma nação poderosa, cheia de
recursos para se manter e fazer manter os demais países, que lhe passaram a ser
tributários. Esse é o substrato que arrastou o inglês e a cultura ianque pelo
mundo.
Outros exemplos de fenômenos algorítmicos são a gravidade, o
magnetismo e inúmeros outros fenômenos físico-químicos. Dadas tais e tais
condições e a "magia" acontece. A própria previsibilidade do método
científico dá a ideia de que há passos fixos para cada situação.
É óbvio que fica meio complicado subordinar toda a realidade
a mecanismos peremptórios, novamente pela questão das escolhas. Só se esta for
meramente ilusória, e cada vez que o fizermos, for inevitável que ocorresse
como ocorreu. Novamente precisamos voltar para a definição de algoritmo: uma
série de passos predefinidos que é utilizada para resolver alguma tarefa. Isso
para evitarmos aquela romântica afirmação de que nada é por acaso, como se uma
espécie de lei da atração operasse por trás dos nossos passos. Isso é muito
bonito quando as coisas dão certo, mas, do contrário, vamos atrás de algum ad
hoc que motive o destino infeliz, não é mesmo?
No final das contas, o ponto chave está nos losangos, ou
seja, nos processos decisórios. Os outros podem ser atribuídos à velhíssima e aristotélica
conjunção de causas e consequências, que, ainda que se considere a opinião de
contestadores como Hume
e Guilherme
de Ockham, costuma funcionar belissimamente. E aí vamos pensar na proposta
de Leonard Mlodinov, imaginando-nos em uma rua noturna, onde, de longe, vemos
um bêbado andar à nossa frente. Cada passo que ele dá, ainda que
involuntariamente, envolve uma decisão: embora tente seguir reto, ele pende ora
para a esquerda, ora para a direita (como faz o Centrão). É até possível estabelecer
um pensamento estatístico, mas teríamos facilidade em cair na falácia
da mão quente. Do nosso ponto de vista, o fenômeno é absolutamente
aleatório, podendo haver tantos passos para um lado ou para o outro, sem
nenhuma previsibilidade aparente. Se ela existir, de todo modo é influenciada
por fatores que independem da claudicante vontade do nosso ébrio amigo:
irregularidade do terreno, umidade do asfalto, condições dos calçados, ventinho
maroto a estibordo, tendência labiríntica, peso nos bolsos, joelho com artrose.
Há todo um conjunto de fatores que conduz essa caminhada, cada um com um
conjunto ambiental que tem suas próprias regras físicas, as quais, uma vez
atendidas, farão com que o próximo passo se desenrole de uma maneira
perfeitamente previsível, porque descritíveis em algoritmos. Só que essas são
tantas e tantas que se torna impossível de fazer tais previsões, a não ser
através do bom e velho chute.
Diante de um universo caótico, a minha conclusão pode ser um
pouco decepcionante, mas está na esteira do pragmatismo: é irrelevante se a
realidade é ou não um grande algoritmo. Isso se baseia na impossibilidade de
perceber a quantidade de nuances que compõem a realidade. O que temos em nosso
aparelho cognitivo são nossas intuições, e, ao mesmo tempo que elas podem nos
conduzir a enganos, é também a maneira como chegamos até aqui na nossa aventura
terrestre, e lutar contra isso não faz sentido. Se há algoritmos que regem cada
um de nossos passos, eles são tantos que são indistinguíveis de uma aleatoriedade
real.
Minha (in)conclusão é essa. A não ser que eu reflita mais e
mude de ideia... será que há algoritmo para isso?
Bons ventos a todos!
Recomendação de leitura:
Um livro leve, sem grandes aprofundamentos, mas que
demonstra como podemos nos enganar com relação ao acaso com vários exemplos.
MLODINOV, Leonard. O andar do bêbado. Como o acaso
determina nossas vidas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009.
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