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segunda-feira, 30 de outubro de 2023

A realidade como um grande algoritmo

(A realidade pode ter alguma sequência de passos determinados por trás dela? Ou somos frutos de um grande acaso?)

Todo dia ela faz tudo sempre igual

Me sacode às seis horas da manhã

Me sorri um sorriso pontual

E me beija com a boca de hortelã 

(Chico Buarque)

Olá!

Agora a moda é o ChatGPT. É praticamente impossível que você, meu escasso leitor, nunca tenha ouvido falar disso, mas vai lá: é um aplicativo do tipo chatbot, ou seja, um robozinho que interage com você como se fosse outra pessoa de carne e osso. Os mais famosos são aqueles assistentes de sites, para quem você faz perguntas e é respondido com orientações de onde achar as coisas. Ocorre que o alcance deles, até hoje, era bem delimitado pelo escopo do site que você visita. Já o ChatGPT ultrapassa MUITO esse diálogo limitado, porque suas respostas são mais completas e originais, a ponto de compor músicas e poemas. Ainda há muitas críticas com relação aos resultados, mas o salto é realmente admirável. Não temos mais aqueles sisteminhas em que claramente era possível reconhecer a programação por trás: perguntado isso, responda aquilo, com a terceira via muito clara – não há resposta, diga para se reformular a pergunta. No ChatGPT, efetivamente temos aquilo que parece um pensamento, uma rede intrincada de alternativas sendo desenrolada ao mesmo tempo, que dá a clara impressão de que há uma efetiva inteligência por trás, como se um humano interagisse com você. É a tal da inteligência artificial no formato mais próximo com o qual podemos compreendê-la.

Brinquei uns quinze minutos com a ferramenta, e é, de fato, surpreendente. Poesias com métricas muito próximas do estilo que se pede, definições ricas que fogem do óbvio e do enciclopédico, utilização de citações direcionadas, articulação com conteúdos abstratos… Está muito longe de uma mera pesquisa rápida, especialmente na busca e na costura do texto.

Não se pense, contudo, que por trás desses sistemas exista algum tipo de milagre. O que temos são algoritmos, que ficaram famosos depois que o YouTube estabeleceu uma relação de céu e inferno com os seus produtores de conteúdo. Isso porque os algoritmos do YT não param quietos, ora priorizando curtidas, ora engajamento, ora visualização de publicidade, dificultando a montagem de estratégias para manter os ganhos. Quem vive de renda variável sabe bem do que eu estou falando.

Mas o que são esses tais algoritmos, tão caros para o pessoal que vive de informática? Na verdade, seu conceito não tem nada de complexo. São sequências de passos para realizar uma determinada tarefa. Nós fazemos isso fora do mundo computacional, nas mais prosaicas tarefas, como, por exemplo, arrumar a cama. Alguns desses passos envolvem decisões e desvios de rota. Uma decisão, por exemplo, ocorre quando você precisa verificar se é necessário trocar os lençóis, e, para isso, é estabelecida uma condição: caso as peças não apresentem mau cheiro ou manchas, ou não tenham atingido um determinado tempo de uso, poderão ser repetidas, e o fluxo seguirá para a arrumação da cama em si. Se for necessário trocar as peças, os passos a serem seguidos são descritos em um sub-roteiro, onde constarão as instruções para utilizar peças limpas. Não havendo peças disponíveis para a troca, o processo é interrompido, para que se possa lavar uma peça, mandar para o tintureiro ou, vá lá que seja, comprar um nova. Vamos colocar no papel:

Esse caminho composto por figuras geométricas e setas (já citei ele aqui) é uma notação padronizada para desenvolvimento de fluxogramas, uma forma de descrição de algoritmos. Cada figura geométrica descreve, por si só, uma tipificação de ação que está sendo adotada. No exemplo acima, temos os seguintes significados:

Terminais: servem para indicar o início e o fim de um processo, seja ele o fluxo principal ou algum dos secundários, como a rotina de trazer lençóis limpos.

Entrada/saída: são os pontos onde os dados do processo atuam, seja como entrada ou como saída. No exemplo, temos como entrada de dados a constatação da limpeza dos lençóis no fluxo principal e da existência de lençóis limpos na sub-rotina.

Decisão: quando é preciso optar por um de dois caminhos. Percebam que aqui nós temos o mais "inteligente" dos processos do fluxo, porque será preciso exercer uma escolha que dará uma nova realidade ao processo. Pelas regras gerais dos fluxogramas, esses processos de escolha serão do tipo Sim/Não.

Processamento: é a realização do trabalho em si: uma conta, uma ordenação, o esticamento de um lençol.

Subprocesso: é a remissão de um fluxograma para outro fluxograma, que tem seu conjunto próprio de instruções. É muito usado quando um mesmo conjunto de passos pode ser utilizado para mais de uma tarefa. A troca do lençol, no caso, pode se aplicar a qualquer cama da casa ou a um sofá usado como cama.

Interrupção: é utilizada quando alguma ocorrência leva à parada do fluxo normal, tornando impossível a sua continuação, como é o caso da falta de lençóis limpos para fazer a troca. 

Uma demonstração banal, sem dúvida, mas é sempre assim que as coisas começam. Há outras maneiras de representar algoritmos, mas o fluxograma é, sem dúvida, uma das mais elegantes e inteligíveis. Nós podemos aplicar a cada tipo de tarefa uma estrutura parecida, variando de acordo com a sua complexidade, e não somente para aplicações computacionais, mas a toda e qualquer coisa que envolva processo.

Só que nós começamos a observar, e se o fizermos cuidadosamente, que todas as nossas ações podem ser quebradas em partes menores, cartesianamente. Cada um desses pedacinhos pode ser reduzido a conjuntos de representações que denotam a existência de modelos algorítmicos, ou seja, ações semelhantes que podem ser aplicadas a várias circunstâncias. Olhamos para nossa própria realidade e constatamos a mesma coisa: uma tarefa inteira é desmembrável em inúmeras pequenas tarefas. E aí temos a pergunta que não quer calar: será que a realidade é um grande algoritmo?

Para tentarmos responder esse pergunta, precisaremos primeiro assumir que nossa ideia não é desenhar um algoritmo de uma ação qualquer, mas pressupor que ele pode ser aplicado sempre que dermos de frente com uma situação semelhante, ou seja, para cada fenômeno que se descortinar à nossa frente, haverá sempre uma sequência de passos predeterminados que serão seguidos. Claro, com a variação das decisões possíveis, mas ainda assim prefiguráveis.

Há ainda um duplo critério a ser observado. Qual a importância da escolha que devemos adotar? Se assumirmos que a realidade é um grande algoritmo, cada uma das escolhas deverá ser bem definida para que a coisa funcione: dadas tais e tais condições, a escolha sempre penderá para o mesmo lado, caso contrário, a tese do algoritmo vai por terra.

Isso é tremendamente discutível, o que personalizaria um algoritmo a tal ponto de ser, no mínimo, inútil dizer que há uma lógica fixa por trás das ações. Dou um exemplo partindo de mim mesmo. Se vocês observarem vários dos meus textos, verão que eu aplico muitos termos oriundos do italiano, como "punto e finito", "via discorrendo", "così via" e por aí vai. Isso acontece porque, além de uma mal disfarçada empáfia e de um orgulho da ascendência, há todo um móbile cultural que me conduz a mão. Idem com quem me lê. Pode ser que alguém ache que o modo como escrevo um tanto pernóstico, pode ser que precise de um dicionário, pode ser que ache um colorido especial nessas inserções, pode ser tanta coisa. Então um algoritmo para fazer uma leitura do meu texto exigiria levar em conta não somente os habituais passos, mas considerar toda a carga cultural de quem lê e de quem escreve, os tais pré-requisitos que podem mudar toda a lógica do que vem posteriormente a eles. O algoritmo não depende somente de uma, mas de todas as partes envolvidas. Percebem como isso pode levar a um conjunto de possibilidades quase infinito?

Por outro lado, se houvessem escolhas efetivas, a aleatoriedade estaria estabelecida e não faria sentido falar em realidade como algoritmos, já que seria indefinível até mesmo os pontos onde ocorreriam decisões. Pensem que estou sentado vendo TV. A cada instante posso decidir parar de assisti-la e ir fazer outra coisa. Ler, dormir, comer um rabanete, sair para a rua, tamborilar um pandeiro, acender uma vela ou tirar ouro do nariz são opções cabíveis. Pior: uma necessidade fisiológica pode me levar de bate-pronto a sair do meu estado atual. É muito difícil estabelecer pontos lógicos tão fixos assim. Mas sempre podemos tentar.

Há argumentos que podem indicar a direção contrária. Uma das melhores proposituras de quem defende a obediência da realidade a alguma espécie de algoritmo é a maneira como a seleção natural se processa. Isso porque, embora a seleção do melhor adaptado venha sendo estudada há tempos quando observamos a constituição das espécies, é perceptível que a mesma lógica opera em qualquer circunstância onde haja disputa. Há uma espécie de "seleção natural" no mundo do futebol, por exemplo. O Santos é ainda hoje tido como um dos clubes mais importantes nesse esporte porque um dia teve um time tecnicamente impecável. Fosse hoje, aquele escrete estaria todo espalhado por times do mundo inteiro, porque o fator financeiro se tornou mais definidor do critério seletivo. Houve época em que clubes com potencial monetário menor, como a Portuguesa ou o América, conseguiam sobreviver por critérios outros. Modernamente, tendem ao fim, a não ser que se apresentem como novos proponentes de alternativas mais bem adaptadas à nova realidade.

Esse modelo se aplica a incontáveis fenômenos. Tente entender por que o inglês é a língua franca hoje em dia e você perceberá que ele superou etapas por ser melhor adaptado ao mundo. Tente entender por que o dólar, e não o real, ou o peso, ou o dinar. Tente entender por que todos esses dominadores de hoje eram menos preponderantes no passado e como podem deixar de ser no futuro, e veremos o algoritmo da evolução sempre funcionando: quem se adapta melhor, permanece. Ok, ok… Pode ser que chamar esse fenômeno de “seleção natural” seja um erro, porque não há nada de natural nas línguas e dinheiros, mas todos compartilham o mesmo mecanismo de favorecimento àqueles que se adaptam melhor a um dado ambiente, e é nisso que está seu sentido natural. O mundo estava prenhe de condições ideais para que puritanos britânicos deixassem sua ilha e se transferissem para um território imenso, fértil e povoado por uma população mais frágil. De lá, o aumento das riquezas internas foi sendo um lastro para que, surgidas as guerras, emergisse uma nação poderosa, cheia de recursos para se manter e fazer manter os demais países, que lhe passaram a ser tributários. Esse é o substrato que arrastou o inglês e a cultura ianque pelo mundo.

Outros exemplos de fenômenos algorítmicos são a gravidade, o magnetismo e inúmeros outros fenômenos físico-químicos. Dadas tais e tais condições e a "magia" acontece. A própria previsibilidade do método científico dá a ideia de que há passos fixos para cada situação.

É óbvio que fica meio complicado subordinar toda a realidade a mecanismos peremptórios, novamente pela questão das escolhas. Só se esta for meramente ilusória, e cada vez que o fizermos, for inevitável que ocorresse como ocorreu. Novamente precisamos voltar para a definição de algoritmo: uma série de passos predefinidos que é utilizada para resolver alguma tarefa. Isso para evitarmos aquela romântica afirmação de que nada é por acaso, como se uma espécie de lei da atração operasse por trás dos nossos passos. Isso é muito bonito quando as coisas dão certo, mas, do contrário, vamos atrás de algum ad hoc que motive o destino infeliz, não é mesmo?

No final das contas, o ponto chave está nos losangos, ou seja, nos processos decisórios. Os outros podem ser atribuídos à velhíssima e aristotélica conjunção de causas e consequências, que, ainda que se considere a opinião de contestadores como Hume e Guilherme de Ockham, costuma funcionar belissimamente. E aí vamos pensar na proposta de Leonard Mlodinov, imaginando-nos em uma rua noturna, onde, de longe, vemos um bêbado andar à nossa frente. Cada passo que ele dá, ainda que involuntariamente, envolve uma decisão: embora tente seguir reto, ele pende ora para a esquerda, ora para a direita (como faz o Centrão). É até possível estabelecer um pensamento estatístico, mas teríamos facilidade em cair na falácia da mão quente. Do nosso ponto de vista, o fenômeno é absolutamente aleatório, podendo haver tantos passos para um lado ou para o outro, sem nenhuma previsibilidade aparente. Se ela existir, de todo modo é influenciada por fatores que independem da claudicante vontade do nosso ébrio amigo: irregularidade do terreno, umidade do asfalto, condições dos calçados, ventinho maroto a estibordo, tendência labiríntica, peso nos bolsos, joelho com artrose. Há todo um conjunto de fatores que conduz essa caminhada, cada um com um conjunto ambiental que tem suas próprias regras físicas, as quais, uma vez atendidas, farão com que o próximo passo se desenrole de uma maneira perfeitamente previsível, porque descritíveis em algoritmos. Só que essas são tantas e tantas que se torna impossível de fazer tais previsões, a não ser através do bom e velho chute.

Diante de um universo caótico, a minha conclusão pode ser um pouco decepcionante, mas está na esteira do pragmatismo: é irrelevante se a realidade é ou não um grande algoritmo. Isso se baseia na impossibilidade de perceber a quantidade de nuances que compõem a realidade. O que temos em nosso aparelho cognitivo são nossas intuições, e, ao mesmo tempo que elas podem nos conduzir a enganos, é também a maneira como chegamos até aqui na nossa aventura terrestre, e lutar contra isso não faz sentido. Se há algoritmos que regem cada um de nossos passos, eles são tantos que são indistinguíveis de uma aleatoriedade real. 

Minha (in)conclusão é essa. A não ser que eu reflita mais e mude de ideia... será que há algoritmo para isso?

Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Um livro leve, sem grandes aprofundamentos, mas que demonstra como podemos nos enganar com relação ao acaso com vários exemplos.

MLODINOV, Leonard. O andar do bêbado. Como o acaso determina nossas vidas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009.

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